sábado, 6 de março de 2021

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (4)

Simone de Beauvoir




02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




PRIMEIRA PARTE

FORMAÇÃO
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CAPÍTULO II
A   M O Ç A





continuando...


Esse caso é quase patológico. Mas ilustra, de modo extremado, um processo que se encontra normalmente. Vemos em Maria Bashkirtseff um exemplo surpreendente de vida sentimental imaginária. Nunca falou com o Duque de H. por quem pretende estar apaixonada. O que almeja em verdade é a exaltação de seu eu; mas sendo mulher, e principalmente na época e na classe a que pertencia, não podia tratar-se para ela de alcançar êxitos através de uma existência autônoma. Com a idade de 18 anos ela anota lucidamente: "Escrevo a C. que gostaria de ser um homem. Sei que poderia tornar-me alguém; mas com saias que quer que se faça? O casamento é a única carreira para as mulheres; os homens têm trinta e seis possibilidades, a mulher uma só; o zero, como na roleta". Ela precisa portanto do amor de um homem; mas para que este seja capaz de lhe conferir um valor soberano deve ser ele próprio consciência soberana. "Nunca um homem abaixo de minha posição poderia agradar-me, escreve. Um homem rico, independente, traz consigo o orgulho e certo aspecto confortável. A segurança tem certo ar vitorioso. Gosto em H. dessa atitude caprichosa, presumida e cruel; tem algo de Nero." E mais ainda: "Esse aniquilamento da mulher diante da superioridade do homem amado deve ser o maior gozo de amor-próprio que pode experimentar uma mulher superior". Assim, o narcisismo conduz ao masoquismo: essa ligação já se encontrava na criança sonhando com Barba Azul, Grisélides, as santas mártires. 0 eu é constituído como para outrem, por outrem: quanto mais poderoso é esse outrem tanto mais o eu tem riquezas e poderes; cativando seu senhor, ele envolve em si todas as virtudes que o outro detém; amada por Nero, Maria Bashkirtseff seria Nero; aniquilar-se diante de outrem, é realizar outrem em si e para si ao mesmo tempo; em verdade, esse sonho de vácuo é uma orgulhosa vontade de ser. Afetivamente Maria Bashkirtseff nunca encontrou homem bastante soberbo para que aceitasse alienar-se através dele. Uma coisa é ajoelhar-se diante de um deus forjado por si mesma e que permanece distante, e outra entregar-se a um macho de carne e osso. Muitas moças obstinam-se durante muito tempo a continuar seu sonho através do mundo real: procuram um homem que lhes pareça superior a todos os outros pela posição, o mérito, a inteligência; querem-no mais velho do que elas, tendo já conquistado um lugar na terra, gozando de autoridade e prestígio. A fortuna e a celebridade as fascinam: o eleito apresenta-se como o Sujeito absoluto que pelo amor lhes comunicará seu esplendor e sua necessidade. Sua superioridade idealiza o amor que a jovem lhe dedica: não é porque ele é homem que ela deseja unir-se a ele, é por ser esse ser de elite. "Eu quisera gigantes e só encontro homens", dizia-me outrora uma amiga. Em nome dessas altas exigências, a jovem desdenha pretendentes demasiado quotidianos e elide os problemas da sexualidade. Ela adora também, em seus sonhos e sem riscos, uma imagem de si própria que a encanta enquanto imagem, embora não consinta em absoluto a adaptar-se à ela. Assim, Marie Le Hardouin (La Voile Noire) conta que se comprazia em se ver como vítima, inteiramente dedicada a um homem, quando em verdade era autoritária.


Por uma espécie de pudor nunca pude exprimir na realidade essas tendências ocultas de minha natureza, que tanto vivi em sonho. Tal como aprendi a me conhecer, sou efetivamente autoritária, violenta, incapaz no fundo de dobrar-me.

Obedecendo sempre a uma necessidade de me abolir, eu me imaginava por vezes que era uma mulher admirável, vivendo somente pelo dever e amorosa até a imbecilidade de um homem a cujos 'menores desejos me esforçava por atender. Debatíamo-nos em meio a uma existência desagradável. Êle matava-se de trabalho e voltava à noite pálido e em desalinho. Eu gastava meus olhos perto de uma janela sem luz a consertar- lhe as roupas. Numa estreita cozinha enfumaçada arranjava-lhe alguns pratos miseráveis. A doença ameaçava sem cessar de morte nosso único filho. Entretanto, um sorriso crucificado de doçura palpitava sempre em meus lábios, e sempre viam em meus olhos essa expressão insuportável de coragem silenciosa que nunca pude suportar sem repugnância na realidade.


