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sábado, 14 de junho de 2025

Ulisses - Parte 2 (6a): Martin Cunningham

 Ulisses


James Joyce

Parte 2

6


      Martin Cunningham, primeiro, meteu sua cabeça de cartola na carruagem rangente e, entrando habilmente, se sentou. O Sr. Power entrou depois dele, curvando sua estatura com cuidado.

– Venha, Simon.
– Depois do senhor – disse o Sr. Bloom. 

     O Sr. Dedalus se cobriu rapidamente e subiu, dizendo:

– Sim, sim.– Estamos todos aqui agora? – perguntou Martin Cunningham. 
– Venha, Bloom.

      O Sr. Bloom entrou e se sentou no lugar vago. Puxou a porta atrás de si e bateu com ela duas vezes até que ficasse bem fechada. Passou um braço através da correia e olhou gravemente da janela aberta da carruagem para as persianas abaixadas da avenida. Uma puxada para o lado: uma mulher idosa espreitando. Nariz branco de tão achatado de encontro à vidraça. Agradecendo aos céus por ter ficado incólume. Extraordinário o interesse que têm em um cadáver. Contentes em nos ver partir nós lhes damos tanto trabalho ao chegar. A tarefa parece lhes convir. Secretamente nos cantos. Patinham nos chineloshlepe com medo que ele acorde. Então o aprontam. Vestem o defunto. Molly e a Sra. Fleming fazendo a cama. Puxe mais para o seu lado. Nossa mortalha. Nunca sabemos quem vai tocar em nós quando mortos. Lavam corpo e cabelo. Creio que aparam as unhas e o cabelo. Guardam um pouco num envelope. Crescem mesmo assim depois. Trabalho sujo.
      Todos esperavam. Nada foi dito. Arrumando as coroas provavelmente. Estou sentado numa coisa dura. Ah, aquele sabonete: no meu bolso detrás. Melhor mudá-lo dali. Esperar por uma oportunidade.
      Todos esperavam. Então ouviu-se o som de rodas vindo da frente, virando: então mais próximas: em seguida patas de cavalos. Um sacolejão. A carruagem deles começou a se mover, rangendo e balançando. Outras patas e rodas rangentes começaram a ser ouvidas atrás. As persianas da avenida passaram e o número nove com a argola coberta de crepe da porta entreaberta. Andando a passo.
      Eles esperaram imóveis, os joelhos sacudindo, até que viraram e seguiram ao longo dos trilhos dos bondes. Tritonville Road. Mais rapidamente. As rodas chocalhavam ao rolar por sobre a estrada de paralelepípedo e os vidros enlouquecidos vibravam chocalhando nos alizares das portas.

– Por que caminho ele está nos levando? – perguntou o Sr. Power através de ambas as janelas.
– Irishtown – disse o Sr. Cunningham. – Ringsend. Brunswick Street. 

     O Sr. Dedalus acenou com a cabeça, olhando para fora.

– Esse é um ótimo costume antigo – disse. 
– Estou feliz em ver que não desapareceu.

     Todos observaram por algum tempo através das janelas bonés e chapéus erguidos por passantes. Respeito. Na altura de Watery Lane a carruagem se desviou do trilho do bonde para tomar uma rua mais suave. O Sr. Bloom à espreita viu um rapaz esbelto, vestido de luto, com um chapéu de aba larga.

– Lá se foi um amigo seu, Dedalus – disse ele.
– Quem é?
– Seu filho e herdeiro.
– Onde ele está? – disse o Sr. Dedalus, se estirando para a janela oposta.

     A carruagem, passando por bueiros abertos e montes de pedras da rua fendida diante das moradias, deu uma guinada na esquina e, se desviando de volta para o trilho do bonde, deslizou ruidosamente com rodas trepidantes. O Sr. Dedalus caiu para trás, dizendo:

– Aquele cafajeste do Mulligan estava com ele? Seu fidus Achates!
– Não – disse o Sr. Bloom. – Ele estava sozinho.
– Lá com sua tia Sally, suponho – disse o Sr. Dedalus –, a facção Goulding, o contadorzinho bêbado e Crissie, o torrãozinho de esterco do papai, a filha sábia que conhece seu próprio pai.

      O Sr. Bloom sorriu tristemente em Ringsend Road. Wallace Bros: o fabricante de garrafas: ponte Dodder.
      Richie Goulding e a sacola legal. Goulding, Collis e Ward ele denomina a firma. Suas piadas estão ficando um pouco chochas. Uma grande figura ele era. Valsando em Stamer Street com Ignatius Gallaher num domingo de manhã, com dois chapéus da senhoria pregados em sua cabeça. Fora na baderna toda a noite. Está começando a denunciá-lo agora: aquela dor nas costas dele, eu receio. A mulher massageando suas costas. Pensa que vai se curar com pílulas. Todas migalhas de pão que elas são. Cerca de seiscentos por cento de lucro.

– Ele está andando com uma turma sórdida – rosnou o Sr. Dedalus. – Esse Mulligan segundo todos dizem é um desgraçado desordeiro aferrado e pervertido. Seu nome tem má fama em toda Dublin. Mas com a ajuda de Deus e de Sua santa mãe eu vou me encarregar de escrever um desses dias uma carta à mãe dele ou à sua tia ou o que quer que ela seja que vai abrir seus olhos tão grandes quanto uma cancela. Eu vou comichar o traseiro dele, acredite em mim.

     Ele gritou acima do estrépito das rodas:

– Eu não vou permitir que o bastardo do sobrinho dela destrua meu filho. O filho de um caixeirinho qualquer. Vendendo cadarço na loja de meu primo, Peter Paul M’Swiney. Não vou mesmo.

     Ele cessou. O Sr. Bloom, sacudindo seriamente a cabeça, lançou um olhar de seu bigode raivoso para o rosto brando do Sr. Power e para os olhos e barba de Martin Cunningham. Homem voluntarioso barulhento. Empolgado com seu filho. Ele está certo. Alguma coisa para transmitir. Se o pequeno Rudy tivesse vivido. Vê-lo crescer. Ouvir sua voz dentro de casa. Andando ao lado de Molly com uniforme de Eton. Meu filho. Eu em seus olhos. Sentimento estranho seria. De mim. Apenas uma chance. Deve ter sido naquela manhã no Raymond Terrace ela estava na janela, observando os dois cachorros fazendo aquilo junto ao muro do deixar de fazer o mal. E o sargento sorrindo para cima. Ela estava com aquele vestido creme com o rasgão que ela nunca coseu. Vamos transar, Poldy. Meu Deus, estou morrendo de vontade. Como a vida começa.
     Ficou barriguda então. Teve de recusar o concerto de Greystones. Meu filho dentro dela. Eu poderia tê-lo ajudado a progredir na vida. Poderia. Torná-lo independente. Aprender alemão também.

