domingo, 18 de fevereiro de 2018

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: X - À Uma Hora Da Madrugada

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa



X

À UMA HORA DA MADRUGADA 

Enfim, só! Já não se ouve o rodar dos carros retardados e sonolentos. Durante algumas horas teremos o silêncio, se não o repouso. A tirania da face humana desapareceu, enfim, e eu só terei de sofrer por mim mesmo. 

Enfim! Posso agora revigorar-me num banho de trevas! Antes, porém, mais uma volta na fechadura. Parece-me que essa volta de chave aumentará minha solidão e fortificará as barricadas que ora me separam do mundo. 

Vida horrível! Vida medonha! Recapitulemos o dia: Vi vários homens de letras, um dos quais me perguntou se se podia ir à Rússia por via terrestre, pois decerto tomava a Rússia por uma ilha... 

Discuti generosamente com o diretor de uma revista, que a cada objeção respondia: “Aqui é o partido dos homens honestos”, o que significa que todos os outros jornais são redigidos por tratantes... 

Cumprimentei uma vintena de pessoas, quinze das quais eu não conheço... 

Distribuí apertos de mão na mesma proporção, sem ter tido o cuidado de comprar luvas... 

Subi, para matar o tempo, durante uma tempestade, à casa de uma dançarina que me pediu que lhe desenhasse uma túnica de Vênus... 

Fiz a corte a um diretor, que me disse ao despachar-me: “Você talvez fizesse bem em dirigir-se a Z..., que é o mais grosseiro, o mais tolo e o mais famoso de todos os meus autores. Com ele, talvez você pudesse arranjar alguma coisa. Procure-o e depois veremos...” Gabei-me, não sei porquê, de vários atos desonestos que não cometi e neguei outros que pratiquei com alegria: delito de fanfarronada, crime de respeito humano. Recusei a um amigo um favor fácil e dei uma recomendação por escrito a um perfeito cretino. 

Ufa! Que terminei. 

Desgostoso de todos e de mim mesmo, eu desejaria compensar-me e envaidecer-me um pouco no silêncio da solidão da noite. Almas dos que amei, almas dos que cantei, fortificai-me, apoiai-me, afastai de mim a mentira e os vapores de corrupção do mundo! E vós, Senhor, meu Deus, concedei-me a graça de produzir alguns belos versos que me provem não ser eu o último dos homens, nem inferior aos que desprezo.



XI

A MULHER SELVAGEM E A AMANTE 

“Na verdade, querida, você me cansa demais e sem piedade. Dir-se-ia, ouvindo-a suspirar, que você sofre mais do que as camponesas sexagenárias e as velhas mendigas que catam migalhas de pão à porta dos cabarés. 

“Se os seus suspiros ao menos exprimissem remorso, seriam para você uma honra; mas traduzem apenas a saciedade do bem estar e a prostração do repouso. Além disso, você não cessa de derramar-se em palavras inúteis: “— Ame-me bastante! Tenho necessidade disso! Console-me, acaricie-me! “Ouça, quero tentar sua cura. Talvez descubramos o meio para isso, entre duas notas musicais, no meio de uma festa, sem irmos muito longe.

“Veja essa jaula de ferro. Agita-se lá no fundo, urrando como um danado, sacudindo as grades como um orangotango exasperado pelo exílio, imitando com perfeição ora os saltos circulares do tigre, ora os bamboleios estúpidos do urso branco, aquele monstro cuja forma lembra vagamente a sua. 

“É esse monstro um dos animais que se costumam chamar ‘meu anjo!’, isto é, uma mulher. O outro monstro, o que grita desesperadamente, com um pau na mão, é o marido. 

Acorrentou a mulher legítima como uma fera e mostra-a agora nos subúrbios, em dias de feira, com licença dos magistrados, naturalmente. 

“Preste bem atenção! Veja com que voracidade (talvez sincera!) ela estraçalha coelhos vivos e aves estertorantes jogadas pelo tratador. 

“— Vamos — diz ele — não coma tudo num só dia. 

“E, com essa frase cautelosa, arranca-lhe cruelmente a presa, cujas tripas desfiadas permanecem um instante seguras nos dentes da fera, quero dizer, da mulher. 

“Vamos! Uma boa paulada para acalmá-la, que ela lança olhares terríveis de cobiça sobre o alimento arrebatado. Meu Deus! Aquele pau não é um pau de comédia! Pois não ouvistes ressoar a carne, a despeito do pelo inútil? Também os olhos saem agora da cabeça, e ela urra com mais naturalidade. Faísca de raiva, como o ferro que se bate. 

