Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
EM CERTO sentido, a iniciação sexual da mulher, como a do homem, começa na primeira infância. Há uma aprendizagem teórica e prática que se desenvolve de maneira contínua desde as fases oral, anal, genital até a idade adulta. Mas as experiências eróticas da jovem não são um simples prolongamento de suas atividades sexuais anteriores; têm muitas vezes um caráter imprevisto e brutal; constituem sempre um acontecimento novo que cria uma ruptura com o passado. Todos os problemas que se apresentam à jovem acham-se resumidos de uma forma urgente e aguda no momento em que os vive. Em certos casos a crise tem solução fácil, mas há conjeturas trágicas em que ela só se liquida com o suicídio ou a loucura. De qualquer forma, pela maneira por que reage, a mulher empenha grande parte de seu destino. Todos os psiquiatras concordam acerca da extrema importância que têm para ela as primeiras experiências eróticas: repercutem em toda a sua vida.
A situação é, no caso, profundamente diferente para o homem e para a mulher, tanto do ponto de vista biológico como do social e do psicológico. Para o homem, a passagem da sexualidade infantil à maturidade é relativamente simples: há objetivação de prazer erótico que, em lugar de ser realizado na sua presença imanente, é intencionado em um ser transcendente. A ereção é a expressão dessa necessidade; sexo, mãos, boca, o homem volta-se com todo o corpo para a parceira, mas permanece no centro dessa atividade, como em geral o sujeito em face dos objetos que percebe e dos instrumentos que manipula; projeta- se contra o outro sem perder sua autonomia; a carne feminina é para ele uma presa e ele apreende nela as qualidades que sua sensualidade reclama de todo objeto; não consegue por certo apropriar-se delas, mas abraça-as. A carícia, o beijo implicam um semimalogro, mas esse malogro mesmo é um estimulante e uma alegria. O ato amoroso encontra sua unidade no seu fim natural, o orgasmo. 0 coito tem um objetivo fisiológico preciso: pela ejaculação o macho descarrega as secreções que lhe pesam; depois do ato ele alcança um alívio que se acompanha sempre de prazer e não era este unicamente o fim visado, mesmo porque é seguido muitas vezes de decepção: houve desaparecimento da necessidade mais do que satisfação. Em todo caso, um ato definido foi consumado e o homem se reencontra com um corpo íntegro: o serviço que prestou à espécie confundiu-se com seu próprio gozo. O erotismo da mulher é muito mais complexo e reflete a complexidade da situação feminina. Vimos (1) que, ao invés de integrar as forças específicas em sua vida individual, a fêmea submete-se à espécie cujos interesses se dissociam dos fins singulares dela; essa antinomia atinge o paroxismo na mulher: exprime-se, entre outras coisas, pela oposição de dois órgãos: o clitóris e a vagina. No estágio infantil é, o primeiro, o centro do erotismo feminino. Alguns psiquiatras sustentam que existe uma sensibilidade vaginal em certas meninas, mas essa opinião é muito controvertida; em todo caso teria apenas uma importância secundária. O sistema clitoridiano não se modifica na idade adulta (2) e a mulher conserva durante toda a vida essa autonomia erótica; o espasmo clitoridiano é, como o orgasmo do homem, uma espécie de detumescência obtida de maneira quase mecânica; mas só indiretamente se acha ligado ao coito normal, não desempenha nenhum papel na procriação. É pela vagina que a mulher é penetrada e fecundada; e a vagina se torna centro erótico pela intervenção do homem e essa intervenção constitui sempre uma espécie de violação. Por um rapto real ou simulado é que a mulher era outrora arrancada de seu universo infantil e jogada na sua vida de esposa; é uma violência que a faz passar de moça a mulher: diz-se também "tirar" (3) a virgindade de uma jovem, "tomar-lhe" a flor. Essa defloração não é o fim harmônico de uma evolução contínua, é a ruptura abrupta com o passado, o início de um novo ciclo. O prazer é então atingido por contrações da superfície interna da vagina; se terminam
(1) Vol. I, cap. I.
(2) A não ser que se pratique a excisão, de regra entre certos primitivos.
