sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (6)

  Simone de Beauvoir




02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




PRIMEIRA PARTE

FORMAÇÃO
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CAPÍTULO II
A   M O Ç A





continuando...


Entretanto, não se restringe a contestar negativamente a situação que lhe é imposta; procura também compensar-lhe as insuficiências. Se o futuro a assusta, não a satisfaz o presente; ela hesita em se tornar mulher; ela se agasta com não passar ainda de uma menina; já largou o passado mas não se empenhou ainda numa vida nova. Ocupa-se mas não faz nada, e porque não faz nada não tem nada, não é nada. É com comédias e mistificações que ela se esforça por encher esse vazio. Censuram- na muitas vezes por ser dissimulada, mentirosa, por inventar "histórias". O fato é que está destinada ao segredo e à mentira. Com 16 anos uma mulher já passou por penosas provações: puberdade, regras, despertar da sexualidade, primeiras inquietações, primeiras febres, medos, nojos, experiências equívocas, encerrou todas essas coisas no coração; aprendeu a guardar cuidadosamente seus segredos. O simples fato de ter de esconder suas toalhinhas higiênicas, de dissimular as regras já a conduz à mentira. Na novela Old Mortalily, C. A. Poster conta que, por volta de 1900, as jovens do sul dos Estados Unidos adoeciam engolindo misturas de sal e limão para sustar as regras quando iam ao baile: tinham medo de que os rapazes percebessem seu estado pelas olheiras, o contato das mãos, um odor talvez, e esse pensamento as transtornava. É difícil desempenhar o papel de ídolo, de fada, de princesa longínqua quando se tem entre as pernas uma toalhinha sanguinolenta; e de uma maneira mais generalizada quando se conhece a miséria original de ser corpo. O pudor, que é uma recusa espontânea de se deixar apreender como carne, beira a hipocrisia. Mas a mentira a que se condena a adolescente consiste principalmente em que lhe é preciso fingir ser objeto, e objeto prestigioso, quando se sente como uma existência incerta, dispersa, e que conhece suas taras. Arrebiques, anquinhas e enchimentos postiços, soutiens "reforçados" são mentiras; o próprio rosto vira máscara: nele suscitam com habilidade expressões espontâneas, ou uma passividade maravilhada; nada mais espantoso do que descobrir subitamente, no exercício de sua função feminina, uma fisionomia de que se conhece o aspecto familiar; sua transcendência se renega e imita a imanência; o olhar não mais penetra, reflete; o corpo não vive mais, espera; todos os gestos e sorrisos fazem-se apelo; desarmada, disponível, a jovem nada mais é do que uma oferenda, um fruto a ser colhido. É o homem que a incita a tais ludíbrios desejando ser ludibriado; depois, ele se irrita, acusa. Mas para com a menina sem ardis ele só demonstra indiferença e até hostilidade. Ele só é seduzido pelas que lhe preparam armadilhas: oferecendo-se, ela é que vigia a presa; sua passividade está a serviço de um empreendimento, ela faz de sua franqueza o instrumento de sua força; sendo-lhe proibido atacar francamente, fica adstrita às manobras e aos cálculos; e seu interesse consiste em parecer gratuitamente dada; por isso censuram-na por ser pérfida e traiçoeira: é verdade. Mas é verdade que é obrigada a oferecer ao homem o mito de sua submissão, por ele querer dominar. E pode-se exigir que ela abafe então suas reivindicações mais essenciais? Sua complacência tem mesmo que se achar pervertida desde a origem. Aliás, não é apenas mediante artifício calculado que ela trapaceia. Pelo fato de todos os caminhos lhe serem impedidos, de não poder fazer, de ter que ser, uma maldição pesa sobre ela. Quando criança, ela brincava de ser dançarina, de santa; mais tarde brinca de ser ela própria. Que é, ao certo, a verdade? No terreno em que se acha encerrada é uma palavra sem sentido. A verdade é a realidade desvendada e essa revelação se opera através de atos: mas ela não age. Os romances que conta a si mesma, e não raro conta também a outrem, parecem- lhe traduzir melhor as possibilidades que sente em si do que o medíocre relato da vida quotidiana. Ela não tem os meios de apreender sua medida: consola-se com comédias; constrói um personagem a que procura dar importância; tenta singularizar-se mediante extravagâncias porque não lhe é permitido individualizar- se em atividades definidas. Sabe-se sem responsabilidade, insignificante num mundo de homens: é por não ter nada de sério a fazer que "inventa histórias". Electra, de Giraudoux, é uma mulher cheia de histórias, porque é a Orestes somente que é dado realizar um homicídio com uma espada de verdade. Como a criança, a jovem consome-se em cenas e cóleras, torna-se doente, tem perturbações histéricas a fim de chamar a atenção, de ser alguém importante. É para ter importância que ela intervém no destino de outrem; qualquer arma serve; revela segredos, inventa- os, trai, calunia; precisa de tragédia em torno de si para se sentir viver, posto que não encontra socorro em sua própria vida. Por essa mesma razão é que é caprichosa; os fantasmas que criamos, as imagens com que nos embalamos são contraditórias; só a ação unifica a diversidade do tempo. A jovem não tem uma vontade verdadeira e sim desejos e salta de um a outro com incoerência. O que torna suas inconsequências por vezes perigosas é que, a cada momento, empenhando-se apenas em sonho, ela se empenha por inteiro. Situa-se num plano de intransigência, de exigência: tem o gosto do definitivo, do absoluto: na impossibilidade de dispor do futuro, quer atingir o eterno. "Não abdicarei nunca. Quererei sempre tudo. Tenho necessidade de preferir minha vida para aceitá-la", escreve Marie Lenéru. E tais palavras encontram eco na Antígona de Anouilh: "Quero tudo, imediatamente". Esse imperialismo infantil só se pode encontrar no indivíduo que sonha seu destino: o sonho abole o tempo e os obstáculos, precisa exasperar-se para compensar sua diminuta realidade; quem quer que tenha verdadeiros projetos conhece uma finidade que é o penhor de seu poder concreto. A jovem quer receber tudo porque nada depende dela. Daí seu caráter de "criança endiabrada" em face dos adultos e do homem em particular. Ela não admite as limitações que a inserção no mundo real impõe ao indivíduo: desafia-o a superá-las. Assim é que Hilde (Cf. Ibsen, Solness, o Construtor) espera que Solness lhe dê um reino: não cabe a ela conquistá-lo, por isso o quer sem fronteiras; ela exige dele que construa a torre mais alta do mundo "e que suba tão alto quanto o que constrói": ele hesita em subir, tem medo da vertigem; ela, que fica no solo e o contempla, nega a contingência e a fraqueza humana, não aceita que a realidade imponha um limite a seus sonhos de grandeza. Os adultos parecem sempre mesquinhos e prudentes a quem não recua diante de nenhum risco pelo fato de nada ter a arriscar; permitindo-se em sonho as mais extraordinárias audácias, desafia- os a igualarem-se a ela na verdade. Não tendo oportunidade de se pôr à prova, enfeita-se com as mais espantosas virtudes sem receio de desmentido.