“Tais são, meu Deus, os costumes conjugais dos dois descendentes de Adão e Eva, obra das vossas mãos! Essa mulher é incontestavelmente infeliz, se bem que, afinal de contas, talvez não desconheça os prazeres crepitantes da glória. Há desgraças mais irremediáveis e sem compensação. Mas, no mundo em que foi lançada, jamais pôde ela supor que a mulher merecesse outro destino. 

“Agora, nós dois, amante querida! Vendo os infernos que povoam o mundo, que pretende você que eu pense do seu belo inferno? você, que só repousa sobre almofadas macias como sua pele? que só come carne cozida, que um criado hábil tem o cuidado de picar em pedaços? “Que podem significar para mim, oh robusta faceira, todos esse pequenos suspiros que lhe enchem o peito perfumado? E toda essa afetação aprendida nos livros, e essa infatigável melancolia, feita para inspirar ao espectador um sentimento bem contrário ao da piedade? De fato, tenho às vezes o desejo de lhe ensinar o que é a verdadeira desgraça. 

“Vendo-a assim, meu lindo amor, com os pés na lama e os olhos vaporosamente voltados para o céu, como para pedir-lhe um rei, dir-se-ia que você parece uma jovem rã que invocasse o ideal. E, se desprezar o soba (que é o que sou agora, como sabe), cuidado com o grou que a esmigalhará, engolirá e matará quando bem entender! “Por mais poeta que eu seja, não sou tão idiota quanto você o julga. E, se me cansar demais com suas preciosas choradeiras, passarei a tratá-la como mulher selvagem, ou a atirarei pela janela, como uma garrafa vazia.”



XII

AS MULTIDÕES 

Nem todos podem tomar um banho na multidão: ter o prazer da turba é uma arte. Só assim se pode oferecer, à custa do gênero humano, um banquete de vitalidade, a quem uma fada insuflou, no berço, o gosto da dissimulação, a máscara, o ódio ao domicílio e a paixão da viagem. 

Multidão, soledade: termos iguais e convertíveis pelo poeta imaginoso e fecundo.

Quem não sabe povoar a própria solidão não sabe tão pouco isolar-se na massa inquieta. 

O poeta goza do incomparável privilégio de poder, à vontade, ser ele próprio e outrem. Como as almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer, na personalidade de cada um. Só para ele, tudo está vazio; e, se certos lugares parecem-lhe interditos, é que a seus olhos não valem a pena de ser visitados. 

O passeador solitário e pensativo experimenta uma singular embriaguez nessa comunhão universal. Quem esposa facilmente a multidão conhece prazeres febris, dos quais estarão eternamente privados o egoísta, fechado como um cofre, e o preguiçoso, internado como um molusco. Adota como suas todas as ideias, todas as alegrias e todas as misérias que as circunstâncias lhe apresentam. 

O que os homens denominam amor é muito pequeno, restrito e frágil, quando comparado à inefável orgia, à santa prostituição da alma que se entrega toda, poesia e caridade, ao imprevisto que aparece, ao desconhecido que passa. 

Convém mostrar, às vezes, aos felizardos do mundo, ao menos para humilhar um instante o seu tolo orgulho, que há venturas superiores à deles, mais vastas e mais refinadas. 

Os fundadores de colônias, os pastores de povos, os sacerdotes missionários exilados nos confins do mundo, conhecem sem dúvida alguma coisa dessa embriaguez misteriosa; e, no seio da vasta família que o seu gênio formou, devem rir, às vezes, dos que lhes deploram o destino agitado e a vida tão casta.


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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.


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Leia também:

Baudelaire: I - O Estrangeiro
Baudelaire: IV - O Gaiato
Baudelaire: VII - O Bobo e a Vênus
Baudelaire: X - À Uma Hora Da Madrugada
Baudelaire: XIII - As Viúvas

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NOTAS


(6) Rei de Creta, sábio legislador, juiz dos infernos com Eaco e Radamanto. 

(7) Filho de Júpiter, rei de Egina. Célebre por sua justiça, passou, depois de sua morte, a ser um dos três juízes dos infernos, com Minos e Radamanto. 

(8) Um dos três juízes dos infernos, filho de Júpiter e irmão de Minos.



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