D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
Vol 1
O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
PRIMEIRA PARTE
LIVRO TERCEIRO
CAPÍTULO XXIII
LIVRO TERCEIRO
CAPÍTULO XXIII
Do que ao famoso D. Quixote sucedeu em Serra Morena, que foi uma das mais raras aventuras coutadas nesta verdadeira história.
Vendo-se D. Quixote tão mal, disse para o escudeiro:
— Sempre, Sancho, ouvi dizer que fazer bem a vilões é deitar agua no mar. Se eu tivesse estado pelo que me disseste, evitava-se o presente desgosto; mas o que está feito, feito está; já agora paciência; ficar-me-á de emenda para o futuro.
— Tanto se há-de Vossa Mercê emendar com esta, como é verdade ser eu turco; mas, como diz, que, se tivesse estado pelo que lhe eu preguei, se houvera forrado a este contratempo, creia-me agora, e evitará outro maior, porque lhe digo que para a Santa Irmandade escusadas são cavalarias. Quantos cavaleiros andantes há, valem para ela tanto como dois maravedis; e saiba que já até a modo que sinto zunir-me às orelhas as setas dos suplícios em que lá metem a gente.
— És covarde de tua natureza, Sancho meu — disse D. Quixote — mas, para que não me chames teimoso, nem digas que nunca faço o que me aconselhas, desta vez quero comprazer-te, apartandome da fúria que tanto receias; mas com uma condição: que jamais enquanto eu vivo for, nem depois da minha morte, confessarás, a quem quer que seja, que me retirei e fugi deste perigo por medo, pois só o fiz para condescender contigo; que, se outra coisa disseres, serás um mentiroso, e desde agora para então, e desde então para agora, te desminto, e digo que mentes e mentirás todas as vezes que o proferires ou o pensares; e não me repliques mais, que só em cuidar que me esquivo a algum perigo, especialmente deste que parece que leva um és não és de sombra de medonho, estou já quase para não arredar pé, e para ficar sozinho à espera não só da Santa Irmandade que dizes e receias, mas de todos os irmãos das doze tribos de Israel, e de todos os sete Macabeus, e de Castor e Pólux, e, ainda por cima, de todos os irmãos e irmandades que no mundo haja.
— Senhor meu — respondeu Sancho — retirar-se não é fugir; nem no esperar vai prova de sisudeza quando a coisa é mais perigosa que bem figurada. Próprio dos sábios é o pouparem-se de hoje para amanhã; e saiba Sua Mercê que um ignorante e rústico pode mesmo assim acertar uma vez por outra com o que chamam regras de bem governar. Portanto não lhe pese de haver tomado o meu conselho; monte no Rocinante, se pode, ou eu o ajudarei, e siga-me, que me diz uma voz cá dentro que mais úteis nos podem ser nesta ocasião os pés que as mãos.
Montou D. Quixote sem mais réplica, e, indo adiante Sancho no seu asno, se meteram à Serra Morena, que era já próxima dali, levando Sancho o fito em atravessá-la toda, para irem sair ao Viso ou Almodóvar do Campo, e esconderem-se alguns dias por aquelas brenhas, para não serem descobertos, se a Irmandade lhes viesse no alcance.
Animou-se neste propósito, por ter visto que na refrega dos galés se tinham salvado as vitualhas que sobre o asno vinham, o que ele capitulou de milagre, à vista das tomadias e procuras que os forçados tinham feito.
Nessa noite deitaram até ao meio da Serra Morena aonde a Sancho pareceu conveniente que pernoitassem, e até alguns dias mais, pelo menos todos os que durasse a matalotagem que levava; pelo que se acomodaram para dormir entre duas penhas no meio de uma grande espessura de sobreiros. Porém a sorte fatal, que, segundo o cuido dos que se não alumiam de verdadeira fé, tudo encaminha, risca e dispõe a seu talante, ordenou que Ginez de Passamonte, o afamado falsário e ladrão, que da cadeia se tinha escapado pela doidice de D. Quixote, acossado do medo da Santa Irmandade (e com razão), se lembrou de homiziar-se também naquelas serranias; e levaram-no o seu destino e o seu medo para a mesma parte em que D. Quixote e Sancho tinham esperado achar valhacouto, a tempo e horas que ainda os pôde conhecer.
