quinta-feira, 2 de maio de 2024

Ulisses - Parte 2 (4c): Ele acomodou o livro

Ulisses

James Joyce

Parte 2

4

continuando...

   Ele acomodou o livro de qualquer jeito no seu bolso interior e, dando uma topada com os dedos dos pés contra a cômoda quebrada, saiu apressadamente em direção ao cheiro, descendo rapidamente a escada com pernas de uma cegonha agitada. Uma fumaça pungente se elevou com um jato raivoso de um lado da panela. Cutucando com um dente do garfo por baixo do rim ele o destacou e o virou de borco. Só um pouco queimado. E jogou-o então da panela num prato e deixou que o molho marrom reduzido gotejasse sobre ele.
   Uma xícara de chá agora. Ele se sentou, cortou uma fatia de pão e passou manteiga nela. Separou a superfície queimada e a jogou para a gata. Em seguida pôs uma garfada na boca, mastigando com discernimento a carne maleável e saborosa. No ponto exato. Um gole de chá. Então ele cortou fora pedacinhos de pão, embebeu um no molho e o pôs na boca. Que história era aquela de um jovem estudante e de um piquenique? Desamassou a carta ao seu lado e a leu lentamente enquanto mastigava, embebendo um outro pedacinho de pão no molho e o levando à boca.

Meu querido paizinho

Obrigadíssima pelo lindo presente de aniversário. Ele ficou esplêndido em mim. Todos dizem que eu fico uma beldade com o novo gorro escocês. Eu recebi a bonita caixa de bombons de chocolate de leite de mamãe e estou escrevendo. Eles são muito saborosos. Estou me saindo muito bem no negócio de fotografia agora. O Sr. Coghlan tirou uma foto de mim com a Sra. Vou mandar quando reproduzida. Ontem foi um dia ótimo para os negócios. Um dia bonito e todas as mulheres de pernas grossas estavam presentes. Na segunda-feira nós vamos com alguns amigos a um piquenique informal no lago Owel. Dê meu carinho a mamãe e para você um grande beijo e obrigada. Eu os ouço tocando piano lá embaixo. No sábado vai haver um concerto no Greville Arms. Há um jovem estudante chamado Bannon que vem algumas noites aqui seus primos ou coisa que o valha são da alta e ele canta a canção de Boylan (eu estava prestes a escrever Blazes Boylan) sobre as moças à beira da praia. Diga-lhe que a Silly-Milly lhe manda lembranças. Tenho que terminar agora com todo o meu amor.
A filha que o ama  
Milly
P.S. Desculpe a letra ruim estou apressada. Baibai.

M. 
   Quinze anos ontem. Curioso, dia quinze do mês também. Seu primeiro aniversário fora de casa. Separação. Eu me lembro da manhã de verão em que ela nasceu, correndo para bater na porta da Sra. Thornton em Denzille Street. Uma senhora idosa alegre. Ela deve ter contribuído para trazer ao mundo uma porção de bebês. Ela soube desde o início que o nosso pobre pequeno Rudy não viveria. Ora, Deus é bom, senhor. Ela soube imediatamente. Ele teria onze anos agora se tivesse vivido. 

   O rosto apático dele fixava compassivamente o pós-escrito. Desculpe a letra ruim. Pressa. Piano lá embaixo. Ela saindo da concha. A briga com ela no XLCafé sobre a pulseira. Não queria comer os bolos ou falar ou olhar. Atrevidinha. Ele embebeu outros pedacinhos de pão no molho e comeu pedaço por pedaço do rim. Doze shillings e seis por semana. Não muito. Assim mesmo ela podia estar em situação pior. Palco de musical. Jovem estudante. Ele tomou um gole de chá mais frio para banhar sua refeição. Em seguida leu a carta novamente: duas vezes. 
   Ó, tudo bem: ela sabe como se cuidar. Mas se não? Não, não aconteceu nada. Naturalmente que poderia. De qualquer jeito espere até que aconteça. Uma peça agreste de mercadoria. Suas pernas finas subindo correndo a escada. Destino. Amadurecendo agora. Vaidosa: muito. 
   Ele sorriu com uma preocupação afetiva para a janela da cozinha. O dia em que a peguei beliscando as bochechas para torná-las vermelhas. Um pouco anêmica. Foi-lhe dado leite tempo demais. Aquele dia no Rei de Erin em volta do Kish. Miserável barco velho jogando de popa a proa. Nem um pouco amedrontada. Sua echarpe azul-claro solta ao vento com o seu cabelo.  

Aquelas moças de se sonhar, 
Aquelas moças da beira-mar.

   Milly também. Beijos jovens: o primeiro. Bem longe agora o passado. Sra. Marion. Lendo, recostada agora, contando os fios de seus cabelos, sorrindo, trançando.
   Um suave receio, tristeza, percorreu sua espinha dorsal, num crescendo. Vai acontecer, sim. Impedir. Inútil: não posso alterar nada. Lábios delicados e doces de moça. Vai acontecer também. Sentiu o receio fluindo espalhar-se sobre ele. Inútil alterar agora. Lábios beijados, beijando, beijados. Lábios grossos e pegajosos de mulher.
   Melhor que esteja lá: longe. Ocupá-la. Queria um cachorro para passar o tempo. Podia viajar para lá. Feriado bancário de agosto, apenas duas e seis ida e volta. Seis semanas fora, no entanto. Podia cavar um passe de imprensa. Ou através de M’Coy.
   A gata, tendo limpado todo o seu pelo, voltou para o papel manchado de carne, cheirou-o e rastejou até a porta. Olhou de volta para ele, miando. Quer sair. Espere até que uma porta em determinado momento se abra. Que ela espere. Fica inquieta. Elétrica. Tempestade no ar. Estava lavando sua orelha com o dorso também voltado para a lareira.
   Ele se sentia pesado, cheio: então uma suave soltura de seus intestinos. Levantou-se, abrindo o cós da calça. A gata miou para ele.

– Miau – disse ele, em resposta. – Espere até eu terminar.

   Indolência: dia quente se aproximando. Trabalho demais se esfalfar subindo a escada até o patamar. 
   Um jornal. Ele gostava de ler na privada. Espero que nenhum chato venha bater na porta justo na hora em que eu estiver.
   Na gaveta da mesa ele encontrou um antigo número do Titbits. Dobrou-o e o pôs debaixo do braço, foi para a porta e a abriu. A gata subiu em saltos ágeis. Ah, queria ir lá para cima, enroscar-se como uma bola na cama.
   Escutando, ele ouviu a voz dela:

– Venha, venha, gatinha. Venha.

   Ele saiu pela porta dos fundos para o jardim: parou para escutar o que vinha do jardim vizinho. Nenhum som. Talvez estivesse pendurando roupas para secar. A empregada estava no jardim. Bela manhã.
   Ele se inclinou para contemplar uma magra fileira de hortelãs crescendo muro acima. Fazer um quiosque aqui. Feijões escarlates. Trepadeiras da Virgínia. É preciso estrumar todo o lugar, solo ingrato. Uma camada escura de potássio e enxofre. Todo solo seria assim se não se adubasse. Restos domésticos. Barro, o que é que é isso afinal? As galinhas do jardim vizinho: seus excrementos são adubo de primeira. No entanto o melhor é o do gado, especialmente quando eles são alimentados com torta de linhaça. Excremento arenoso. Melhor coisa para limpar luvas de senhoras de pele de cabra. A sujeira limpa. Cinza também. Reformar todo o lugar. Plantar ervilha naquele canto ali. Alface. Ter sempre então verduras frescas. Ainda assim os jardins têm seus inconvenientes. Aquela abelha ou mosca-varejeira aqui na segunda-feira de Páscoa. 
   Ele continuou a andar. Por falar nisso, onde está o meu chapéu? Devo tê-lo posto de volta no cabide. Ou deixado no chão. Engraçado, eu não me lembro disso. Cabideiro cheio demais. Quatro guarda-chuvas, capa de chuva dela. Pegando as cartas. A campainha da loja Drago tocando. Esquisito eu estava justamente pensando naquele momento. Cabelo castanho-escuro com brilhantina sobre o colarinho dele. Acabou de ser lavado e escovado. Eu me pergunto se vou ter tempo para um banho esta manhã. Tara Street. O camarada da caixa registradora ali ajudou James Stephens a escapar, dizem. O’Brien.
   Voz grave tem aquele camarada Dlugacz. Agendath o que é isso? Ora, minha senhorinha. Entusiasta.
   Chutando ele abriu a porta rachada do sanitário. É bom ter cuidado para não sujar esta calça para o enterro. Ele entrou, abaixando a cabeça sob o lintel baixo. Deixando a porta entreaberta, em meio ao mau cheiro de caiação mofada e teias de aranha bolorentas ele arriou o suspensório. Antes de se sentar deu uma olhadela através de uma fenda para a janela do vizinho. O rei estava no seu escritório de contabilidade. Ninguém.
   Acocorado no vaso sanitário ele abriu o jornal, virando as páginas sobre seus joelhos nus. Alguma coisa nova e fácil. Nada de muita pressa. Retenhamos um pouco. Nosso prêmio titbit: Golpe de mestre de Matcham. Escrito pelo Sr. Philip Beaufoy, Clube dos Aficionados do Teatro, Londres. Pagamento na base de um guinéu por coluna foi feito ao escritor. Três e meia. Três libras e três. Três libras, treze e seis.
   Tranquilamente ele leu, se contendo, a primeira coluna e, cedendo mas resistindo, começou a segunda. No meio do caminho, sua última resistência cedeu, ele permitiu que seus intestinos se esvaziassem tranquilamente enquanto ele lia, lendo ainda pacientemente aquela ligeira prisão de ventre da véspera tinha-se ido. Espero que não seja grande demais para não provocar novamente hemorroidas. Não, justo o tamanho. Assim. Ah! Prisão de ventre. Um tablete de cáscara-sagrada. A vida devia ser assim. Isso não o agitava nem o emocionava mas era alguma coisa rápida e limpa. Imprima qualquer coisa agora. Estação tola. Ele continuou a ler sentado calmamente sobre o seu próprio cheiro que se elevava. Limpo certamente. Matcham pensa frequentemente no golpe de mestre por meio do qual conquistou a feiticeira risonha com quem agora. Começa e termina moralmente. De mãos dadas. Esperto. Ele olhou para trás para o que tinha lido e, enquanto sentia a urina fluir tranquilamente, invejava brandamente o Sr. Beaufoy que tinha escrito isso e recebido pagamento de três libras, treze e seis.
   Podia arranjar um esquete. Pelo Sr. e a Sra. L. M. Bloom. Inventar uma história para algum provérbio. Qual? Houve tempo em que eu costumava tentar rabiscar no meu punho o que ela dizia ao se vestir. Não gosto que nos vistamos juntos. Me cortei ao me barbear. Ela mordendo o lábio inferior, ao enganchar a abertura de sua saia. Marcando o tempo dela. 9:15. Roberts já lhe pagou? 9:20. O que Gretta Conroy estava usando? 9:23. O que me fez comprar este pente? 9:24. Estou inchada depois daquele repolho. Um grão de pó na bota de verniz dela: esfregando vivamente de cada vez cada dobra da bota de encontro à barriga da perna com meia. Manhã depois da dança do bazar quando a banda de May tocou a dança das horas de Ponchielli. Explique-se isso: horas da manhã, meio-dia, então o entardecer chegando, então horas da noite. Ela lavando os dentes. Aquela foi sua primeira noite. Sua cabeça dançando. Seu leque clicando ao fechar. Esse tal de Boylan está bem de vida? Ele tem dinheiro. Por quê? Eu reparei que ele exala um cheiro bom da sua boca ao dançar. Não adianta cantarolar então. Aluda a isso. Tipo estranho de música naquela última noite. O espelho estava na sombra. Ela esfregou seu espelho de mão rapidamente na sua roupa de lã de encontro ao seio roliço e balouçante. Espreitando para dentro dele. Rugas nos seus olhos. De uma forma ou de outra não ia dar resultado.
   Horas crepusculares, moças em gaze cinza. Horas noturnas então: pretume com punhais e máscaras nos olhos. Ideia poética: rosa, e então dourado, e então cinza, e então preto. Ainda assim, fiel à realidade também. Dia: e então a noite.
   Ele rasgou com força metade da história premiada e se limpou com ela. Em seguida suspendeu a calça, pôs o suspensório e se abotoou. Puxou a porta desconjuntada do sanitário e saiu da penumbra para o ar livre.
   Na luz clara, com os membros frios e leves, ele olhou cuidadosamente para sua calça preta: as extremidades, os joelhos, os jarretes dos joelhos. A que horas é o enterro? Melhor verificar no jornal.
   Um rangido e um zunido sombrio bem alto no ar. Os sinos da igreja de São Jorge. Eles soaram a hora: elevado ferro escuro.

Haiho! Haiho! 
Haiho! Haiho! 
Haiho! Haiho!

   Um quarto para. Lá vai novamente: o som concomitante prosseguindo através do espaço. Um terceiro.
   Pobre Dignam!
 
continua na página 70...
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Ulisses - Parte 2 (4c): Ele acomodou o livro
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

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