( 3)Em francês, "ravir" tem tanto o sentido de seduzir, encantar, como o de arrebatar e tirar (N. do T.).
por um orgasmo preciso e definitivo, é ponto que se discute ainda. Os dados da anatomia são muito vagos. "A anatomia e a clínica provam abundantemente que a maior parte do interior da vagina não é inervada", diz, entre outros, o relatório de Kinsey. "É possível fazerem-se numerosas operações no interior da vagina sem recorrer a anestésicos. Demonstrou-se que no interior da vagina os nervos se localizam numa zona situada na face interna próxima da base do clitóris." Entretanto, além da estimulação dessa zona inervada, "a mulher pode ter consciência da introdução de um objeto na vagina particularmente estando os músculos contraídos; mas a satisfação assim obtida relaciona-se provavelmente mais com o tono muscular do que com a estimulação erótica dos nervos". Não obstante, está fora de dúvida que o prazer vaginal existe; e a masturbação vaginal — nas mulheres adultas — é mais comum do que diz Kinsey (4). Mas o que é certo é que a reação vaginal é uma reação muito complexa que se pode qualificar de psicofisiológica, porque interessa não somente o conjunto do sistema nervoso como ainda depende de toda a situação vivida pelo sujeito: exige o consentimento profundo de todo o indivíduo; o novo ciclo erótico que o primeiro coito inaugura exige, para que se estabeleça, uma espécie de "montagem" do sistema nervoso, a elaboração de uma forma que não se acha ainda esboçada e que deve envolver também o sistema clitoridiano; leva muito tempo para se realizar e por vezes não chega nunca a criar-se. É impressionante que a mulher possa escolher entre dois ciclos sendo que um perpetua a independência juvenil enquanto o outro a destina ao homem e ao filho. O ato sexual normal põe com efeito a mulher na dependência do macho e da espécie. Ele — como entre quase todos os animais — é que desempenha o papel agressivo, ao passo que ela suporta o amplexo. Normalmente ela pode sempre ser possuída pelo
(4) Verifica-se que o pênis artificial tem sido usado sem interrupção desde nossos dias até a antiguidade clássica e mesmo anteriormente. Eis uma lista de objetos encontrados nestes últimos anos em vaginas ou bexigas e que só puderam ser extraídos em virtude de operações cirúrgicas: lápis, pedaços de lacre, grampos, bobinas, alfinetes de osso, ferro de ondular, agulhas de coser e de fazer tricô, estojos de agulhas, compassos, rolhas de cristal, e de cortiça, velas, canecas, garfos, palitos, escovas de dentes, potes de pomada (em um caso citado por Schroeder o pote continha um besouro e era portanto um substituto do "rinutama" japonês), ovos de galinha etc. Os objetos grandes foram encontrados naturalmente na vagina de mulheres casadas (H. Ellis, Estudos de Psicologia Sexual, vol. I).
homem, ao passo que este só a pode possuir em estado de ereção; salvo em caso de revolta tão profunda como o vaginismo que sela a mulher mais seguramente do que o hímen, a recusa feminina pode ser vencida; e mesmo o vaginismo deixa ao homem meios de se satisfazer num corpo que a força muscular coloca a sua mercê. Sendo ela objeto, a inércia não lhe modifica profundamente o papel natural: a tal ponto que muitos homens não se preocupam em saber se a mulher que se deita com ele quer o coito ou se apenas se submete a ele. Pode-se dormir até com uma morta. O coito não poderia realizar-se sem o consentimento do macho e é a satisfação do macho que constitui o fim natural do ato. A fecundação pode realizar-se sem que a mulher sinta o menor prazer. Por outro lado, a fecundação está longe de representar para ela o término do processo sexual; é, ao contrário, nesse momento que começa o serviço exigido dela pela espécie: este realiza-se lentamente, penosamente, na gravidez, no parto, no aleitamento.
O "destino anatômico" do homem é, pois, profundamente diferente do da mulher. Não o é menos a situação moral e social. A civilização patriarcal votou a mulher à castidade; reconhece-se mais ou menos abertamente ao homem o direito a satisfazer seus desejos sexuais ao passo que a mulher é confinada no casamento: para ela o ato carnal, em não sendo santificado pelo código, pelo sacramento, é falta, queda, derrota, fraqueza; ela tem o dever de defender sua virtude, sua honra; se "cede", se "cai", suscita o desprezo; ao passo que até na censura que se inflige ao seu vencedor há admiração. Desde as civilizações primitivas até os nossos dias sempre se admitiu que a cama era para a mulher um "serviço" que o homem agradece com presentes ou assegurando-lhe a manutenção: mas servir é ter um senhor; não há nessa relação nenhuma reciprocidade. A estrutura do casamento como também a existência das prostitutas são provas disso: a mulher dá-se, o homem a remunera e a possui. Nada impede o homem de dominar e possuir criaturas inferiores; os amores ancilares sempre foram tolerados, ao passo que a burguesa que se entrega a um jardineiro, a um motorista, degrada-se socialmente. Os