Deixou-os pegar no sono; e, como os malvados são sempre desagradecidos, e a necessidade persuade a fazer o que se não deve, e um recurso à mão se não há-de enjeitar fiando nas incertezas do futuro, Ginez, que não era nem agradecido nem dos melhormente intencionados, resolveu furtar o asno a Sancho Pança, não fazendo caso de Rocinante, em razão de ser prenda tão fraca para empenhada como para vendida.
Dormindo pois Sancho, furtou-lhe a alimária, e antes que amanhecesse já estava bem longe de o poderem achar.
Saiu a aurora alegrando a terra, e entristecendo a Sancho, por achar de menos o seu ruço. Vendo-se sem ele, começou a fazer o mais triste e dolorido pranto do mundo; e tanto, que D. Quixote despertou com o alarido, e percebeu por entre ele estas palavras:
— Ó filho das minhas entranhas, nascido na minha mesma casa, entretenimento de meus filhos, regalo de minha mulher, inveja dos meus vizinhos, alívio dos meus trabalhos, e finalmente meio mantenedor de minha pessoa, porque, com vinte e seis maravedis que me ganhavas cada dia, segurava eu metade das minhas despesas!
D. Quixote, que viu o pranto, e lhe soube a causa, consolou a Sancho com as melhores razões que pôde, e lhe pediu que tivesse paciência, prometendo-lhe uma ordem escrita para que lhe dessem em sua casa três burricos, de cinco que lá tinha deixado.
Respirou Sancho com a promessa, limpou as lágrimas, moderou os soluços, e agradeceu a D. Quixote a mercê que lhe fazia.
O amo como entrou por aquelas montanhas, alegrou-se-lhe o coração, parecendo-lhe aqueles lugares acomodados para as aventuras que buscava. Vinham-lhe à memória os maravilhosos acontecimentos que em soledades e asperezas semelhantes haviam ocorrido a cavaleiros andantes. Nestas coisas ia pensando tão embevecido e alheado nelas, que nenhuma outra lhe lembrava, nem Sancho levava outro cuidado (logo que lhe pareceu ser seguro o sítio por onde caminhavam) senão o de satisfazer o estômago com os restos que do despojo clerical lhes tinha ficado, e em que o ladrão não atentara; e assim ia atrás do amo carregado com tudo que o ruço havia de levar e de que ele se ia aliviando com passá-lo de cima das costas para dentro do ventre. Enquanto naquilo ia, não pensava noutras aventuras.
Nisto levantou os olhos, e viu que o seu fidalgo estava parado, procurando, com a ponta da chuça, levantar não sei que volume que por terra jazia; pelo que se deu pressa em chegar a ele para o ajudar, se preciso fosse. Chegando, viu-o já a levantar com a chuça um coxim e uma maleta unida a ele, meio podres, ou podres e inteiramente desfeitos; mas tanto pesavam, que foi mister a força de Sancho para os erguer.
Mandou-lhe o amo que visse o que encerrava a maleta; com muita presteza assim o fez Sancho; e, ainda que vinha fechada com uma cadeia e seu cadeado, pelos buracos da fazenda podre viu o que dentro havia, que eram quatro camisas de holanda muito fina, e outras roupas de linho não menos apuradas que limpas, e num lencinho achou uma boa maquia de escudos de ouro. Assim como os bispou, disse:
— Bendito seja o céu, que enfim nos depara uma aventura de proveito.
Continuando a buscar, achou um livrinho de lembranças ricamente arranjado. Pediu-lho D. Quixote, e mandou-lhe que o dinheiro o guardasse ele para si. Beijou-lhe as mãos Sancho, pela generosidade, e, deslaçando a maleta, pregou com todo o seu conteúdo para o bendito alforje.
D. Quixote, que em tudo esteve reparando, disse:
— Parece-me, Sancho (nem outra coisa é possível), que algum caminhante extraviado passaria por esta terra, e, assaltado de malfeitores, fora talvez por eles morto, que por isso trariam a enterrar nesta tão escondida parte.
— Não pode tal ser — disse Sancho; — se foram ladrões, não lhe tiveram deixado este dinheiro.
— Dizes bem — obtemperou D. Quixote; — então não adivinho o que isto fosse. Mas espera: vamos ver se neste livrinho de lembranças virá alguma coisa escrita para nos orientarmos no enigma.
Abriu-o; e a primeira coisa que se lhe deparou escrita como em borrão, ainda que de muito boa letra, foi um soneto. Pôs-se a lê-lo para que também Sancho o ouvisse; dizia assim:
Ou não cabe no amor entendimento,
ou passa de cruel; e a minha pena
não iguala à razão que me condena
ao gênero mais duro de tormento.
