Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
continuando...
Uma das formas de contestação que se encontram mais amiudadamente na adolescente é o escárnio.
Colegiais, midinettes, rebentam de riso contando-se histórias sentimentais ou escabrosas, falando de namoros, cruzando com homens na rua ou vendo namorados beijarem-se; conheci colegiais que passavam propositadamente pela alameda dos namorados no Jardim do Luxemburgo tão-somente para rir; e outras que frequentavam banhos turcos para zombar das mulheres gordas, barrigudas e de seios caídos que encontravam: escarnecer o corpo feminino, ridicularizar os homens, rir do amor, é uma maneira de negar a sexualidade; há nesses risos como que um desafio aos adultos, uma maneira de superar o próprio embaraço; brinca-se com imagens e palavras para destruir-lhes a magia perigosa: assim é que vi alunas do quarto ano "rebentar de riso" ao depararem com a palavra fêmur no texto. Com muito mais razão a jovem se vinga rindo na cara do parceiro ou com colegas quando se deixa beijar ou bolinar.
Lembro-me, uma noite, em um compartimento de trem em que duas moças se deixavam acariciar, cada uma por sua vez, por um caixeiro-viajante muito feliz com a sua sorte: entre cada sessão riam histericamente, reencontrando, num ajuste de sexualidade e vergonha, as condutas da idade ingrata. Juntamente com a gargalhada, as jovens apelam para a linguagem: valem-se algumas delas de um vocabulário cuja grosseria faria seus irmãos corarem; isso as perturba tanto menos quanto as expressões que usam não lhes evocam, em consequência de sua semi-ignorância, nenhuma imagem precisa; o objetivo é de resto, senão o de impedir que as imagens se formem, pelo menos o de as desmontar; as histórias grosseiras que as colegiais se contam destinam-se muito menos a satisfazer instintos sexuais do que a negar a sexualidade: querem encará-la apenas sob um aspecto humorístico, como uma operação mecânica e quase cirúrgica. Mas, como o riso, o emprego de uma linguagem obscena não é unicamente uma contestação: é também um desafio aos adultos, uma espécie de sacrilégio, uma conduta deliberadamente perversa. Recusando a natureza e a sociedade, a jovem as provoca e as enfrenta mediante numerosas singularidades.
Observaram-se nela muitas vezes manias alimentares: come pontas de lápis, pedaços de lacre, pauzinhos, camarões vivos, comprimidos de aspirina às dúzias, e até moscas e aranhas; conheci uma, muito bem comportada entretanto, que compunha com café e vinho branco horríveis misturas que se esforçava por absorver; outras vezes comia açúcar embebido de vinagre. Outra vi que mastigou resolutamente um vermezinho encontrado na salada. Todas as crianças se esforçam por experimentar o mundo com os olhos, as mãos, e mais intimamente com a boca e o estômago: mas na idade ingrata a menina compraz-se mais particularmente em explorá-lo no que tem de indigesto e repugnante. Muitas vezes o que é "nojento" a atrai. Uma delas, que era bonita, não raro coquete e limpa, mostrava-se realmente fascinada por tudo o que lhe parecia "sujo": tocava em insetos, contemplava suas toalhinhas maculadas, chupava o sangue das feridas. Brincar com coisas sujas é, evidentemente, uma maneira de superar o nojo; esse sentimento assumiu grande importância no momento da puberdade; a jovem tem repugnância por seu corpo demasiado carnal, pelo sangue menstrual, pelas práticas sexuais dos adultos, pelo macho a que se destina; nega-o comprazendo-se precisamente na familiaridade de tudo o que a enoja. "Como é preciso que sangre todos os meses, bebendo o sangue de minhas feridas provo que o sangue não me amedronta.
Se deverei submeter-me a uma experiência revoltante, por que não mastigar um vermezinho?" Essa atitude afirma-se de maneira mais nítida nas automutilações tão frequentes nessa idade.
A jovem corta as coxas com navalha, queima-se com cigarros, arranha-se; para não ir a um garden-party aborrecido, uma amiga de minha juventude abriu o pé com um golpe de machadinha, a ponto de ter de ficar de cama durante seis semanas.
Essas práticas sado-masoquistas são, ao mesmo tempo, uma antecipação da experiência sexual e uma revolta contra ela; é preciso, suportando essas provações, enrijecer- se contra toda provação possível e assim torná-las todas anódinas, inclusive a da noite nupcial. Quando põe uma lesma no peito, quando engole um tubo de aspirina, quando se fere, a jovem desafia o futuro amante: não me infligirás nada mais odioso do que o que eu me inflijo a mim mesma. Trata-se de iniciações melancólicas e orgulhosas à aventura sexual. Destinada a ser uma presa passiva, ela reivindica sua liberdade até no fato de suportar a dor e o nojo.
Quando se impõe a mordida da faca, a queimadura da brasa, protesta contra a penetração que a deflorará: protesta anulando-a.
Masoquista, porquanto em sua conduta aceita a dor, ela é principalmente sádica: enquanto sujeito autônomo, atormenta, insulta, tortura essa carne dependente, essa carne condenada à submissão que detesta, sem querer entretanto distinguir-se dela. Porque ela não escolhe em todas essas conjunturas recusar autenticamente seu destino. As manias sadomasoquistas implicam uma má-fé fundamental: e se a menina a elas se entrega, é porque aceita, através das recusas, seu futuro de mulher; não mutilaria com ódio sua carne se antes não se reconhecesse como carne. Até suas explosões de violência partem de um fundo de resignação. Quando se revolta contra o pai, contra o mundo, o rapaz entrega-se a violências eficientes; procura briga com um camarada, bate-se, afirma-se a socos como sujeito: impõe-se ao mundo, supera-o. Mas afirmar-se, impor-se é proibido à adolescente e é isso que põe em seu coração tanta revolta: ela não espera nem mudar o mundo, nem emergir dele; sabe-se, acredita-se, e talvez se queira amarrada: só pode destruir; há desespero em sua cólera; durante uma noitada irritante, ela quebra copos, vidros, vasos; não é para vencer o destino; é apenas um protesto simbólico. É através de sua impotência presente que a jovem se rebela contra sua servidão futura; e suas vãs explosões, longe de a libertarem de seus laços, não fazem amiúde senão recerrá-las.
Por vezes, ela procura libertar-se: acabemos com isso, vamos até o fim, e quer provar a si mesma que a sexualidade tem pouca importância, entregando-se a qualquer um.
Ao mesmo tempo uma tal atitude manifesta muitas vezes hostilidade à mãe, ou porque a jovem tenha horror à austera virtude dela, ou porque a suspeite de ter maus costumes; ou então exprime rancor contra o pai que se mostrou por demais indiferente.
Como quer que seja, nessa obsessão — como nos fantasmas de gravidez de que já falamos e que a ela não raro se associam — encontra-se essa inextricável confusão da revolta e da cumplicidade, que caracteriza as vertigens psicastênicas.
É de notar que em todas essas condutas a jovem não procura ultrapassar a ordem natural e social, não pretende recuar as fronteiras do possível nem operar uma transmutação de valores; contenta-se com manifestar sua revolta no seio de um mundo estabelecido cujas fronteiras e leis são conservadas; é essa atitude que se definiu muitas vezes como "demoníaca" e que implica uma trapaça fundamental: o bem é reconhecido a fim de ser escarnecido, a regra é posta a fim de ser violada, o sagrado é respeitado a fim de que seja possível perpetrar sacrilégios.
A atitude da jovem define-se essencialmente pelo fato de que, nas trevas angustiantes da má-fé, ela recusa, aceitando-o, o mundo e seu próprio destino.
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O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
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O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (5)
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
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