segunda-feira, 22 de maio de 2023

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - O processo de Champmathieu / V — Conserto nas rodas

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sétimo — O processo de Champmathieu


V — Conserto nas rodas


Naquela época, o serviço do correio entre Arras e Montreuil-sur-mer, era feito ainda por meio de pequenas mala-postas do tempo do império, que consistiam nuns cabriolets de duas rodas, forrados por dentro de couro branco, suspensas em molas de bomba e só com dois lugares, um para o condutor da mala, outro para o viajante. As rodas eram armadas desses longos cubos ofensivos, que conservam as outras carruagens a distância, e que ainda se vêem nas estradas da Alemanha. Por trás do cabriolet ficava colocada a mala, imensa caixa oblonga, que fazia corpo com ele. A caixa era pintada de negro e o cabriolet de amarelo.
Essas carruagens, com as quais não há hoje nada que se pareça, tinham qualquer coisa de disforme e, quando se avistavam ao longe, rastejando por alguma estrada no extremo horizonte, assemelhavam-se a esses insectos que, creio eu, se chamam térmites [1], os quais com uma cinta de diminutas proporções arrastam a parte posterior do corpo, excessivamente mais grossa. Todavia a velocidade destes veículos era grande. A mala-posta, que partia de Arras todas as noites à uma hora, depois da chegada do correio de Paris, chegava a Montreuil-sur-mer pouco antes das cinco horas da manhã.
Naquela noite, a mala-posta que se dirigia para Montreuil-sur-mer, pela estrada de Hesdin, ao dobrar a esquina de uma rua, na ocasião em que ia a entrar na cidade, embaraçou-se num tilbury pequeno, puxado por um cavalo branco, que vinha em sentido inverso, e no qual apenas havia uma única pessoa, um homem embrulhado numa manta. A roda do tilbury recebeu um choque bastante violento; o condutor da mala gritou ao homem que ia dentro, que parasse, mas ele não fez caso e continuou o seu caminho a galope.

— Irra! Aquele homem vai com uma pressa dos diabos! — disse o condutor

O homem que levava tamanha pressa, é o que nós ainda há pouco vimos debatendo-se em convulsões dignas por certo de compaixão.
Aonde ia ele? Não o poderia dizer. Porque levava tanta pressa? Não o sabia. Caminhava ao acaso, pelo caminho que via diante de si. Mas para onde? Sem dúvida para Arras; mas ia talvez também a outra parte. Sentia-o por momentos e estremecia. Penetrava na escuridão da noite como num pego Havia alguma coisa que o impelia e que o atraía. O que nele se passava ninguém o poderia dizer, e todos o compreenderão. Qual é o homem que não tem entrado, ao menos uma vez na vida, na escura caverna do inesperado e imprevisto?
No fim de tudo não tinha resolvido, decidido, assentado, nem feito coisa alguma. Nenhum dos atos da sua consciência fora definitivo. Estava, mais do que nunca, como no primeiro momento.
Que motivo o levava a Arras?
Madelaine repetia o que já a si mesmo dissera, alugando o cabriolet de Scaufflaire: que qualquer que fosse o resultado, não havia o mínimo inconveniente em ver com os próprios olhos, em julgar por si mesmo as coisas; que isto era prudente, porque precisava de saber o que ocorria; que nunca lhe seria possível decidir coisa alguma sem ter observado e escutado; que de longe os outeiros parecem montanhas; que no fim de contas quando tivesse visto o tal Champmathieu, com certeza um miserável sentiria provavelmente a consciência mais aliviada de o deixar ir para as galés em seu lugar; que na verdade ali encontraria o tal Javert, o tal Brevet, o tal Cheneldieu e Cochepaille, exforçados que o tinham conhecido, mas que incontestavelmente, o não reconheceriam.
Ora, que ideia! Javert estava a cem léguas da verdade: que todas as conjecturas e suposições convergiam sobre Champmathieu, e que coisa nenhuma é tão irascivelmente teimosa como as conjecturas e suposições; e que, finalmente, não corria o menor perigo.
Que, sem dúvida, era um passo bem intrincado da sua vida, mas que havia de sair dele; que no fim de tudo, por pior que o seu destino quisesse ser, tinha-o seguro, dominava-o. Era a este pensamento que ele se agarrava com todas as forças. Mas, afinal, para dizermos tudo; estimaria não ir a Arras. Contudo, ia.
Sem deixar de pensar chicoteava o cavalo, o qual trotava com o trote regular e seguro que vence duas léguas e meia por hora.
A maneira que o cabriolet avançava, sentia ele em si o que quer que era de reanimador.
Ao nascer do dia estava numa campina; a cidade de Montreuil-sur-mer ficava-lhe já muito longe. Olhou para o horizonte que começava a alvorecer e encarou, sem as ver, todas as feias figuras duma aurora de Inverno, que lhe passavam por diante dos olhos. O começo do dia tem os seus espectros como o fim dele. Não os via, mas a seu pesar, e por uma espécie de penetração quase tisica, os negros vultos das árvores e das colinas juntavam-lhe ao estado violento da alma o que quer que era de taciturno e sinistro.
Cada vez que passava por uma casa das que orlam muitas vezes as estradas, dizia consigo: «Contudo há ali gente que ainda está dormindo!»
O trotar do cavalo, o ranger dos arreios e o rodar do carro, produziam um ruído suave monótono. Estas coisas são todas encantadoras quando se está alegre; mas quando se está triste são lúgubres.
Era já dia claro quando chegou a Hesdin. Parou à porta de uma estalagem, para deixar descansar o cavalo e mandar-lhe dar a ração. O cavalo, como dissera Scaufflaire, era dos da raça pequena do Boulonnais, de cabeça, pescoço e ventre muito grandes, mas de amplo peitoral, anca larga, jarrete delgado e seco e o casco sólido; raça feia mas robusta e sã.
O excelente animal andara cinco léguas em duas horas e não lhe escorria das ancas uma só gota de suor. Madelaine não se apeara.
O moço da cavalariça que trazia a aveia, baixou-se de repente e começou a examinar a roda esquerda.