Porém se Amor é deus, conhecimento
de tudo tem, e condição amena.
Qual pois o poder bárbaro que ordena
a dor atroz que adoro, e em vão lamento?
Sê-lo-eis vós, Fílis? inda desacerto;
um mal tamanho em tanto bem não cabe,
nem de um céu pode vir tanta ruína.
Sinto, e sei que o meu fim já tenho perto,
porque em mal cuja causa se não sabe
é milagre que acerte a medicina.
— Por essa trova — disse Sancho — não se pode saber nada, salvo se por essa pontinha do fio, que aí vem, se desembrulhar o novelo.
— Que fio percebes tu aqui? — disse D. Quixote.
— Parece-me — disse Sancho — que Vossa Mercê falou aí de fio.
— Fílis é que eu disse, e não fio — respondeu D. Quixote — e Fílis deve ser por força a dama de quem se queixa o autor deste soneto; e menos mau poeta que ele é ou pouco entendo eu da arte.
— Visto isso, também Vossa Mercê entende de trovas — disse Sancho.
— E mais do que te parece — respondeu D, Quixote; — vê-lo-ás quando levares à minha senhora Dulcinéia del Toboso uma carta minha escrita em verso do princípio até ao fim, porque hás-de saber, Sancho, que todos ou quase todos os cavaleiros andantes dos passados tempos eram grandes trovadores e grandes músicos, que ambas estas habilidades ou graças infusas (por melhor dizer) andam anexas aos namorados andantes, se bem que as coplas dos cavaleiros antigos tinham mais de estro, que de apuro.
— Leia para diante Vossa Mercê, que talvez dê com alguma coisa que satisfaça.
Voltou D. Quixote a folha, e disse:
— Isto agora é prosa, e parece carta.
— Carta mandadeira, senhor? — perguntou Sancho.
— Pelo princípio não parece senão de amores — respondeu D. Quixote.
— Pois leia Vossa Mercê alto — disse Sancho — que eu morro-me por estas coisas de amores.
— Com todo o gosto — disse D. Quixote.
E lendo-a alto como Sancho lhe pedia, viu que dizia desta maneira:
“A tua falsa promessa, e a minha certa desventura me levam a sítios donde antes chegarão aos teus ouvidos novas da minha morte, do que as razões das minhas queixas. Deixaste-me, ó ingrata, por quem tem mais; porém não vale mais do que eu; mas, se a virtude fora riqueza que se estimasse, não invejara eu ditas alheias, nem chorara desditas próprias. O que levantou a tua formosura hão-no derribado as tuas obras. Por ela entendi que eras anjo, e por elas conheço que és mulher. Fica-te em paz, causadora da minha guerra, e o céu permita que os enganos do teu esposo te fiquem sempre encobertos, para que tu não fiques para sempre arrependida do que fizeste, e eu não tome vingança do que não desejo.”
Concluída a leitura da carta, disse D. Quixote:
— Esta carta ainda menos nos dá a conhecer, do que nos deram os versos, e só sim que quem a escreveu era algum amante desprezado.
E, folheando quase todo o livrinho, achou outros versos e cartas de que pôde ler parte, e parte não; mas em geral eram tudo queixas, lamentos, desconfianças, gostos e desgostos, favores e desdéns, os favores festejados e os desdéns carpidos.
Enquanto D. Quixote revolvia o canhenho, revolvia Sancho a maleta, sem deixar recantinho em toda ela, nem no coxim, que não esquadrinhasse, nem costura que não descosesse, nem nó de lã que não carpeasse, para lhe não escapar nada por falta de diligência e cuidado; tal sofreguidão tinha nele despertado a melgueira dos escudos, que passavam de cem; e, ainda que não achou mais, já com isso deu por bem empregados os boléus da manta, os vômitos do bálsamo, as bênçãos das estacas, as punhadas do arrieiro, o desaparecimento dos alforjes, o roubo do gabão, e toda a fome, sede e cansaço que passara no serviço de seu bom senhor, entendendo que estava pago e repago, com a mercê de lhe entregar a rica veniaga.
Com grande desejo ficou o cavaleiro da Triste Figura de saber quem seria o dono da maleta, conjecturando pelo soneto, e carta, pelo dinheiro em ouro, e pelas boas camisas, que poderia tudo pertencer a algum namorado de grande conta, a quem desdéns e maus tratos da sua dama teriam conduzido a algum termo desesperado. Mas como por aquele sítio inabitável e escabroso não aparecia viva alma com quem se pudesse informar, não tratou de mais, que de seguir adiante, sem levar outro caminho senão o que agradava a Rocinante, que era o por onde ele melhor podia andar. Ia sempre com as fantasias infalíveis de que por aqueles matos lhe não poderia faltar alguma estranha aventura.