Entretanto, é também dessa ausência de controle que nasce sua incerteza; ela sonha que é infinita; nem por isso é menos alienada no personagem que oferece à admiração de outrem; depende ele dessas consciências estranhas; ela está em perigo nesse duplo que identifica a si mas cuja presença suporta passivamente. Eis por que é suscetível e vaidosa. A menor crítica, uma zombaria põem-na totalmente em xeque. Não é de seu próprio esforço, é de um sufrágio caprichoso que ela extrai seu valor. Este não é definido por atividades singulares e sim constituído pela voz geral da reputação; parece, portanto, quantitativamente mensurável; o preço de uma mercadoria diminui quando se torna demasiado comum: de igual modo a jovem só é rara, excepcional, notável, extraordinária se nenhuma outra o é. Suas companheiras são rivais, inimigas; ela procura desvalorizá-las, negadas ; é ciumenta e maldosa.

Vê-se que todos os defeitos censurados na adolescente apenas exprimem sua situação. É condição penosa saber-se passiva e dependente na idade da esperança e da ambição, na idade em que se exalta a vontade de viver e de conseguir um lugar na terra; é nessa idade conquistadora que a mulher aprende que nenhuma conquista lhe é permitida, que deve renegar-se, que seu futuro depende do bel-prazer dos homens. No plano social, como no plano sexual, novas aspirações nela só despertam para permanecerem insatisfeitas; todos os seus impulsos de ordem vital ou espiritual são imediatamente freados. Compreende-se que tenha dificuldade em restabelecer seu equilíbrio. Seu humor instável, suas lágrimas, suas crises nervosas são menos a consequência de uma fragilidade fisiológica do que o sinal de sua profunda inadaptação.

Entretanto, acontece que a jovem assuma autenticamente essa situação da qual foge por mil caminhos inautênticos. Ela agasta por seus defeitos, mas espanta por vezes pelas suas qualidades singulares. Uns e outras têm a mesma origem. De sua recusa do mundo, de sua espera inquieta, de seu vazio, pode ela fazer um trampolim e emergir então em sua solidão e sua liberdade.