— O senhor tem muito que andar? — perguntou ele.

O viajante respondeu, quase maquinalmente, e sem sair da sua preocupação:

— Porquê?

— Vem de muito longe?

— De cinco léguas distante daqui.

— Ora esta!

— Porque se admira?

O moço curvou-se novamente, permaneceu por um momento silencioso com os olhos fitos na roda e depois endireitou-se, dizendo:

— É porque está aqui uma roda que, segundo o senhor diz, rodou cinco léguas, mas que, com toda a certeza, não rodará nem mais um quarto de légua.

Madelaine apeou-se.

— Que me diz? »

— Digo-lhe que é um milagre que o senhor tenha percorrido cinco léguas, sem que caísse com o seu cavalo para dentro de algum barranco da estrada. Ora veja.

A roda estava com efeito muito danificada. O embate da mala-posta deslocara-lhe dois raios e fizera-lhe saltar a porca que no cubo segurava o eixo.

— Diga-me — perguntou ele ao rapaz — há aqui algum carpinteiro de carros?

— Há, sim, senhor.

— Faz-me favor de o ir chamar?

— É aqui ao pé. Olá! Ó mestre Bourgaillard!

Mestre Bourgaillard, carpinteiro de carros, que estava no limiar da sua porta, foi logo examinar a roda, e fez a careta dum cirurgião ao contemplar uma perna quebrada.

— Poderá vossemecê concertar esta roda imediatamente?

— Posso, sim, senhor.

— E quando poderei continuar a minha jornada?

— Amanhã.

— Amanhã!

— Isso leva um dia inteiro de trabalho. O senhor tem muita pressa?

— Muita! Não me posso demorar mais duma hora.

— Isso é que não pode ser.

— Pagarei o que quiser.

— É impossível.

— E se me demorar duas horas?

— Hoje é impossível. É preciso fazer-lhe dois raios novos e o cubo. Antes de amanhã não poderá partir.

— Mas o negócio que me obriga a partir não pode esperar para amanhã. E se em lugar de se concertar a roda, ela fosse substituída por outra?

— Substituída como?

— Vossemecê não é carpinteiro de carros?