Indo pois com aquela ideia, viu que por cima de um pequeno teso, que diante dos olhos se lhe oferecia, ia saltando um homem de penha em penha, e de mata em mata, com estranha ligeireza. Figurou-se-lhe que ia nu, a barba negra e espessa, cabelos bastos e revoltos, pés descalços e as pernas sem cobertura alguma, senão só uns calções, ao que parecia, de veludo, de cor ruiva, mas tão esfarrapados, que por muitas partes mostravam as carnes. Trazia a cabeça descoberta; e, ainda que passou com a ligeireza que já se disse, todas estas minudências viu e notou o cavaleiro da Triste Figura.
Quis segui-lo, mas não pôde, porque não era para a fraqueza de Rocinante correr por aquelas fragosidades, mormente sendo ele de seu natural mui tardo e fleumático.
Logo imaginou D. Quixote ser aquele o dono do coxim e da maleta; e assentou consigo buscá-lo, ainda que tivesse de andar um ano por aquelas montanhas até o alcançar. Assim, mandou a Sancho atalhasse por uma parte da montanha, enquanto ele iria pela outra, pois poderia ser que assim topassem com aquele homem, que tão apressado se lhes tinha furtado à vista.
— Isso é que eu não posso fazer — respondeu Sancho — porque em me apartando de Vossa Mercê entra logo comigo o medo, com toda a casta de sobressaltos e visões; e fique-lhe isto daqui em diante de lembrança, para nunca me apartar de si nem uma polegada.
— Assim será — disse o da Triste Figura — muito estimo que te queiras valer do meu ânimo, que nunca te há-de faltar, ainda que a ti te falte a alma do corpo. Vem atrás de mim a pouco e pouco, ou como puderes, e faze dos olhos lanternas; rodearemos toda esta pequena serra, e porventura toparemos com o indivíduo que avistamos, o qual, sem falta nenhuma, não é outro senão o dono do nosso achado.
— Muito melhor seria não o buscar — disse Sancho — porque, se o achamos, e der o acaso que seja ele o dono do dinheiro, claro está que tenho de lhe restituir; e assim o melhor será desistirmos dessa inútil diligência, e ficá-lo eu possuindo de boa fé, até que por alguma outra via menos curiosa, e sem essas diligências, se nos depare o verdadeiro senhor; e poderá ser isso quando o eu já tiver gasto; e então onde o não há, El-Rei o perde.
— Enganas-te, Sancho — respondeu D. Quixote; — já que entramos em suspeita, e quase certeza, de quem é o dono, estamos obrigados a procurá-lo e a restituir; e, ainda que o não buscássemos, a veemente suspeita que temos de que ele o seja já nos põe em tamanha culpa, como se realmente o fosse. Portanto, Sancho amigo, não te pese o rastrearmo-lo; maior pena do que essa tua fora a minha, se o não acháramos.
E assim picou o Rocinante, seguindo-o Sancho a pé, e carregado, graças ao Ginezinho de Passamonte.
Havendo rodeado parte da montanha, acharam num regato, caída, morta e meio comida dos cães e picada dos corvos, uma mula ensilhada e enfreada, o que tudo os confirmou ainda mais nas suspeitas de que o fugitivo era o dono da mula e do coxim. Estando a olhar para ela, ouviram uns assobios, como de pastor de gado, e inesperadamente avistaram à esquerda uma boa quantidade de cabras, e atrás delas, pelo alto do monte, o cabreiro que as guardava, que era um homem ancião.
Bradou-lhe D. Quixote, rogando-lhe que descesse donde estava. Respondeu ele a gritos, perguntando quem os havia trazido àquele lugar, poucas vezes pisado, ou nunca senão de pés de cabras, ou de lobos, ou outras feras, que por ali não faltavam. Respondeu-lhe Sancho que descesse, que de tudo se lhe daria conta.
Desceu o cabreiro; e, chegando onde D. Quixote estava, disse:
— Aposto que está reparando na mula de aluguer morta ali naquele barranco; seis meses há que ela para ali jaz. Digam-me: toparam por aí o dono dela?
— Ninguém encontramos — respondeu D. Quixote — senão só um coxim e uma maletita que achamos não longe daqui.