A jovem é secreta, atormentada, presa de conflitos difíceis. Essa complexidade enriquece-a; sua vida interior desenvolve-se mais profundamente que a de seus irmãos; mostra-se mais atenta aos movimentos de seu coração que assim se tornam mais matizados, mais diversos; tem mais sentido psicológico do que os rapazes voltados para objetivos exteriores. É capaz de dar peso a essas revoltas que a opõem ao mundo. Evita as armadilhas da seriedade e do conformismo. As mentiras convencionais de seu meio encontram-na irônica e clarividente. Põe à prova quotidianamente a ambiguidade de sua condição: para além dos protestos estéreis pode ter a coragem de recolocar em questão o otimismo estabelecido, os valores já prontos, a moral hipócrita e tranquilizadora. Esse o exemplo comovente que, no Moinho à Beira do Floss, apresenta essa Maggie em que George Eliot reencarnou as dúvidas e as corajosas revoltas de sua mocidade contra a Inglaterra vitoriana; os heróis — e em particular Tom, irmão de Maggie — afirmam com obstinação os princípios aceitos, petrificam a moral em regras formais: Maggie tenta reintroduzir nisso tudo um sopro de vida, derruba-os, vai ao fundo de sua solidão e emerge como uma liberdade pura para além do universo esclerosado dos homens.

Dessa liberdade, a adolescente só sabe, por assim dizer, tirar um proveito negativo. Entretanto, sua disponibilidade pode engendrar uma faculdade de receptividade preciosa. Ela se mostrará então dedicada, atenta, compreensiva, amorosa. É por essa generosidade dócil que se distinguem as heroínas de Rosamond Lehman. Em Invitation à da Valse, vê-se Olívia, ainda tímida e embaraçada, apenas coquete, escrutar com uma curiosidade comovida esse mundo em que entrará amanhã. Escuta de todo o coração os dançarinos que se sucedem junto dela, esforça-se por dar-lhes respostas que os satisfaçam, faz-se eco, vibra, acolhe tudo o que se oferece. A heroína de Poussière, Judy, tem a mesma qualidade atraente. Não renegou as alegrias da infância; gosta de banhar-se nua, à noite, no regato do parque; ama a Natureza, os livros, a beleza, a vida; não rende a si mesma um culto narcisista; sem mentira, sem egoísmo, não procura uma exaltação de seu eu através dos homens: seu amor é dom. Dedica-o a todo ser que a seduz, homem ou mulher, Jennifer ou Rody. Dá-se sem se perder: leva uma vida de estudante independente, tem seu modo próprio, seus projetos. Mas o que a distingue de um rapaz é sua atitude de espera, sua terna docilidade. De uma maneira sutil, é, apesar de tudo, ao Outro que se destina: o Outro tem a seus olhos uma dimensão maravilhosa, a ponto de se mostrar amorosa de todos os rapazes da família vizinha, da casa, da irmã, do universo deles; não é como colega, é como Outro que Jennifer a fascina. E ela encanta Rody e os primos pela sua aptidão a ajeitar-se a eles, a moldar-se segundo os desejos deles: ela é paciência, doçura, aceitação e silencioso sofrimento.

Diferente, mas cativante também por sua maneira de acolher em seu coração as pessoas a quem ama, é como se nos apresenta Tessa em Ninfa de Coração Fiel de Margaret Kennedy: a um tempo espontânea, arisca e dada. Recusa-se a abdicar o que quer que seja de si mesma: adornos, cosméticos, fantasias, hipocrisia, graças aprendidas e submissão de fêmea repugnam-lhe; deseja ser amada, mas não com máscara; dobra-se aos desejos de Lewis mas sem servilismo; compreende-o, vibra com ele, mas, se lhes acontece brigarem, Lewis sabe que não é com carícias que poderá submetê-la. Enquanto Florence, autoritária e vaidosa, se deixa vencer por beijos, Tessa consegue o prodígio de permanecer livre em seu amor, o que lhe permite amar sem hostilidade nem orgulho. Sua naturalidade tem todas as seduções do artifício; para agradar não se mutila nunca, não se diminui, não se estratifica em objeto. Cercada de artistas que empenharam toda a existência na criação musical, não sente nela esse demônio devorador; dedica-se inteiramente a amá-los, compreendê-los, ajudá-los: fá-lo sem esforço, por uma generosidade terna e espontânea e é por isso que permanece perfeitamente autônoma até nos momentos em que se esquece em favor de outrem. Graças a essa pura autenticidade, os conflitos da adolescência lhe são poupados: pode sofrer com a dureza do mundo, não se acha dividida no interior de si mesma; é harmoniosa como uma criança despreocupada e como uma mulher muito bem comportada. A jovem sensível e generosa, receptiva e ardente, está sempre preparada para se tornar uma grande amorosa.



continua página 100...

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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.




"O que é uma mulher?"



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