sulistas dos Estados Unidos, tão violentamente racistas, sempre foram autorizados pelos costumes a dormir com mulheres negras, tanto antes da guerra da Secessão como hoje em dia, e usam desse direito com uma arrogância senhoria!: uma branca que tivesse comércio com um negro no tempo da escravidão teria sido condenada à morte; hoje seria linchada. Para dizer que dormiu com uma mulher o homem diz que a "possui", que a "teve": inversamente para se dizer que se "teve" alguém, isto é, que se foi mais esperto e ganhou, diz-se por vezes grosseiramente: "fodi-a" (1). Os gregos chamavam "Parthenos ademos", virgem insubmissa, à mulher que não conhecera macho. Os romanos qualificavam Messalina de "invicta", porque nenhum de seus amantes lhe dera prazer. Para o amante, o ato amoroso é pois conquista e vitória. Se em outro homem a ereção pode parecer por vezes uma paródia irrisória do ato voluntário, cada qual entretanto a considera em seu próprio caso com alguma vaidade. O vocabulário dos homens inspira-se no vocabulário militar: o amante tem o ímpeto do soldado, seu sexo retesa-se como um arco, quando ejacula "descarrega", é uma metralhadora, um canhão; fala de ataque, de assalto, de vitória. Há em seu ato sexual um sabor de heroísmo. "Consistindo o ato gerador na ocupação de um ser por outro, escreve Benda (Le Rapport d'Uriel), impõe por um lado a ideia de um conquistador e por outro de uma coisa conquistada. Por isso, quando tratam de suas relações amorosas, os mais civilizados falam de conquista, de ataque, de assalto, de assédio, de defesa, de derrota, de capitulação, moldando nitidamente a ideia de amor na ideia de guerra. Esse ato, comportando a poluição de um ser por outro, impõe ao que polui certo orgulho e ao poluído, ainda que anuente, alguma humilhação." Esta última frase introduz um novo mito, o de que o homem inflige uma mácula à mulher. Na realidade o esperma não é um excremento; fala-se de "polução noturna" porque então se desvia de seu fim natural. Mas porque o café pode manchar um vestido claro não se declara que é uma porcaria e que suja o estômago. Outros homens sustentam ao contrário que a mulher é impura porque ela é que está "emporcalhada de humores", que ela polui o homem. 0 fato de ser este quem polui não lhe confere, em todo caso, senão uma superioridade bem equívoca. Na realidade, a situação privilegiada do homem vem da integração de seu papel biologicamente agressivo em sua função social de chefe, de senhor; é através dessa situação que as diferenças fisiológicas adquirem todo seu sentido. Por ser, neste mundo, soberano, o homem reivindica como sinal de sua soberania a violência de seus desejos; diz-se de um homem dotado de grandes capacidades eróticas que
(1) Em francês "avoir quelqu'un" quer dizer ser mais esperto, ganhar, pegar na curva. E "baiser" é a palavra grosseira para o ato sexual (N. do T.).
é forte, que é potente: epítetos que designam como que uma atividade e uma transcendência. Ao contrário, a mulher, sendo apenas um objeto, dela se dirá que é quente ou fria, isto é, que nunca poderá manifestar senão qualidades passivas.
O clima em que a sexualidade feminina desperta é pois completamente diferente daquele que o adolescente encontra em torno de si. Por outro lado, no momento em que se defronta a primeira vez com o homem, sua atitude erótica é muito complexa. Não é verdade, como se pretendeu por vezes, que a virgem não conheça o desejo e que seja o homem quem lhe desperte a sensualidade; essa lenda evidencia mais uma vez a vontade de domínio do homem que deseja que sua companheira nada tenha de autônomo, nem sequer o desejo que ela tem dele. Na realidade, no homem também é muitas vezes o contato com a mulher que suscita o desejo e, inversamente, a maioria das moças aspiram febrilmente às carícias antes que qualquer mão as tenha tocado.
Minhas ancas, que na véspera me davam um aspecto de rapaz, arredondaram-se e, em todo o meu ser, sentia uma imensa impressão de espera, um apelo que me tomava e cujo sentido era mais do que claro: não podia mais dormir à noite, virava e revirava, agitava-me, febril e dolorida, diz Isadora Duncan em Minha Vida.
Uma jovem mulher que faz uma longa confissão a Stekel, (Cf. A Mulher Fria), conta:
Comecei a flertar loucamente. Precisava de uma "cócega nos nervos" (sic). Dançarina apaixonada, fechava os olhos dançando para me entregar inteiramente a esse prazer... Dançando, exprimia uma espécie do exibicionismo porque a sensualidade dominava o pudor. Durante o primeiro ano dancei apaixonadamente. Gostava de dormir e dormia muito e masturbava-me todos os dias, às vezes durante uma hora. Masturbava- me amiúde até ficar inundada de suor e incapaz de continuar por causa do cansaço, e readormecia. . . Ardia e teria aceito quem quisesse acalmar-me. Não procurava um indivíduo, e sim o homem.
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O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
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