— Também eu a achei — respondeu o cabreiro — mas nunca me atrevi a erguê-la, nem a chegar-lhe muito ao pé, receando não fosse alguma entrega, e que me tomassem por ladrão, que o diabo é muito fino, e debaixo dos pés se levanta a um homem coisa em que tropece e caia, sem saber como nem como não.
— Isso mesmo é o que eu digo — respondeu Sancho — que também eu a achei, e não quis chegar a ela mais perto que um tiro de pedra; deixei-a ficar como estava; não quero rabos de palha, nem cão com guizo.
— Dizei-me cá, bom homem — disse D. Quixote — sabeis vós quem será o dono destas prendas?
— O que só posso dizer — respondeu o cabreiro — é que haverá agora uns seis meses, pouco mais ou menos, que chegou a uma malhada de pastores, tanto como três léguas daqui, um mancebo de gentil presença e bom trajo, montado nessa mula que para aí está morta, e com o mesmo coxim que me dizeis ter achado, e em que não pusestes mão. Perguntou-nos qual era desta serrania a parte mais brava e escondida. Dissemos-lhe que era esta onde agora estamos; e é verdade, porque, se entrardes meia légua mais para dentro, bem pode ser que nunca mais deslindeis saída. Admirado estou eu de terdes podido chegar até aqui, porque para este lugar não há caminho nem atalho. Ora como tal ouviu o mancebo, voltou as rédeas, e se dirigiu e tomou para o lugar que lhe assinalamos, deixandonos a todos contentes da sua bela presença, e admirados da sua pergunta, e da pressa com que o vimos caminhar em direitura às brenhas. Desde então nunca mais lhe pusemos a vista em cima. Alguns dias depois saiu ao caminho a um dos nossos pastores, e, sem lhe dizer palavra, saltou nele com muitas punhadas e pontapés, e passou logo a uma jumentinha que lhe levava o fardel, e lhe tirou quanto pão e queijo achou; e, concluído aquilo, com estranha ligeireza se tornou a sumir na serra. A esta notícia, alguns cabreiros de nós outros nos pusemos a procurá-lo quase dois dias pelo mais cerrado do monte, até que afinal demos com ele metido no oco de um alentado sobreiro. Surdiu-nos dali e veio para nós com muita mansidão, com o fato já roto e o rosto desfigurado e queimado do sol, tanto que mal se podia conhecer pelo mesmo. Só os vestidos, ainda que esfarrapados, mas conformes à notícia que dele tínhamos, é que nos deram a entender que era o mesmo que buscávamos. Saudou-nos cortesmente, e em poucos e bons termos nos disse que não nos maravilhássemos de o ver andar daquela sorte, porque assim lhe convinha para cumprir certa penitência, que por seus muitos pecados lhe havia sido imposta. Pedimos-lhe que nos dissesse quem era, mas não foi possível resolvermo-lo a tal. Pedimos-lhe também que em precisando de sustento, pois não podia viver sem ele, nos dissesse aonde o acharíamos, porque com muito amor e cuidado lho iríamos levar; e que, se também isto não fosse do seu gosto, pelo menos saísse e pedi-lo aos pastores, em vez de lho tirar por força. Agradeceu o nosso oferecimento, pediu perdão do passado, e prometeu daí em diante obtê-lo pelo amor de Deus, sem incomodar a pessoa alguma. Pelo que tocava à sua habitação, disse que não tinha outra, senão aquela que se lhe deparava onde quer que a noite o colhia; e, acabando de falar, desatou num choro tão sentido, que, só se fôramos de pedra os que lho ouvimos, poderíamos deixar de o acompanhar, por nos lembrar como o víramos da primeira vez tão outro de agora, porque já lhes tenho dito que era um moço mui gentil e engraçado, e em seu falar, cortês e concertado, mostrava ser bem nascido e pessoa mui de corte, que, ainda que éramos uns rústicos os que o ouvíamos, tanto avultava o seu donaire, que até a rústicos se dava a conhecer. Estando no melhor da sua prática, parou e emudeceu, cravou os olhos no chão por um bom espaço, em que todos estivemos quietos e suspensos, esperando em que pararia aquele arroubamento que tanto nos lastimava, porque pelo que lhe víamos fazer de abrir os olhos, tê-los fitos no chão e sem pestanejar um grande pedaço, e outras vezes cerrá-los, mordendo os lábios, e arqueando os sobrolhos, facilmente percebemos que algum acesso de loucura o havia tomado. Depressa nos mostrou que nos não enganávamos, porque se levantou furioso do chão onde se tinha deitado, e arremeteu com o primeiro que achou à mão, com tal denodo e raiva, que, se lhe não acudíramos, o matara a murros e dentadas; e tudo aquilo fazia dizendo ao mesmo tempo: “Ah! fementido Fernando! aqui, aqui me hás-de pagar as injustiças que me fizeste; estas mãos te hão-de arrancar o coração, receptáculo de quantas maldades há, e especialmente de traição e enganos.” E a estas ajuntava outras razões todas encaminhadas a dizer mal daquele tal Fernando, e a pô-lo por traidor e fementido. Deixamo-lo não pouco pesarosos, e ele, sem dar mais palavra, se partiu de entre nós, e se emboscou à carreira por estes matos e brenhas, por modo que não houve podermos segui-lo. Daqui entendemos que à mania tinha intervalos, e que algum chamado Fernando lhe fizera provavelmente alguma tamanha malfeitoria, como se via pelo desfecho em que dera. De então para cá se reconheceu que assim era, pelas vezes (que muitas têm sido) que ele tem saído ao caminho, umas a pedir aos pastores que lhe dêem do que levam para comer, e outras a tirar-lho à força, porque, quando está com o ataque da loucura, ainda que os pastores lho ofereçam de bom grado, não o admite, e há-de por força tomar-lho a mal; e, quando está com siso, pede-o por amor de Deus, cortês e comedidamente, e dá muitos agradecimentos, e bem regados de lágrimas. E em verdade vos digo, senhores meus — prosseguiu o cabreiro — que ontem concertamos, eu e outros quatro pegureiros, os meus dois criados, e dois amigos meus, de o buscarmos até darmos com ele, e, depois de achado, levarmo-lo (por vontade ou por força) à vila de Almodóvar, que fica a oito léguas daqui, e lá se curará, se é que o seu mal tem cura, ou saberemos quem é, quando estiver em seu juízo, e se tem parentes a quem se dar parte da sua desgraça. Aqui está, senhores, o que sei dizer-vos para satisfazer a vossa curiosidade; e entendei que o dono das prendas que achastes é o mesmo que vistes passar tão ligeiro e descomposto — (porque D. Quixote já lhe tinha dito como era que aquele homem se levava aos saltos pela serra).
Admirado ficou o cavaleiro com a relação do pastor; e aumentou-se nele o desejo de saber quem era o desditado louco, e assentou no que já lhe ocorrera, que era buscá-lo por toda a montanha, sem deixar recanto nem cova por explorar.
Melhor porém o fez a sorte, do que ele esperava, porque naquele mesmo instante apareceu por uma quebrada da serra o fugitivo mancebo, que vinha falando entre si coisas que não podiam ser entendidas de perto, quanto mais de longe. O seu trajo era o que já se há descrito. Só quando se acercou um pouco mais, percebeu D. Quixote que um colete dilacerado que trazia era de âmbar; por onde acabou de entender que pessoa de tais hábitos não devia ser de qualidade ínfima.
Chegando a eles o mancebo, saudou-os com uma voz desentoada e rouca, porém com muita cortesia. D. Quixote correspondeu-lhe à saudação com iguais termos, e, apeando-se do Rocinante, com gentil porte e bom ar, se lançou a abraçá-lo, e o reteve por um bom espaço estreitamente entre os braços, como se fora conhecido seu já de bons tempos.
O outro, a quem poderemos chamar o Roto da Má Figura, como a D. Quixote o da Triste, depois de se ter deixado abraçar, o apartou um pouco de si, e, postas as mãos sobre os ombros de D. Quixote, o esteve encarando como quem procurava reconhecê-lo, não menos admirado talvez de ver a figura, o portamento e as armas do cavaleiro, do que D. Quixote o estava de o ver a ele.
Em suma: o primeiro que depois do abraço rompeu o silêncio foi o Roto, o qual disse o que adiante se vai saber.
continua página 137...
___________________Leia também:
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Prólogo
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo IX
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XV
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI
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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXIII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXIV
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D. QUIXOTE
VOL. I
Cervantes
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte
(1605)
Miguel de Cervantes [Saavedra]
(1547-1616)
Tradução:
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875)
Visconde de Castilho
Edição
eBooksBrasil www.ebooksbrasil.com
Versão para eBook
eBooksBrasil.com
Fonte Digital
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com
(1999, 2005)
Copyright
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho
António Feliciano de Castilho
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879)
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914)
Edição: 2005 eBooksBrasil.com
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