Além dessas complacências narcisistas, certas moças experimentam mais concretamente a necessidade de um guia, de um senhor. No momento em que escapam ao domínio dos pais, sentem- se inteiramente embaraçadas com uma autonomia a que não foram habituadas; quase não sabem em geral senão usá-la negativamente, caem no capricho e na extravagância, aspiram a demitir- se novamente de sua liberdade. A história da jovem caprichosa, orgulhosa, rebelde, insuportável, e que é amorosamente domada por um homem sensato é um lugar-comum da literatura barata e do cinema: é um clichê que lisonjeia ao mesmo tempo os homens e as mulheres. É a história que conta, entre outras, Mme de Ségur em Quel amour d'enfant! Decepcionada em criança por um pai demasiado indulgente, Gisele apegou-se a uma velha tia severa; moça, sofre a ascendência de um rapaz rabugento, Julien, que lhe diz duras verdades, que a humilha, e tenta corrigi-la; ela casa-se com um duque rico e sem caráter com quem é muito infeliz e quando, viúva, aceita o amor exigente de seu mentor, é que encontra enfim alegria e sossego. Em Good Wives, de Louisa Alcott, a independente Joe começa a gostar de seu futuro marido porque ele lhe censura severamente uma leviandade cometida; ele a admoesta também e ela se apressa em se desculpar, em se submeter. Apesar do orgulho crispado das mulheres norte-americanas, os filmes de Hollywood apresentaram-nos, cem vezes, meninas insuportáveis domadas pela brutalidade sadia de um namorado ou de um marido: um par de taponas, umas boas palmadas são apresentados como meios eficientes de sedução. Mas na realidade a passagem do amor ideal ao amor sexual não é simples. Muitas mulheres evitam cuidadosamente aproximar-se do objeto de sua paixão, por medo mais ou menos confessado de decepção. Se o herói, o gigante, o semideus responde ao amor que inspira e o transforma numa experiência real, a jovem assusta-se; seu ídolo torna- se um macho de quem ela se afasta enojada. Há adolescentes coquetes que tudo fazem para seduzir um homem que lhes parece "interessante" ou "fascinante", mas que paradoxalmente se irritam se ele lhes retribuiu um sentimento demasiado vivo: ele agradava- lhes porque lhes parecia inacessível: amoroso, vulgariza-se. "É um homem como os outros." A jovem censura-lhe a decadência, vale-se do pretexto para recusar os contatos físicos que assustam sua sensibilidade virginal. Se cede a seu "Ideal", fica a jovem insensível nos braços dele e "acontece, diz Stekel (A Mulher Fria), que jovens exaltadas se suicidem em seguida a tais cenas em que toda a construção da imaginação amorosa desmorona porque o Ideal se revela sob a forma de um "animal brutal". É também por amor ao impossível que muitas vezes a jovem se apaixona por um homem quando ele começa a cortejar uma de suas amigas, e é também por isso que muitas vezes escolhe um homem casado. Ela é facilmente fascinada pelos D. Juan; sonha em submeter e dominar esse sedutor que nenhuma mulher consegue reter, acalenta a esperança de reformá-lo. Na realidade sabe que malogrará em sua empresa e é uma das razões de sua escolha. Certas jovens mostram-se incapazes de conhecer alguma vez um amor real e completo. Durante toda a vida procurarão um ideal inacessível.

É que há conflito entre o narcisismo da jovem e as experiências a que a sexualidade a destina. A mulher só se aceita como o inessencial com a condição de se reencontrar como o essencial em sua abdicação. Fazendo-se objeto, ei-la que se torna um ídolo em que se reconhece orgulhosamente; mas ela recusa a implacável dialética que lhe determina retornar ao inessencial. Quer ser um tesouro fascinante, não uma coisa a ser possuída. Gosta de apresentar- se como um maravilhoso fetiche carregado de eflúvios mágicos, e não se encarar como uma carne que se deixa ver, apalpar, machucar: e o homem ama a mulher como presa mas foge da ogra Deméter.

Orgulhosa por captar o interesse masculino, por suscitar a admiração, o que a revolta é ser em troca captada. Com a puberdade ela aprendeu a vergonha, e a vergonha continua misturada a seu coquetismo e a sua vaidade; os olhares dos homens lisonjeiam- na e ferem-na ao mesmo tempo; gostaria de ser vista tão somente na medida em que se mostra: os olhos são sempre demasiado penetrantes. Daí as incoerências que desnorteiam os homens: ela exibe seu decote, suas pernas e logo que as olham enrubesce, irrita-se. Diverte-se com provocar o macho, mas, se percebe que despertou nele o desejo, recua com nojo: o desejo masculino é uma ofensa tanto quanto uma homenagem; na medida em que se sente responsável por seu encanto, em que lhe parece exercê-lo livremente, ela se encanta com suas vitórias, mas, na medida em que sua carne, suas formas, seus traços são dados e suportados, deseja roubá-los a essa liberdade estranha e indiscreta que os deseja. Esse é o sentido profundo desse pudor original que interfere de maneira desconcertante nos coquetismos mais ousados. Uma menina pode ter ousadias espantosas porque não percebe que suas iniciativas a revelam em sua passividade. Logo que o percebe, assusta- -se e zanga-se. Nada é mais equívoco do que um olhar; existe à distância e graças a essa distância parece respeitoso: mas ele se apodera matreiramente da imagem percebida. A mulher em formação debate-se nessas armadilhas. Começa a abandonar-se, mas logo se crispa e mata o desejo em si. Em seu corpo ainda incerto, a carícia é sentida ora como um prazer terno, ora como uma cócega desagradável; um beijo comove-a primeiramente, e repentinamente a faz rir; ela faz com que, a cada complacência, suceda uma revolta; deixa-se beijar mas limpa a boca com afetação; sorridente e terna, torna-se subitamente irônica e hostil; faz promessas e deliberadamente as esquece. Assim é Mathilde de la Mole, seduzida pela beleza e as raras qualidades de Julien, desejosa de alcançar pelo amor um destino excepcional, mas recusando selvagemente o domínio dos sentidos e de uma consciência estranha; passa do servilismo à arrogância, da súplica ao desprezo; tudo o que dá pede imediatamente de volta. Assim é também essa "Monique", cujo retrato Marcel Arland traçou, que confunde a inquietação com o pecado, para quem o amor é uma abdicação vergonhosa, cujo sangue queima mas que detesta esse ardor e só se submete rebelando-se.

É exibindo uma natureza infantil e perversa que o "fruto verde" se defende contra o homem. Sob essa forma semiselvagem e semisensata, foi a jovem descrita muitas vezes. Colette, entre outros, pintou-a em Claudine à Vécole e igualmente em Blé en herbe com os traços da sedutora Vinca. Ela conserva um interesse fervoroso pelo mundo colocado à frente dela e sobre o qual reina como soberana; mas tem também curiosidade, um desejo sensual e romanesco pelo homem. Vinca arranha-se nas sarças, pesca camarões, sobe nas árvores e no entanto freme quando seu colega Phil lhe toca a mão; ela conhece a inquietação em que o corpo se faz carne e que é a primeira revelação da mulher como mulher; perturbada, começa a querer ser bonita: às vezes penteia-se, arrebica-se, veste-se de organdi vaporoso, diverte-se em ser coquete e em seduzir; mas como quer também existir para si e não somente para outrem, outras vezes arranja-se com vestidos velhos e desgraciosos, com calças mal ajustadas; há toda uma parte de si própria que condena o coquetismo e o considera uma demissão: por isso, propositadamente anda com os dedos sujos de tinta, mostra-se despenteada, desmazelada. Essas rebeliões causam-lhe um embaraço que ela sente com despeito: agasta- se com isso, enrubesce, torna-se duplamente desajeitada e fica com horror dessas tentativas frustradas de sedução. Nesse estádio, a jovem não quer mais ser criança, mas também não quer tornar- se adulta, censura em si mesma, ora sua puerilidade, ora sua resignação de fêmea. Coloca-se em atitude de constante recusa.

Esse é o traço que caracteriza a jovem e nos dá a chave da maior parte de suas condutas; não aceita o destino que a Natureza e a sociedade lhe designam; e no entanto não o repudia positivamente: acha-se interiormente dividida para entrar em luta com o mundo; limita-se a fugir da realidade ou a contestá-la simbolicamente. Cada desejo seu comporta uma angústia: está ávida por entrar na posse de seu futuro mas teme romper com o passado; almeja "ter" um homem, repugna-lhe ser sua presa. E atrás de cada temor dissimula-se um desejo: a violação causa- -lhe horror, mas ela aspira à passividade. Por isso está voltada à má-fé e a todos os ardis desta; por isso está predisposta a toda espécie de obsessões negativas que traduzem a ambivalência do desejo e da ansiedade.


continua página 91...

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O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?


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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.




"O que é uma mulher?"


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