– Estamos atrasados? – perguntou o Sr. Power.
– Dez minutos – disse Martin Cunningham, olhando para o relógio.

      Molly. Milly. A mesma coisa atenuada. Suas imprecações de garoto levado. Ó Júpiter saltador! Ó deuses e peixinhos! Assim mesmo, ela é uma menina amada. Em breve será uma mulher. Mullingar. Queridíssimo papaizinho. Jovem estudante. Sim, sim: uma mulher também. Vida, vida.
     A carruagem se inclinou pra frente e pra trás, seus quatro troncos balançando.

– Corny podia ter nos fornecido um aparato mais cômodo – disse o Sr. Power.
– Poderia – disse o Sr. Dedalus –, se não tivesse aquela sovinice a perturbá-lo. Vocês me entendem?

     Fechou o olho esquerdo. Martin Cunningham começou a varrer para longe migalhas de pão de debaixo de suas coxas.

– Em nome de Deus – disse ele –, o que é isso? Migalhas?
– Alguém parece ter feito um piquenique aqui recentemente – disse o Sr. Power.

      Todos levantaram suas coxas e olharam com desagrado para o couro mofado e sem botões dos assentos. O Sr. Dedalus, torcendo o nariz, olhou carrancudo para baixo e disse:

– A menos que eu esteja terrivelmente enganado... O que você acha, Martin?
– Ocorreu-me também – disse Martin Cunningha.

     O Sr. Bloom abaixou sua coxa. Contente porque tomei aquele banho. Sinto meus pés bem limpos. Mas gostaria que a Sra. Fleming tivesse cerzido melhor estas meias.
      O Sr. Dedalus suspirou resignadamente.

– Afinal de contas – disse ele – é a coisa mais natural do mundo.
– Tom Kernan apareceu? – perguntou Martin Cunningham, torcendo delicadamente a ponta de sua barba.
– Sim – disse o Sr. Bloom. – Ele está atrás com Ned Lambert e Hynes.
– E Corny Kelleher ele mesmo? – perguntou o Sr. Power.
– No cemitério – disse Martin Cunningham.
– Eu encontrei M’Coy esta manhã – disse o Sr. Bloom. – Ele disse que tentaria vir.

      A carruagem se deteve subitamente.

– O que aconteceu?
– Estamos parados.
– Onde é que estamos?

     O Sr. Bloom pôs a cabeça para fora da janela.

– O grande canal – disse.

     Gasômetro. Dizem que cura coqueluche. Ainda bem que Milly nunca teve. Pobres crianças. Dobram o corpo ficam azuis com as convulsões. Uma lástima realmente. Comparada sofreu pouco de doenças. Só sarampo. Chá de linhaça. Escarlatina, epidemias de gripe. Angariando votos para a morte. Não perca esta oportunidade. Abrigo dos cachorros lá. Pobre velho Athos! Seja bom para o Athos, Leopold, é o meu último desejo. Seja feita a tua vontade. Nós obedecemos a eles na sepultura. Um rabisco agonizante. Ele ficou muito abalado, definhou. Animal sossegado. Os cachorros dos velhos geralmente são.
     Uma gota de chuva respingou em seu chapéu. Ele recuou e viu uma chuva momentânea espalhar pingos sobre as bandeiras cinzentas. À distância. Curioso. Como através de um coador. Eu achei que ia. Minhas botas rangeram eu me lembro agora.

– O tempo está mudando – disse tranquilamente.
– Uma pena que não se manteve bom – disse Martin Cunningham.
– Necessário para o campo – disse o Sr. Power. – Lá está o sol saindo novamente.

      O Sr. Dedalus, espreitando o sol velado através de seus óculos, proferiu uma maldição muda contra o céu.

– Está tão incerto quanto o bumbum de uma criança – disse.
– Partimos de novo.

     A carruagem virou novamente suas rodas emperradas e os troncos deles balançaram docemente. Martin Cunningham torceu mais rapidamente a ponta de sua barba.

– Tom Kernan esteve ótimo ontem à noite – disse ele. – E Paddy Leonard o imitando nas suas barbas.
– Ó, dê-nos uma amostra, Martin – disse o Sr. Power animadamente. – Espere até ouvi-lo, Simon, sobre o canto de Ben Dollard de O Jovem Patriota.
– Ótimo – disse Martin Cunningham pomposamente. – Seu canto daquela balada simples, Martin, é a mais vigorosa interpretação que eu jamais ouvi em todo o curso de minha experiência.
– Vigorosa – disse o Sr. Power rindo. – Ele é um bamba nisso. E o arranjo retrospectivo.
– Você leu o discurso de Dan Dawson? – perguntou Martin Cunningham.
– Eu não li então – disse o Sr. Dedalus. – Onde está?
– No jornal desta manhã.

      O Sr. Bloom pegou o jornal de dentro do seu bolso. Aquele livro que preciso trocar para ela.

– Não, não – disse o Sr. Dedalus rapidamente. – Mais tarde por favor.

     O olhar do Sr. Bloom desceu pelo jornal, passando uma vista pelas mortes: Callan, Coleman, Dignam, Fawcett, Lowry, Naumann, Peake, que Peake é esse? será o camarada que estava no Crosbie e Alleyne? não, Sexton, Urbright. Letras feitas de tinta sumindo rapidamente no jornal rasgado que se partia. Graças à Pequena Flor. Perda muito triste. À inexpressável dor dos seus. Aos 88 anos depois de uma doença longa e cansativa. Lembrança de mês: Quinlan. De cuja alma o doce Jesus tenha compaixão.

Faz um mês que o caro Henry voou 
Para sua casa lá em cima no céu 
Enquanto sua família lamenta sua perda 
Esperando encontrá-lo um dia no céu.

      Eu rasguei o envelope? Sim. Onde é que eu pus a carta dela depois de lê-la no banho? Bateu de leve no bolso do colete. Estava ali sim. Querido Henry voou. Antes que minha paciência fiquem exausta.
     Escola nacional. Recinto de Meade. A estação de fiacres. Só dois agora ali. Sacudindo a cabeça. De barriga cheia como um carrapato. Ossos demais em seus crânios. O outro trotando com um passageiro. Há uma hora eu passei ali. Os cocheiros tiraram seus chapéus.
      As costas de um agulheiro se impertigaram subitamente de encontro a um pilar da ferrovia perto da janela do Sr. Bloom. Será que não podiam inventar uma coisa automática de modo que a própria roda muito mais prático? Bem mas então aquele camarada ia perder o seu emprego? Ora mas então um outro camarada conseguiria um emprego fabricando a nova invenção?
     Salas de concerto Antient. Nada acontecendo lá. Um homem num terno de camurça bege com uma braçadeira de crepe. Um desgosto não muito grande ali. Um quarto de luto. Parente por afinidade talvez.
     Eles passaram por Saint Mark com seu púlpito frio, por debaixo da ponte da ferrovia, e ladearam o teatro Queen: em silêncio. Cartazes: Eugene Stratton, Sra. Bandman Palmer. Será que eu poderia ir ver Leah hoje à noite, eu me pergunto. Eu disse eu. Ou Lily de Killarney? Companhia de Ópera Elster Grimes. Mudança grande e poderosa. Cartazes resplandecentes com tinta fresca para a próxima semana. Diversão em Cartaz. Martin Cunningham podia me arranjar um bilhete para o Gaiety. Terei de lhe pagar um ou dois drinques. Dá no mesmo.
      Ele vem à tarde. As canções dela.
      Plasto. Na fonte o busto em memória de sir Philip Crampton. Quem era ele?

– Como vai? – disse Martin Cunningham, erguendo a palma da mão até a testa em sinal de saudação.
– Ele não nos vê – disse o Sr. Power. – Vê, sim. Como vai?
– Quem? – perguntou o Sr. Dedalus.
– Blazes Boylan – disse o Sr. Power. – Lá está ele arejando seu topete.

      Justo naquele momento eu estava pensando.
     O Sr. Dedalus se inclinou para o lado oposto para saudar. Da porta do Red Bank o disco branco de um chapéu de palha lançou uma resposta: figura elegante: passou.
     O Sr. Bloom inspecionou as unhas de sua mão esquerda, em seguida as de sua mão direita. As unhas, sim. Há alguma coisa a mais nele que elas ela vê? Fascinação. Pior homem em Dublin. Isso o mantém vivo. Elas às vezes sentem o que uma pessoa é. Instinto. Mas um tipo como esse. Minhas unhas. Eu só estou olhando para elas: bem aparadas. E depois: pensando sozinho. Corpo ficando um pouco flácido. Eu notaria isso: por me lembrar. O que causa isso? Suponho que a pele não pode se contrair bastante rapidamente quando a carne míngua. Mas a forma está ali. A forma ainda está ali. Ombros. Quadris. Roliça. Noite da dança se vestindo. Camisa presa entre as faces de detrás.
      Ele apertou as mãos entre seus joelhos e, satisfeito, lançou um olhar vago sobre os rostos dos outros.
     O Sr. Power perguntou:

– Como é que vai o tour de concertos, Bloom?
– Ó, muito bem – disse o Sr. Bloom. – Tenho tido excelentes informações sobre ele. É uma boa idéia, sabe... 
– Você vai também?
– Bem não – disse o Sr. Bloom. – Na realidade tenho de ir ao condado Clare a negócios particulares. Você sabe a ideia é fazer o tour das principais cidades. O que se perder numa pode ser recuperado na outra.
– Certamente – disse Martin Cunningham. – Mary Anderson está por lá agora. Vocês têm bons artistas?
– Louis Werner é quem está como empresário dela – disse o Sr. Bloom. – Ó, sim, nós teremos todos artistas de primeira. J. C. Doyle e John MacCormack espero e. De fato, o que há de melhor.
– E madame – disse sorrindo o Sr. Power. – A última mas nem por isso a menos importante.

     O Sr. Bloom abriu as mãos em um gesto de discreta polidez e as apertou novamente. Smith O’Brien. Alguém pôs um ramalhete de flores ali. Mulher. Deve ser aniversário de sua morte. Para que esta data se repita muitas vezes. A carruagem passando pela estátua de Farrell unia silenciosamente os joelhos passivos deles.
     Oota: um homem idoso mal trajado apregoava do meio-fio suas mercadorias, sua boca se abrindo: oota.

– Quatro cordões de bota por um penny.

     Eu me pergunto por que ele foi excluído do foro judicial. Tinha seu escritório em Hume Street. A mesma casa do xará de Molly, Tweedy, procurador da coroa por Waterford. Tem aquela cartola desde então. Relíquia do antigo decoro. De luto também. Terrível queda, pobre infeliz! Chutado à volta como uma pitada de rapé em um velório. O’Callaghan nas últimas.
      E madame. Onze e vinte. De pé. A Sra. Fleming está lá para a limpeza. Penteando seu cabelo, cantarolando. Voglio e non vorrei. Não. Vorrei e non. Olhando para as pontas de seus cabelos para ver se estão partidos. Mi trema un poco il. Que beleza a sua voz naquele tre: tom choroso. Uma toutinegra. Um tordo. Existe uma palavra tordo que expressa isso.
     Seus olhos percorreram levemente o rosto bem-apessoado do Sr. Power. Grisalho sobre as orelhas. Madame: sorrindo. Eu sorri de volta. Um sorriso vai longe. Apenas cortesia talvez. Homem simpático. Quem sabe se é verdade acerca da mulher que ele mantém? Nada agradável para a própria mulher. No entanto dizem, quem foi mesmo que me disse, que não há nada carnal. Poder-se-ia imaginar que eles ficariam exaustos muito rápido. Sim, foi Crofton que o encontrou uma noite levando um quilo de rabada para ela. O que é que ela era? Garçonete no Jury. Ou em Moira, não é?
      Eles passaram sob a estátua do Libertador com sua enorme capa. 
      Martin Cunningham cutucou o Sr. Power.

– Da tribo de Reuben – disse ele.

continua na página 89...
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Ulisses - Parte 2 (6a): Martin Cunningham
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Ulisses - Parte 2 (5c): Ele viu o padre

Ulisses

James Joyce

Parte 2

5

continuando...

      Ele viu o padre se inclinar e beijar o altar e então fazer meia-volta e abençoar todas as pessoas. Todos se benzeram e se levantaram. O Sr. Bloom lançou um olhar à sua volta e então se levantou, olhando acima dos chapéus erguidos. Levantar-se no evangelho, naturalmente. Então todos se ajoelharam novamente e ele se sentou tranquilamente no banco. O padre desceu do altar, segurando a coisa longe de si, e ele e o coroinha responderam um ao outro em latim. Então o padre se ajoelhou e começou a ler num cartão:

– Ó Deus, nosso refúgio e nossa força...

     O Sr. Bloom esticou o rosto para pegar as palavras. Inglês. Atire o osso para eles. Eu me lembro ligeiramente. Há quanto tempo desde sua última missa? Virgem gloriosa e imaculada. José, seu esposo. Pedro e Paulo. Mais interessante se você entendesse do que se tratava. Maravilhosa organização certamente, funciona como um relógio. Confissão. Todo mundo quer. Então eu vou lhe dizer tudo. Penitência. Puna-me, por favor. Grande arma na mão deles. Mais do que médico ou advogado. Mulher morrendo para. E eu chchchchch. E você fez chachachachacha? E por que você fez? Olhe para o anel dela para encontrar uma desculpa. Sussurrando as paredes da galeria têm ouvidos. Marido descobre para sua surpresa. A piadinha de Deus. Então ela sai. Arrependimento superficial. Vergonha encantadora. Rezar no altar. Ave Maria e Santa Maria. Flores, incenso, velas derretendo. Esconder seus rubores. Exército da Salvação imitação ruidosa. Prostituta convertida vai conduzir o encontro. Como eu encontrei o Senhor. Camaradas criteriosos devem ser aqueles em Roma: eles organizam todo o es  Monastérios e conventos. O padre no banco das testemunhas naquele caso de testamento de Fermanagh. Nada de intimidá-lo. Ele tinha sua resposta preparada para tudo. Liberdade e exaltação de nossa santa madre igreja. Os doutores da igreja: eles fizeram um levantamento de toda a teologia dela. 
     O padre rezou:

– Abençoado Miguel, arcanjo, defenda-nos na hora da luta. Seja nossa salvaguarda contra a maldade e as armadilhas do demônio (possa Deus detê-lo, humildemente rogamos!) e tu, Ó príncipe da hoste celestial, pelo poder de Deus lança Satanás no inferno e com ele aqueles outros espíritos malignos que vagueiam pelo mundo para desgraça das almas.

     O padre e o coroinha se levantaram e saíram. Tudo terminado. As mulheres permaneceram atrás: dando graças. 
     É melhor ir abrindo caminho. Irmão Bisbilhoteiro. Venha com o prato de coleta talvez. Cumpra seu dever pascoal. 
     Ele se levantou. Alô. Estavam esses dois botões do meu colete abertos o tempo todo? As mulheres sentem prazer com isso. Nunca lhe dizem. Mas nós. Desculpe, senhorita, há um (whh!) apenas um (whh!) argueiro. Ou a saia delas atrás, abertura da saia desenganchada. Aparições momentâneas da lua. Aborrecidas se você não. Por que você não me disse antes. No entanto preferem você desarrumado. Que bom que não foi mais ao sul. Ele passou, abotoando discretamente, pela nave lateral e saiu através da porta principal para a claridade. Ficou um momento sem ver junto à bacia de mármore preta e fria enquanto à sua frente e atrás duas devotas mergulhavam mãos furtivas na quantidade reduzida de água benta. Bondes: um carro da tinturaria Prescott: uma viúva em seu traje de luto. Noto porque também estou de luto. Ele se cobriu. Como anda o tempo? Passou de um quarto. Tempo bastante ainda. Melhor mandar preparar aquela loção. Onde é isso? Ah sim, a última vez. Sweny na praça Lincoln. Farmacêuticos raramente se mudam. Seus frascos verde e ouro são pesados demais para se mover. Hamilton Long, fundado no ano da inundação. Cemitério huguenote perto dali. Visitar algum dia.
     Ele caminhou em direção ao sul ao longo de Westland Row. Mas a receita está na outra calça. Ó, eu esqueci a chave de trinco também. Uma amolação o negócio desse enterro. Tudo bem, pobre rapaz, não é culpa dele. Quando é que eu mandei preparar pela última vez? Espere. Eu troquei um soberano eu me lembro. Deve ter sido o primeiro dia do mês ou o segundo. Ó, ele pode verificar no livro de prescrições.
     O farmacêutico virou página após página. Ele parecia exalar um cheiro areento e seco. Cérebro minguado. E velho. Busca da pedra filosofal. Os alquimistas. Drogas envelhecem você depois de excitação mental. Letargia então. Por quê? Reação. Uma vida toda numa noite. Altera gradualmente seu caráter. Viver o dia inteiro entre ervas, unguentos, desinfetantes. Todos os vasos-de-lírio dele de alabastro. Argamassa e pilão. Aq. Dist. Fol. Laur. Te Virid. O cheiro quase nos cura como a campainha da porta do dentista. Doutor Charlatão. Ele devia se medicar um pouco. Eletuário ou emulsão. O primeiro sujeito que colheu uma erva para se curar teve um bocado de coragem. Os simplórios. Precisam ser cuidadosos. Material aqui suficiente para nos cloroformizar. Teste: tornam vermelho o papel de tornassol azul. Clorofórmio. Overdose de láudano. Bebidas para dormir. Filtros de amor. Elixir paregórico ruim para tosse. Bloqueia os poros ou a fleuma. Venenos as únicas curas. Remédio onde você menos espera. Inteligente por parte da natureza.

– Cerca de quinze dias atrás, senhor? 
– Sim – disse o Sr. Bloom. 

     Ele esperou junto ao balcão, inalando lentamente o cheiro forte e desagradável das drogas, o cheiro seco e poeirento das esponjas e lufas. O tempo que se leva contando suas dores e sofrimentos. 

– Óleo de amêndoa doce e tintura de benjoim – disse o Sr. Bloom – e então água de flor de laranjeira... 

     Isso certamente tornava sua pele tão delicada branca como cera. 

– E cera branca também – disse ele.

     Ressalta a cor escura de seus olhos. Olhando para mim, com o lençol puxado até os olhos, espanhola, se cheirando, enquanto eu fixava as abotoaduras em meus punhos. Essas receitas caseiras são frequentemente as melhores: morangos para os dentes: urtiga e água da chuva: mingau de aveia dizem embebido em leitelho. Alimento da pele. Um dos filhos da velha rainha, duque da Albânia era isso? tinha apenas uma pele. Leopold, sim. Nós temos três. Verrugas, joanetes e espinhas para piorar. Mas você quer um perfume também. Que perfume sua? Peau d’Espagne. Essa água de flor de laranjeira é tão fresca. Cheiro gostoso têm esses sabonetes. Puro sabonete de coalho. Hora de tomar um banho lá na esquina. Hamman. Turco. Massagem. Sujeira fica enroscada em seu umbigo. Mais gostoso se uma bela moça o fizesse. Também penso eu. Sim eu. Fazê-lo no banho. Desejo curioso eu. Água para a água. Combinar negócio com prazer. Pena sem tempo para massagem. Sentir-me fresco então o dia inteiro. Enterro vai ser bastante taciturno.

– Sim, senhor – disse o farmacêutico. – Isso foi dois e nove. O senhor trouxe uma garrafa? 
– Não – disse o Sr. Bloom. – Prepare-a, por favor. Eu virei buscá-la mais tarde e vou levar um desses sabonetes. Quanto é que custam? 
– Quatro pence, senhor.

     O Sr. Bloom ergueu um sabão até suas narinas. Doce cera limonada.

– Eu levo este – disse ele. – Isso faz três e um penny
– Sim, senhor – disse o farmacêutico. – O senhor pode pagar tudo junto, quando voltar. 
– Muito bem – disse o Sr. Bloom.

     Ele vagou para fora da loja, com o bastão de jornal debaixo da axila e o sabonete fresco e embrulhado na mão esquerda. 
     Junto à sua axila a voz e a mão de Bantam Lyons disseram:

– Alô, Bloom. Qual é a melhor notícia? Esse é de hoje? Mostre-me um minuto.

     Raspou o bigode de novo, por Deus! Lábio superior longo e frio. Para parecer mais jovem. Ele tem de verdade um aspecto balsâmico. Mais moço do que eu. 
     Os dedos amarelos de unhas escuras de Bantam Lyons desenrolaram o bastão. Precisa de um banho também. Tirar fora a sujeira desagradável. Bom-dia, você usou o sabonete Pear? Caspa nos seus ombros. Couro cabeludo precisa levar um óleo.

– Eu quero ver o que diz sobre aquele cavalo francês que corre hoje – disse Bantam Lyons. – Onde o patife se meteu?

     Ele fez as páginas dobradas farfalharem, sacudindo o queixo sobre o colarinho alto. Ânsia de barbeiro. Colarinho apertado ele vai perder o cabelo. Melhor deixar que ele fique com o jornal e me livrar dele.

– Você pode ficar com ele – disse o Sr. Bloom. 
– Ascot. Grande prêmio. Espere – murmurou Bantam Lyons. – Só um mi. No máximo o segundo. 
– Eu o ia jogar fora – disse o Sr. Bloom. 

     Bantam Lyons ergueu os olhos subitamente e olhou fracamente de soslaio.

– O que é isso? – disse sua voz estridente. 
– Eu disse que você pode ficar com ele – respondeu o Sr. Bloom. – Eu o ia jogar fora naquele momento. 

     Bantam Lyons hesitou um instante, olhando de soslaio: em seguida empurrou as folhas estendidas de volta nos braços do Sr. Bloom. 

– Vou arriscá-lo – disse ele. – Tome, obrigado.

     Partiu a toda velocidade em direção à esquina de Conway. Vai com Deus seu tratante. 
     O Sr. Bloom dobrou as folhas novamente num quadrado caprichado e acomodou o sabonete dentro, sorrindo. Lábios imbecis os daquele camarada. Apostando. Uma fonte costumeira disso ultimamente. Meninos mensageiros roubando para apostar seis pence. Rifa de um peru grande macio. Seu jantar de Natal por três pence. Jack Fleming deu desfalque para jogar em seguida partiu às escondidas para a América. Tem um hotel agora. Eles nunca voltam. Vida de luxo do Egito.
     Ele caminhou alegremente para a mesquita dos banhos. Lembra uma mesquita, telhas vermelhas, os minaretes. Esportes de colégio hoje estou vendo. Olhou para o cartaz de ferradura acima do portão do parque do colégio: ciclista dobrado como um bacalhau numa panela. Anúncio danado de ruim. Agora se o tivessem feito redondo como uma roda. Depois os raios da roda: esporte, esporte, esporte: e o eixo grande: colégio. Alguma coisa para atrair o olhar. 
     Ali está Hornblower de pé no alojamento do porteiro. Mantenha-o à mão: com um aceno ele pode deixar você dar uma volta por ali. Como vai, Sr. Hornblower? Como vai, senhor?
     Um tempo realmente divino. Se a vida fosse sempre assim. Tempo de críquete. Sentam-se por aqui debaixo dos guarda-sóis. Um serviço após o outro. Fora. Eles não podem jogar aqui. Seis escores nulos de um batedor. Ainda assim capitão Culler quebrou uma janela no clube da Kildare Street com um golpe violento contra a posição defensiva. A feira de Donnybrook faz mais o estilo deles. E as cabeças que nós estávamos quebrando quando M’Carthy começou a dançar. Onda-de-calor. Não vai durar. Está sempre passando, o fluxo da vida, aquilo que traçamos no fluxo da vida nos é mais caro dooo que tudo o mais. 
     Desfrute um banho agora: uma tina de água limpa, esmalte frio, o jorro tépido e suave. Este é o meu corpo. 
     Ele anteviu seu corpo pálido totalmente reclinado nela, nu, num útero de calor, untado de um sabonete líquido perfumado, suavemente banhado. Viu seu tronco e membros, limão-amarelo, cobertos pela água ondulada e por ela sustentados, boiar ligeiramente: seu umbigo, broto de carne: e viu os cachos escuros emaranhados de seu tufo flutuando, cabelo flutuante da corrente em volta do pai flácido de milhares, uma lânguida flor flutuando.

continua na página 84...
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Ulisses - Parte 2 (5c): Ele viu o padre
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Ulisses - Parte 2 (5b): Não me pegou desprevenido

Ulisses

James Joyce

Parte 2

5

continuando...

      Não me pegou desprevenido esse velho truque. O toque rápido. Alvo delicado. Gostaria do meu trabalho. Valise pela qual tenho um xodó especial. Couro. Cantos reforçados, bordas pregadas, fechadura de segurança com duplo ferrolho. Bob Cowley lhe emprestou a dele para o concerto das regatas de Wicklow o ano passado e nunca mais teve notícias dela desde esse bendito dia. 
     Vagando em direção a Brunswick Street, o Sr. Bloom sorriu. Minha cara-metade acabou de receber uma. Soprano sardenta esganiçada. Focinho de sovina. Bastante boa a seu modo: para uma pequena balada. Sem energia na voz. Você e eu, sabe: no mesmo barco. Bajulador. Dá nervosismo, isso dá. Será que ele não ouve a diferença? Acho que ele está um pouco propenso desse jeito. Um tanto a contragosto. Pensava que Belfast o buscaria. Espero que aquele surto de varíola lá não piore. Suponhamos que ela não se deixe vacinar de novo. Sua mulher e minha mulher.
     Eu me pergunto será que ele está me espionando?
     O Sr. Bloom ficou de pé na esquina, com os olhos percorrendo os cartazes multicoloridos. Jinjibirra de Cantrell e Cochrane (aromática). Saldo de verão de Clery. Não, ele vai prosseguir em frente. Alô. Leah hoje à noite. Sra. Bandman Palmer. Gostaria de vê-la de novo nisso. Ela fez o papel de Hamlet na noite passada. Personificadora masculina. Talvez ele fosse uma mulher. Por que Ofélia cometeu suicídio. Pobre papai! Como ele costumava falar de Kate Bateman nesse papel. Do lado de fora do Adelphi em Londres esperou toda a tarde para entrar. Isso foi um ano antes de eu nascer: sessenta e cinco. E Ristori em Viena. Como é mesmo o nome certo? É de Mosenthal. Rachel, não é? Não. A cena de que ele sempre falava em que o velho cego Abraham reconhece a voz e põe seus dedos na face dele.
     A voz de Nathan! A voz de seu filho! Eu ouço a voz de Nathan que deixou seu pai morrer de desgosto e de tristeza em meus braços, que deixou a casa de seu pai e deixou o Deus de seu pai.
     Todas as palavras são tão profundas, Leopold.
     Pobre papai! Pobre homem! Fico feliz de não ter entrado no quarto para olhar para o seu rosto. Aquele dia! Ó Deus! Ó Deus! Ffuu! Bem, talvez tenha sido melhor para ele.
     O Sr. Bloom deu a volta na esquina e passou pelos pôneis curvados da estação de carros. Não adianta pensar mais nisso. Hora do embornal. Gostaria de não ter encontrado aquele camarada M’Coy.
     Ele se aproximou e ouviu um mastigar de aveia dourada, os dentes suavemente triturando. Seus olhos saciados de cervo o olharam enquanto ele passava, por entre o doce cheiro forte de aveia da urina dos cavalos. O Eldorado deles. Pobre ignorância! Dane-se tudo que sabem ou que tem importância para eles com seus focinhos longos enfiados em embornais. Tão cheios que não dá para expressar em palavras. Ainda assim eles sem dúvida recebem sua comida e lugar para dormir. Castrados também: um coto de guta-percha preta balançando flácido entre as ancas. Podiam ser felizes mesmo assim daquele jeito. Parecem ser bons os pobres animais. No entanto seu relinchar pode ser muito irritante.
     Ele tirou a carta do bolso e a dobrou dentro do jornal que carregava. Podia esbarrar nela aqui. A ruela é mais segura.
     Passou diante do abrigo de cocheiro. Curiosa a vida de se deixar levar dos cocheiros. Toda sorte de tempo, todos os lugares, toda hora ou o desembarcar dos passageiros, nenhuma vontade própria. Voglio e non. Gosto de lhes dar um cigarro avulso. Sociáveis. Gritam algumas sílabas apressadas quando passam. Ele cantarolou.

Là ci darem la mano 
La la lala la la. 

     Ele dobrou em Cumberland Street e, dando alguns passos, parou no abrigo do muro da estação. Ninguém. O depósito de madeira de Meade. Vigas empilhadas. Ruínas e cortiços. Com passo cuidadoso passou por cima de uma quadra de amarelinha com sua esquecida pedradeapanhar. Não é um pecador. Perto do depósito de madeira uma criança agachada jogando bola de gude, sozinha, atirando a bola com o polegar entre os dedos. Uma gata sábia, uma esfinge a piscar, observava de sua soleira quente. Pena perturbá-los. Maomé cortou um pedaço de seu manto para não a acordar. Abra-a. E uma vez eu joguei bola de gude quando fui para a escola daquela velha senhora. Ela gostava da mignonette. Sra. Ellis. E Sr.? Ele abriu a carta dentro do jornal.
     Uma flor. Acho que é uma. Uma flor amarela com pétalas achatadas. Não está aborrecida então? O que ela diz?

Querido Henry,

Eu recebi a sua última carta para mim e lhe agradeço muito por isso. Sinto muito que você não tenha gostado da minha última carta. Por que você incluiu os selos? Estou muito zangada com você. Eu realmente gostaria de poder puni-lo por isso. Eu o chamei de menino levado porque não gosto daquele outro planeta. Por favor me diga qual é o sentido verdadeiro daquela palavra? Você não é feliz em sua casa pobrezinho do meu menininho levado? Eu realmente gostaria de fazer alguma coisa por você. Por favor diga o que você pensa da pobre de mim. Frequentemente penso no nome bonito que você tem. Querido Henry, quando vamos nos encontrar? Eu penso em você tanto que você não tem idéia. Nunca me senti tão atraída por um homem como você. Eu me sinto tão mal a respeito. Por favor me escreva uma carta longa e me conte mais. Lembre-se que se você não fizer eu vou puni-lo. Então agora você sabe o que vou fazer com você, seu menino levado, se você não escrevia. Ó como eu desejo o encontrar. Henry querido, não negue o meu pedido antes que minha paciência fiquem exaustas. Então eu lhe contarei tudo. Adeus agora, meu querido levado, estou com tanta dor de cabeça. hoje. e escreva pela volta à sua ansiosa
Martha 
P.S. Diga-me sem falta que tipo de perfume sua mulher usa. Eu quero saber.
x x x x 

     Ele arrancou a flor gravemente de seu alfinete cheirou sua quase ausência de perfume e a colocou em seu bolso do coração. Linguagem das flores. Elas gostam disso porque ninguém pode ouvir. Ou um buquê envenenado para derrubá-lo. Então caminhando lentamente para adiante ele leu de novo a carta, murmurando aqui e ali uma palavra. Tulipas zangadas com você querido homemflor castigam seu cacto se você não agradar a pobre miosótis como eu anseio violetas para as queridas rosas quando nós em breve encontrarmos anêmona a toda picante dulcamara mulher perfume de Martha. Tendo lido ela toda ele a retirou do jornal e a pôs de volta no bolso lateral.
     Alegria tênue entreabriu seus lábios. Mudou desde a primeira carta. Me pergunto se ela mesma a tinha escrito. Se fazendo de indignada: uma moça de boa família como eu, caráter respeitável. Podia encontrar um domingo depois do rosário. Obrigado: não tendo nada. Usual rixa de amor. Em seguida flertando nas esquinas. Tão ruim quanto uma briga com Molly. Charuto tem um efeito refrescante. Narcótico. Vou mais longe na próxima vez. Menino levado: punir: medo das palavras, naturalmente. Brutal, por que não? Tente de qualquer forma. Um pouco de cada vez.
     Tocando ainda com os dedos a carta em seu bolso ele retirou o alfinete dela. Um alfinete comum, hein? Atirou-o na rua. Tirado de algum lugar das roupas dela: alfinetadas juntas. Estranho o número de alfinetes que elas sempre têm. Nenhuma rosa sem espinhos. Vozes de Dublin de sotaque vulgar vociferavam em sua cabeça. Aquelas duas prostitutas aquela noite em Coombe, de braços dados na chuva.

Ó, Mary perdeu o alfinete de sua calçola. 
Ela não sabia o que fazer 
Para mantê-la em cima,
Para mantê-la em cima. 

     Ela? Elas. Que tremenda dor de cabeça. Tem suas rosas provavelmente. Ou sentada o dia inteiro batendo à máquina. Foco ocular ruim para nervos do estômago. Que perfume sua mulher usa? Ora é possível entender uma coisa dessas?

Para mantê-la em cima.

     Marta, Maria. Eu vi aquele quadro em algum lugar que eu esqueço agora de um velho mestre ou falsificado por dinheiro. Ele está sentado na casa delas, conversando. Misterioso. Também as duas prostitutas em Coombe escutariam.

Para mantê-la em cima.

     Tipo gostoso de sensação da noite. Basta de vagar. Só se recoste aqui: crepúsculo silencioso: deixe tudo amadurecer. Esqueça. Fale sobre os lugares em que você esteve, costumes estranhos. Aquela outra, a jarra na cabeça, estava preparando a ceia: frutas, azeitonas, água fresca deliciosa tirada do poço, friadepedra como o buraco no muro em Ashtown. Preciso levar um copo de papel na próxima vez que eu for às corridas de pôneis. Ela escuta com olhos grandes escuros e suaves. Conte a ela: mais e mais: tudo. Então um suspiro: silêncio. Longo longo longo descanso. 
     Andando embaixo do arco da estrada de ferro ele tirou o envelope, rasgou-o prontamente em pedaços e os espalhou pela rua. Os pedaços esvoaçaram para longe, afundaram no ar escuro: um esvoaçar branco, então tudo afundou.
     Henry Flower. Pode-se rasgar um cheque de cem libras da mesma maneira. Simples pedaço de papel. Lorde Iveagh certa vez descontou um cheque de setealgarismos de um milhão no banco da Irlanda. Mostra o dinheiro a ser extraído da cerveja. Assim mesmo o outro irmão lorde Ardilaun tem que mudar de camisa quatro vezes por dia, dizem. A pele produz piolhos ou vermes. Um milhão de libras, espere um minuto. Dois pence uma caneca, quatro pence um quarto, oito pence um galão de cerveja comum, não, um e quatro pence um galão de cerveja comum. Um e quatro em vinte: cerca de quinze. Sim, exatamente. Quinze milhões de barris de cerveja comum.
     O que é que estou dizendo barris? Galões. Cerca de um milhão de barris mesmo assim.
     Um trem que chegava retiniu fortemente acima de sua cabeça, vagão após vagão. Barris se chocaram em sua cabeça: cerveja insípida entornou e fez espuma dentro. As bocas dos barris saltaram abertas e uma enorme torrente sombria escoou, fluindo junto, serpenteando através das extensões de terra lamacentas por toda a terra plana, uma preguiçosa espiral empoçante de bebida carregando consigo flores de pétalas largas para fora de sua espuma.
     Ele atingira a porta dos fundos aberta da igreja de Todos os Santos. Entrando no pórtico retirou o chapéu, pegou o cartão do bolso e o meteu de novo atrás da carneira de couro. Maldito seja. Eu podia ter tentado cantar M’Coy por um bilhete para Mullingar.
     O mesmo aviso na porta. Sermão pelo muito reverendo John Conmee S. J. sobre São Peter Claver S. J. e a Missão Africana. Orações pela conversão de Gladstone também havia quando ele estava quase inconsciente. Os protestantes são a mesma coisa. Converta Dr. William J. Walsh D. D. à verdadeira religião. Salve milhões da China. Me pergunto como eles explicam isso para os chinas pagãos. Preferem uma libra de ópio. Celestiais. Grosseira heresia para eles. Buda o deus deles deitado de lado no museu. Não se afobando com a mão debaixo do rosto. Varetas de incenso queimando. Não como Ecce Homo. Coroa de espinhos e cruz. Ideia genial o trevo de São Patrício. Pauzinhos dos chineses comerem? Conmee: Martin Cunnigham o conhece: aparência distinta. Uma pena que eu não passei uma conversa nele para que Molly entrasse para o coro em vez daquele padre Farley que parecia um tolo mas não era. A eles é ensinado isso. Ele não irá sair de óculos escuros com o suor saindo pelos poros para batizar negros, não é? Os óculos iam agradar a fantasia deles, brilhando. Gostaria de vê-los sentados à volta num círculo com lábios grossos, escutando, extasiados. Vida mansa. Eles absorvem gostosamente como leite, suponho.
     O cheiro frio da pedra sagrada o chamava. Ele pisou nos degraus gastos, empurrou a porta de vaivém e entrou suavemente por trás.
     Alguma coisa acontecendo: alguma irmandade. Pena tão vazia. Lugar agradável e discreto para se estar ao lado de uma moça. Quem é meu próximo? Forçado pela hora a tornar lenta a música. Aquela mulher na missa de meia-noite. Sétimo céu. Mulheres ajoelhadas nos bancos com fitas carmesins em volta do pescoço, cabeças curvadas. Um grupo ajoelhado perto das grades do altar. O padre passou por elas, murmurando, segurando a coisa em suas mãos. Parou em cada uma, tirou uma comunhão, sacudiu uma gota ou duas (elas estão na água?) e a pôs com precisão em sua boca. O chapéu e a cabeça dela baixaram. Então a próxima. Seu chapéu baixou imediatamente. Em seguida a próxima: uma mulher velha e pequena. O padre se inclinou para a pôr em sua boca, murmurando o tempo todo. Latim. A próxima. Feche seus olhos e abra sua boca. O quê? Corpus: corpo. Cadáver. Boa ideia o latim. Entorpece-as primeiro. Asilo para os moribundos. Elas não parecem mastigá-la: apenas engoli-la. Ideia estranha: comendo pedacinhos de um cadáver. Ora os canibais concordam com isso.
     Ele ficou de lado observando suas máscaras cegas passarem pela nave lateral, uma a uma, e procurarem seus lugares. Aproximou-se de um banco e se sentou na ponta, afagando seu chapéu e jornal. Esses potes nós temos que usar. Devíamos ter os chapéus modelados em nossas cabeças. Elas estavam à volta dele aqui e ali, com as cabeças ainda inclinadas em suas fitas carmesins, esperando que ela derretesse em seus estômagos. Uma coisa assim como aquele mazzoth: é aquela espécie de pão: pão ázimo para proposição. Olhe para elas. Agora aposto que isso faz elas se sentirem felizes. Pirulito. Faz. Sim, é chamado pão dos anjos. Há uma grande ideia por trás disso, espécie de sentimento de reino de Deus está dentro você. Primeiros comungantes. Charlatanismo um penny por pedaço. Então se sentem todos como uma festa de família, o mesmo que no teatro, todos na mesma situação. Eles sentem. Tenho certeza disso. Não tão solitários. Em nossa confraria. Então saem um pouco embriagados. Soltam para fora a energia. O negócio é se você realmente acredita nisso. Cura de Lourdes, esquecimento, e a aparição de Knock, estátuas sangrando. Homem velho dormindo perto do confessionário. Daí esses roncos. Fé cega. Sãos e salvos nos braços de venha a nós o reino. Embala toda dor. Acordem a esta hora no ano que vem.
     Ele viu o padre guardar a taça da comunhão, bem dentro, e se ajoelhar um instante diante dela, mostrando uma sola grande cinza de bota por baixo do negócio de renda que ele vestia. Imagine se ele perdesse o alfinete de seu. Ele não ia saber o que fazer. Um ponto calvo atrás. Letras nas suas costas I.N.R.I? Não: I.H.S. Molly me disse certa vez em que eu lhe perguntei. Ignorado hipocritamente sobrevivi: ou não: ignorado humildemente sofri, é isso. E o outro? Inocente nazareno rapaz infeliz.
     Encontrar num domingo depois do rosário. Não negue o meu pedido. Surgir com um véu e uma bolsa preta. Penumbra e a luz por trás dela. Ela podia estar aqui com uma fita em volta do pescoço e fazer a outra coisa ainda assim às escondidas. O caráter deles. Aquele homem que passou de cúmplice a testemunha de acusação contra os invencíveis ele costumava receber a, o nome dele era Carey, a comunhão toda manhã. Esta mesma igreja. Peter Carey, sim. Não, Peter Claver eu estou pensando em. Denis Carey. E imagine só isso. Mulher e seis filhos em casa. E tramando aquele assassinato o tempo todo. Esses carolas, ora esse é um nome bom para eles, há sempre alguma coisa matreira na aparência deles. Eles também não são homens de negócio honestos. Ó, não, ela não está aqui: a flor: não, não. Por falar nisso, será que eu rasguei aquele envelope? Sim: embaixo da ponte.
     O padre estava enxaguando o cálice: em seguida ele bebeu de um trago o resto rapidamente. Vinho. Torna mais aristocrático do que por exemplo se ele bebesse o que eles estão acostumados a cerveja Guinness ou alguma bebida amarga de festa dublinense de Wheatley ou jinjibirra de Cantrell e Cochrane (aromática). Não lhes dá nem um pouco dele: vinho de proposição: só o outro. Grande consolo. Fraude piedosa mas bem certa: de outro modo eles teriam um velho beberrão pior do que qualquer outro que viesse, suplicando por uma bebida. Estranha toda a atmosfera de. Inteiramente certo. Perfeitamente certo é isso.
     O Sr. Bloom olhou para trás em direção ao coro. Não vai haver nenhuma música. Pena. Quem toca o grande órgão aqui eu me pergunto? O velho Glynn sabia como fazer o instrumento falar, o vibrato: cinquenta libras por ano dizem que ele recebia em Gardiner Street. Molly estava com uma voz ótima naquele dia, o Stabat Mater de Rossini. Primeiro o sermão do padre Bernard Vaughan. Cristo ou Pilatos? Cristo, mas não nos retenha a noite toda com isso. Era a música que eles queriam. O movimento dos pés tinha cessado. Podia se ouvir um alfinete cair. Eu tinha dito para ela entoar a voz na direção daquele ângulo. Eu podia sentir a vibração no ar, o máximo, as pessoas olhando para cima:

Quis est homo.

     Algo daquela antiga música sagrada é esplêndido. Mercadante: as sete últimas palavras. A décima segunda missa de Mozart: Gloria nela. Aqueles papas antigos eram interessados em música, em arte e estátuas e quadros de toda sorte. Palestrina por exemplo também. Eles tiveram um passado alegre enquanto durou. Saudável também, salmodiando, horário regular, em seguida a fermentação de licores. Benedictine. Green Chartreuse. No entanto, tendo eunucos em seu coro o que estava ficando um pouco excessivo. Que tipo de voz é essa? Deve ser curioso ouvir depois seus próprios baixos profundos. Connoisseurs. Suponhamos que eles não sintam nada depois. Espécie de um plácido. Nenhuma preocupação. Eles engordam, não é? Glutões, altos, pernas longas. Quem sabe? Eunuco. Uma maneira de se sair bem.  

continua na página 79...
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Ulisses - Parte 2 (5b): Não me pegou desprevenido
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Ulisses - Parte 2 (5a): Com um andar compassado

Ulisses

James Joyce

Parte 2

5

      Com um andar compassado o Sr. Bloom caminhou ao longo dos caminhões do cais de sir John Rogerson, passando por Windmill Lane, Leask o esmagador de linhaça, o prédio dos Correios e Telégrafo. Podia ter dado este endereço também. E passou pelo Abrigo do Marinheiro. Deixou para trás os ruídos matinais da beira do cais e enveredou pela Lime Street. Perto dos chalés um menino coletor de lixo estava refestelado, com o balde de refugo seguro por uma corda, fumando um coto de cigarro mastigado. Uma menina menor com cicatrizes de eczema na testa olhava para ele, segurando apaticamente sua argola de barril amassada. Diga pra ele que se ele fumar não crescerá. Ó deixe ele em paz! Sua vida não é lá esse mar de rosas. Esperando do lado de fora dos bares para trazer o pai pra casa. Vem pra casa pra mãe, pai. Hora de inatividade: não haverá muitas ali. Ele atravessou Towsend Street, passou em frente à fachada rebarbativa de Bethel. El, sim: casa de: Aleph, Beth. E por Nichols o agente funerário. É às onze. Tempo suficiente. Acho que Corny Kelleher se apossou do emprego para O’Neill. Canta com os olhos fechados. Corny. Encontrei com ela uma vez no parque. No escuro. Que achado. Um informante da polícia. Seu nome e endereço ela me deu então com meu patibum patibum bum, bum. Ó, certamente ele o abateu. Enterrá-lo barato num comosechama. Com meu patibum, patibum, patibum, patibum.
     Em Westland Row ele parou diante da vitrine da Companhia de Belfast de Chá Oriental e leu os rótulos dos pacotes de papel laminado: mistura requintada, a mais alta qualidade, chá da família. Muito calor. Chá. Tenho que conseguir um de Tom Kernan. Não poderia pedir-lhe isso no enterro, contudo. Enquanto seus olhos ainda liam brandamente ele tirou o chapéu aspirando serenamente o óleo do seu cabelo e pousando sua mão com lenta elegância sobre sua testa e cabelo. Manhã muito quente. Sob suas pálpebras caídas seus olhos encontraram a pequenina dobra da carneira de couro do seu chap de qualidade superior. Bem ali. Sua mão direita desceu até dentro da copa do chapéu. Seus dedos encontraram rapidamente um cartão atrás da carneira e o transferiram para o bolso do seu colete.
     Tanto calor. Sua mão direita passou de novo mais lentamente sobre sua testa e cabelo. Ele pôs então novamente o chapéu, aliviado: e leu de novo: mistura requintada, feita das melhores marcas do Ceilão. O Oriente distante. Lugar encantador deve ser: o jardim do mundo, folhas grandes preguiçosas a flutuar à volta, cactos, campinas floridas, cipós sinuosos assim os chamam. Me pergunto se é realmente assim. Aqueles cingaleses perambulando à volta sob o sol num dolce far niente, não fazendo absolutamente nada o dia inteiro. Dormem seis meses de doze. Calor excessivo para se brigar. Influência do clima. Letargia. Flores da ociosidade. O ar alimenta a maioria. Azotes. Estufa em Jardins Botânicos. Plantas sensitivas. Nenúfares. Pétalas cansadas demais para. Doença do sono no ar. Caminhar sobre pétalas de rosas. Imagine tentar comer tripa e mocotó. Onde é que estava aquele camarada que eu vi naquele quadro em algum lugar? Ah, sim, no mar morto flutuando de costas, lendo um livro com um guarda-sol aberto. Não poderia afundar mesmo que você tentasse: tão espesso de sal. Porque o peso da água, não, o peso do corpo na água é igual ao peso de quê? Ou é o volume que é igual ao peso? É uma lei ou coisa no gênero. