segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Gente Pobre - 23. Hoje sinto-me alegre a valer - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


23.




1 de agosto



Minha querida Bárbara Alexeievna: 


Está satisfeita por Deus lhe haver proporcionado a oportunidade de pagar o bem com o bem e saldar a sua dívida de gratidão! Creio nisso e acredito, querida Bárbara, na bondade do seu coração. Não serei eu quem a censure. Peço-lhe, porém, que também me não critique agora por eu ter sido um dissipador. Cometi um pecado, mas que se lhe há de fazer? Isto, se ainda teima em classificar assim o meu procedimento. Lembro-lhe, porém, que me custa imenso ouvir, precisamente da sua boca, essas coisas! 

Não leve a mal as minhas palavras. O meu coração anda tão fraco, meu amor! Os pobres também têm caprichos. A Natureza é que assim o determina, e já há muito que eu o havia observado e sentido. O pobre é suscetível; não vê o mundo tal qual ele é, olha de soslaio quem passa, com receio, não perdendo uma só palavra que seja proferida à sua volta. Estarão a falar dele? Dar-se-á o caso de estarem a comentar, em voz baixa, o seu miserável aspeto? Ou perguntarão no que agora se emprega? Que figura fará ele neste ou naquele lugar? Toda a gente sabe que um homem pobre é pior do que um farrapo e que, digam o que disserem, ninguém tem por ele a mínima consideração. Por mais que escrevam esses rabiscadores, um pobre será sempre um pobre com todas as consequências de tal condição. E há de ser sempre assim, porquê? Porque o pobre, por assim dizer, tem de mostrar tudo, não pode conservar nada escondido — um bocadinho de orgulho, por exemplo, qualquer outro sentimento parecido —, porque não lho permitem. Contou-me há dias Emelia que uma vez fizeram uma subscrição a seu favor e que por cada pequena moeda que lhe davam, submetiam-no a uma espécie de investigação. Entendiam os subscritores que não deviam dar as suas esmolas assim sem mais nem quê... De modo nenhum! Pagavam para gozar o espetáculo de um pobre! Hoje, minha boa amiga, a caridade é exercida de um modo muito estranho! Quem sabe se não terá sido sempre assim! Das duas, uma: ou as pessoas não sabem ministrá-la, ou então já são peritos na matéria... 

Se calhar, ignorava estas coisas, mas faça por não as esquecer para o futuro! É verdade que acerca de muitos outros assuntos não sei nada, mas conheço em pormenor tudo o que diz respeito a este, acredite. E como se pode adquirir tão perfeito conhecimento? Sobretudo, porque pensar desta forma? Sim, como se consegue saber tão bem estas coisas? Pois... pela experiência. Pela mesma razão o pobre sabe que, se entrar num restaurante juntamente com um senhor, este perguntará para os seus botões: «Que irá comer agora ao almoço este empregadito? Eu vou pedir sauté aux papillotes, ao passo que ele talvez tenha de contentar-se com um cozinhado qualquer, sem manteiga.» Mas que lhe importará a ele que eu não possa comer senão um reles cozinhado sem manteiga? É verdade, querida Bárbara, há homens assim, existem criaturas que só pensam nessas coisas. E andam entre nós esses seres inúteis, esses bisbilhoteiros e mexeriqueiros; metem o nariz em tudo, a ponto de repararem se os outros põem no chão a planta do pé ou só a ponta, observando se este ou aquele empregado traz os dedos a sair pelas botas fora, se tem as mangas do casaco rotas nos cotovelos. Depois escrevem tudo sem omitir a mínima particularidade e, sem mais preâmbulos, mandam-no imprimir... 

Que lhes importa que eu tenha as mangas rotas nos cotovelos? Se me permite esta comparação, dir-lhe-ei, minha amiga, que o pobre, neste caso, sente uma vergonha análoga à do pudor virginal da mulher. 

A Bárbara — desculpe o grosseiro exemplo — seria capaz de se despir diante de toda a gente? Decerto que não. Pois exatamente pelo mesmo motivo, o pobre não gosta que metam o nariz na sua pocilga, para bisbilhotar como vivem ele e os seus. Com que razão, pois, a minha amiga me ofende, precisamente como os meus inimigos, que atentaram contra a honra e a reputação de um homem honrado? 

Hoje de manhã, sentado na repartição, muito calado e absorto, pareceu-me ver a minha própria figura como se fosse a de um pardal sem penas. Senti tal vergonha, que cheguei a ter desejos de morrer. É verdade, querida, senti vergonha! Sem querer, a gente sente-se desanimado quando sabe que através dos rasgões das mangas se lhe veem os cotovelos e que os botões do casaco estão presos por um fio. Pois eu encontrava-me precisamente neste preparo! E será de admirar que nos sintamos desanimados? Até Estepan Karlovitch, ao falar-me de qualquer coisa relacionada som o serviço, mudou, de repente, de assunto e exclamou: «Ai, Makar Alexeievitch!»; mas não chegou a dizer o resto, aquilo que no seu íntimo pensava. Eu, porém, adivinhei tudo e ruborizei-me de tal forma, que decerto até a careca se me pôs cor-de-rosa. Bem pensado, isso não tem uma importância por aí além; no entanto, sempre causa uma certa inquietação e faz com que os nossos pensamentos se encaminhem num rumo melancólico. Como conseguem estes tipos saber a minha vida? Devo confessar-lhe, para ser franco, que alimento sérias suspeitas acerca de certo indivíduo. A esses bandidos não escapa coisa alguma! Põem-nos a nu sem qualquer consideração! São capazes de vender a vida por uma ninharia, minha boa amiga, porque para eles não existe nada sagrado! 

Já sei de quem deve ter partido tudo: de Ratazaiev! Certamente é amigo de alguém da minha repartição, a quem contou qualquer coisa, acrescentando ao relato alguns pormenores da sua lavra. Ou então falou do caso onde trabalha e dali a notícia alastrou. Cá em casa estão todos ao corrente do sucedido, e até apontam com o dedo a janela da minha boa amiga. É, pelo menos, o que me consta. Ontem ao meio-dia, quando me dirigia a sua casa para almoçar, esconderam-se por trás das janelas, espreitando com muito cuidado, para que não os víssemos; e a patroa dizia que o diabo fizera um pacto com uma criança de peito e mimoseava-a, a si, com nomes pouco decentes. 

Mas isto ainda não é nada, comparado com o escandaloso procedimento de Ratazaiev . Pretende fazer-nos figurar num dos seus livrecos e fazer com o nosso caso uma sátira. Foi o que ele disse, segundo me contaram alguns bons amigos, colegas na repartição. Não me sai isto da ideia, meu amor, e não sei que medidas adotar. Não há dúvida, meu anjo, que temos ofendido muito o Senhor, não o esqueçamos! 

Queria a minha amiga mandar-me um livro, para que eu me não aborrecesse. Não, por enquanto não preciso de livros, meu amor! Mas que livro, nesta altura, me poderia divertir? Ainda se fosse um que só descrevesse a realidade! Mas as novelas e as sátiras são verdadeiros disparates, escritos com o único fim de dizer tolices e os ociosos terem alguma coisa que ler. Acredite, querida Bárbara, no que lhe digo, deixe-se guiar pela minha larga experiência. A começar pelas de Shakespeare — e é Shakespeare, note bem! — essas mesmo são puros disparates e nada mais, como as de qualquer escrevinhador de livrecos para divertir o público! 

Seu


Makar Dievuchkin








2 de agosto



Querido Makar Alexeievitch:



Não se inquiete, por favor. Tudo se há de arranjar, se Deus quiser. A Fédora conseguiu muito trabalho para nós, e agarramo-nos logo a eles, cheias de alegria. É possível que com isto remediemos tudo. A minha companheira assevera que Ana Fedorovna está ao corrente dos meus últimos desgostos; mas isso é-me indiferente. Hoje sinto-me alegre a valer. 

Então o senhor queria contrair um empréstimo de dinheiro! Deus o defenda de tal! Iria agravar ainda mais a sua situação; ao fim, feitas as contas, teria de pagar uma quantia muito mais elevada. O que deve é levar uma vida mais econômica, visitar-nos com mais frequência e não se importar com os comentários da sua patroa. Quanto aos seus inimigos e a todas as outras pessoas que pensam mal de si, estou convencida de que as suas apreensões são infundadas, Makar Alexeievitch. 

Devo dizer-lhe também que precisa de ter mais cuidado com o estilo; tenho notado que difere grandemente de carta para carta. Com isto, adeus até à vista. Espero que não falte. 

Sua


B. D.






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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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