— Sou, sim, senhor.

— Então não tem uma roda que me venda? Deste modo poderei continuar a minha jornada imediatamente.

— Uma roda de sobresselente?

— Sim.

— O que eu não tenho é uma roda feita de propósito para o seu cabriolet. Duas rodas fazem um par não se igualam assim à toa.

— Nesse caso venda-me um par de rodas.

— Mas, senhor, nem todas as rodas servem em todos os eixos.

— Experimente sempre.

— É inútil, senhor. Não tenho para vender senão rodas para carroças. Estamos aqui numa terra muito pequena.

— Tem vossemecê um cabriolet que me queira alugar?

O mestre carpinteiro, que logo à primeira vista conhecera que o tilbury era de aluguer, encolheu os ombros e disse:

— O senhor arranja bem os cabriolets que lhe alugam! Ainda que eu tivesse algum não lhe alugava.

— Pois sim; e para me vender?

— Não tenho nenhum.

— O quê! Pois não há ao menos uma carroça qualquer?

— Bem vê que não sou difícil de contentar. Já lhe disse que isto aqui é uma terra muito pequena. Tenho aí a guardar uma carruagem muito velha, dum burguês da cidade, que só se serve dela uma vez cada mês. Eu alugava-lhe de boa vontade; que me importava isso? Mas era preciso que o dono o não visse passar; e depois é uma caleche: seriam precisos dois cavalos.

— Alugarei cavalos de posta.

— Aonde é que o senhor vai?

— A Arras.

— E quer lá chegar hoje?

— Por força.

— Com cavalos de posta?

— Por que não?

— E não lhe faz diferença chegar a Arras às quatro horas da manhã?

— Isso de modo nenhum.

— É que deve lembrar-se de uma coisa: alugando cavalos de posta... O senhor tem passaporte?

— Tenho.

— É que o senhor alugando cavalos de posta não chega a Arras senão amanhã. Isto aqui não é estrada real. As mudas são mal servidas e os cavalos estão nas pastagens. Estamos no tempo das lavouras, todo o gado é pouco e por isso alugam-se cavalos em toda a parte: nem os da posta escapam. O senhor verá. Tem de esperar três ou quatro horas em cada muda; e depois terá de ir a passo, porque tem muito que subir.

— Sendo assim, irei a cavalo. Hei-de encontrar por aí alguém que me venda um selim.

— E este cavalo aguenta o selim?

— É verdade que não me lembrava disso. Não consente selim.

— Então...

— Pois não haverá na aldeia quem me alugue um cavalo?

— Um cavalo para ir a Arras, de uma assentada?

— Sem parar.

— Para isso seria preciso um cavalo como não há nenhum em todo este sítio. E depois, como ninguém conhece o senhor, tinha de o comprar. Mas é que não há nem para alugar nem para vender: ainda que o senhor desse quinhentos ou mesmo mil francos, não o encontraria.

— Como há-de ser então?

— O que lhe digo, como homem de bem, o melhor é eu concertar a roda e o senhor continuar a sua jornada amanhã.

— Amanhã é tarde.

— Diabo!

— Não há uma mala-posta que vai a Arras? Quando passa ela?

— Na noite de amanhã. As duas mala-postas fazem todo o serviço de noite, tanto a que vai, como a que vem.

— Mas então é preciso um dia inteiro para concertar a roda?

— E há-de ser bem aproveitado.

— E metendo mais dois operários?

— Ainda que metesse dez!

— E ligando-se os raios com uma corda?

— Os raios podiam amarrar-se, mas o cubo é que não. E depois a camba também está em muito mau estado.

— Na cidade não há carruagens de aluguer?

— Não, senhor.

— E outro carpinteiro de carros não haverá?

— Nada — responderam ao mesmo tempo o mestre carpinteiro e o moço da estalagem, abanando a cabeça.

Madelaine sentiu infinita alegria. Era evidente que a Providência se opunha à sua jornada. Fora ela quem lhe quebrara a roda do tilbury obrigando-o a parar no meio do caminho. Contudo não tinha cedido àquela espécie de primeira intimação; acabava de empregar todos os esforços possíveis para continuar a jornada; tinha leal e escrupulosamente esgotado todos os meios; não recuara, não tinha nada de que se arrepender. Se não ia mais longe, não era por falta de esforço! Já não era sua a culpa; não era obra da sua consciência, mas sim da Providência.
Respirou, pois. Respirou livremente e com toda a força dos pulmões, pela primeira vez depois da visita de Javert. Parecia-lhe que o pulso de ferro que lhe comprimia o coração havia vinte e quatro horas o largara enfim. Parecia-lhe que Deus era por ele e que acabava de lhe patentear.
Repetiu consigo que fizera tudo o que estava ao seu alcance, e que então só lhe restava voltar tranquilamente para trás.
Se o seu diálogo com o carpinteiro de carros se tivesse passado num quarto da estalagem não teria testemunhas, ninguém o teria ouvido, as coisas teriam ficado assim, e é provável que não tivéssemos de contar nenhum dos acontecimentos que se lhe seguiram; mas o diálogo passou-se na rua. Não há conversação na rua que não atraia um círculo de curiosos: há gente que não perde ocasião de saber o que lhes não diz respeito. Enquanto Madelaine fazia perguntas ao carpinteiro, tinham parado em volta deles algumas pessoas que iam passando. Um rapazito em que ninguém tinha reparado, depois de ter por um instante escutado, saiu do grupo a correr.
No momento em que o viajante, depois da deliberação interior que registamos, tomara a resolução de voltar para trás, tornou a aparecer o tal rapazito, acompanhado duma mulher já idosa, que se lhe dirigiu, dizendo:

— É verdade o que o meu rapaz me disse? O senhor deseja alugar um cabriolet?

Esta simples pergunta, feita por uma velha conduzida por uma criança, fê-lo cobrir de suor. Julgou ver a mão que o largara tornar a aparecer na sombra, por detrás dele, pronta a agarrá-lo de novo.

— É verdade — respondeu ele — desejo alugar um cabriolet. — E apressou-se em acrescentar: — Mas não há por aqui nenhum.

— Há, sim, senhor — respondeu a velha.

— Onde? — perguntou o carpinteiro.

— Em minha casa — respondeu a velha.

Madelaine estremeceu. A mão fatal apossara-se dele outra vez, apertando-lhe o coração naquele comprimir doloroso, de que por momentos se sentira livre. A velha tinha, com efeito, debaixo dum alpendre, uma espécie de carro de mato; mas o carpinteiro e o moço, desesperados por verem o viajante escapar-lhes das mãos, intervieram:

— Isso é uma caranguejola que mete medo e assente em cima do eixo, sem mais mola, nem mais nada; é verdade que os bancos que tem dentro são suspensos com correias, mas entra-lhe a água quando chove, e a ferragem está toda comida de ferrugem. Não é capaz de aguentar mais do que o tilbury; este senhor faz muito mal se acaso se meter nela.

Tudo isto era verdade, mas a caranguejola, fosse como fosse, tinha duas rodas e podia ir a Arras.
Madelaine pagou o que lhe pediram, deixou o tilbury entregue ao carpinteiro para o concertar e encontrá-lo pronto quando voltasse, mandou atrelar o cavalo branco ao carro que alugara à velha e continuou o caminho que desde pela manhã seguia.
No momento em que o carro se moveu, confessou a si mesmo que um momento antes sentira certo prazer em pensar que o não levaria ao seu destino. Examinou esse prazer, de certo modo encolerizado e achou-o absurdo. Porque se havia de alegrar voltando para trás? No fim de contas fazia aquela jornada voluntariamente. Ninguém o obrigara a fazê-la.
E decerto, não sucederia senão o que ele quisesse que sucedesse.
À saída de Hesdin ouviu uma voz que lhe gritava:

— Pare! Pare!

Madelaine fez parar o carro com um movimento em que havia o que quer que era de febril e convulsivo, que se assemelhava à esperança. Era o rapazito que fora chamar a velha.

— Eu é que fui arranjar a carroça — disse ele.

— E então?

— Então o senhor não me deu nada.

Ele que a todos dava tão facilmente, achou esta pretensão exorbitante e quase odiosa.

— Ah, foste tu, velhaco? — disse ele. — Pois não hás-de ter nada!

E fustigando o cavalo tornou apartir a galope.
Perdera muito tempo em Hesdin, portanto queria recuperá-lo. O cavalo era vigoroso e puxava por dois; mas estava-se em Fevereiro, tinha chovido, e as estradas achavam-se em péssimo estado. E depois já não tinha o tilbury; o carro era pesado e difícil de mover.
Além disso, a maior parte do caminho era sempre em subida.
Gastou perto de quatro horas para ir de Hesdin a Saint-Pol.
Em Saint-Pol parou na primeira estalagem que encontrou, mandou desaparelhar e levar o cavalo para a cavalariça. Como tinha prometido a Scaufflaire, conservou-se ao pé da manjedoira enquanto o cavalo comeu, sempre com o pensamento em coisas tristes e confusas.

A mulher do estalajadeiro entrou na cavalariça.

— O senhor não quer almoçar? — perguntou ela.

— É verdade — disse ele —, sinto-me até com grande apetite.

E seguiu a estalajadeira que tinha uma fisionomia fresca e prazenteira, a qual o conduziu para uma sala situada no rés-do-chão, em que havia algumas mesas cobertas de encerados à falta de toalhas.

— Sirva-me depressa — disse ele —, preciso de partir imediatamente. Não posso demorar-me.

Logo em seguida apareceu uma robusta criada flamenga trazendo-lhe o talher.
Madelaine contemplava a rapariga com um certo sentimento de bem-estar. «Era isto o que me estava fazendo mal», pensou ele. «Não tinha ainda almoçado».
Serviram-lhe o almoço. Pegou no pão, deu-lhe uma dentada, depô-lo vagarosamente sobre a mesa e não tornou a tocar-lhe.
Madelaine voltou-se para um carreiro que estava a comer sentado a outra mesa e disse-lhe:

— Porque é que o pão é tão amargo?

Porém, como o carreiro era alemão, não entendeu, e Madelaine voltou para a cavalariça. Daí a uma hora tinha deixado Saint-Pol, dirigindo-se para Tinques, que fica apenas a cinco léguas de Arras.
Que fazia ele no decurso desta jornada? Em que pensava? Via passar, como pela manhã, as árvores, os tetos de colmo, os campos cultivados e o desaparecer rápido da paisagem, que se desloca em cada cotovelo do caminho. É esta uma contemplação que satisfaz a alma e quase a dispensa de pensar. Ver mil objetos pela primeira e última vez! Há aí coisa mais profundamente melancólica? Viajar é nascer e morrer a todo o instante. Talvez ele, na região mais vaga do seu espírito, fizesse paralelos entre aqueles horizontes cambiantes e a existência humana. Todas as coisas desta vida fogem de continuo diante de nós. Entremeiam-se as sombras com os clarões. Após um deslumbramento de luz, um eclipse, as trevas; olha-se, corre-se a toda a pressa, estendem-se as mãos para agarrar o que passa; e o que passa vai, e as mãos ficam vazias; cada acontecimento é o dobrar de um ângulo da estrada, e de repente somos velhos. Sente-se um como abalo, afigura-se-nos tudo negro, distingue-se uma porta escura e esse sombrio cavalo da vida, que vos arrastava, pára de súbito. E vê-se um ente desconhecido, coberto com um véu, a desatrelá-lo nas trevas.
Principiava o crepúsculo da tarde; é verdade que se estava ainda nos dias curtos do ano na ocasião em que os rapazes, que saíam da escola, viram entrar aquele viajante em Tinques, por onde passou, sem fazer paragem Ao desembocar da aldeia, um cantoneiro, que empedrava a estrada, ergueu a cabeça e disse:

— Desgraçado cavalo que vai estafado de todo!

Com efeito, o pobre animal já não podia andar senão a passo.

— O senhor vai a Arras? — perguntou o cantoneiro.

— Vou.

— Mas nesse passo não chega lá muito cedo.

O viajante fez parar o cavalo e perguntou ao cantoneiro:

— Quanto falta ainda daqui a Arras?

— Perto de sete léguas grandes.

— Como assim! Mas o roteiro não marca senão cinco léguas e um quarto.

— Mas é que o senhor não sabe que se está concertando a estrada e que a encontra cortada daqui a um quarto de hora de caminho. Não se pode passar para diante.

— Realmente?

— Mas pode tomar à esquerda pelo caminho que vai a Carency e passar o rio; chegando a Comblin volta à direita e está na estrada de Mont-Saint-Eloy, que conduz a Arras.

— Mas é já noite e perder-me-ei.

— O senhor não é destes sítios?

— Não.

— Então assim todo o caminho é mau. Olhe — continuou o cantoneiro — quer que lhe dê um conselho? O seu cavalo está estafado; volte para Tinques. Há lá uma estalagem muito boa; fique nela esta noite e amanhã então seguirá para Arras.

— Preciso de lá estar esta noite.

— Isso então é outra coisa. Mas vá sempre à estalagem, alugue um cavalo de reforço e
o rapaz que o conduzir servir-lhes-á de guia no atalho.

O viajante adoptou o conselho do cantoneiro, voltou para trás e dali a meia hora tornou a passar pelo mesmo sítio, mas a trote largo, puxado então por dois cavalos. Sentado num dos varais do carro ia um moço de cavalariça que se intitulava postilhão.
Contudo, Madelaine sentia fugir-lhe o tempo. Tinha já anoitecido completamente quando entraram no atalho. O caminho tornou-se terrível. O carro dava solavancos horríveis, pelas desigualdades do terreno.
Madelaine disse ao postilhão:

— Sempre a trote e tens gorjeta dobrada.

Com um dos solavancos partiu-se um tirante.

— O caminho é levado do diabo — disse o postilhão —, lá se partiu o tirante. Agora não sei como hei-de emparelhar os cavalos. Se o senhor quisesse voltar para Tinques ficava lá esta noite e de manhã cedo podíamos estar em Arras.

— Não tem um bocado de corda e uma navalha? — retorquiu-lhe o viajante.

— Tenho, sim, senhor.

Apeou-se, cortou um ramo de árvore e substituiu o tirante. Perderam nisto mais vinte minutos, mas partiram depois a galope.
A planície estava tenebrosa. Nevoeiros muito baixos, espessos e negros, como que trepavam pelas colinas, destacando-se delas quais turbilhões de fumo. Nas nuvens apareciam de vez em quando clarões esbranquiçados. O vento rijo do mar produzia em todos os pontos do horizonte um ruído semelhante ao do arrastar de móveis. Tudo o que se entrevia apresentava aspectos aterradores. Quantas coisas se agitam com os vastos sopros da noite!
Madelaine sentia-se repassado pelo frio. Desde a véspera que não tomara o mínimo alimento. Recordava-se vagamente de outra corrida noturna pelos campos, nas proximidades de Digne, havia oito anos, e parecia-lhe que fora na véspera.
De repente, ouvindo horas num relógio longínquo, perguntou ao postilhão:

— Que horas são?

— Sete; às oito estaremos em Arras. Faltam apenas três léguas.

Neste momento, fez pela primeira vez a seguinte reflexão, achando extraordinário que lhe não tivesse ainda ocorrido: refletiu que era talvez inútil todo o seu trabalho, que nem ao menos sabia a hora da audiência; que devia ter obtido informações a tal respeito; e que era uma coisa extravagante caminhar de semelhante modo, sem saber se aproveitaria tamanha fadiga. Depois calculou que ordinariamente as sessões de júri começavam às nove horas da manhã; que o processo de que se tratava não devia ser demorado; que o roubo da fruta era coisa insignificante; que não haveria em seguida senão uma questão de identidade, quatro ou cinco depoimentos, e muito pouco que dizer pelos advogados; que, portanto, chegaria depois de tudo concluído!
O postilhão fustigava os cavalos. Tinha já transposto a ribeira e deixado atrás de si o Mont-Saint-Eloy.
A noite tornava-se cada vez mais escura.

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[1] — Formigas brancas.
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo -   V — Conserto nas rodas


Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


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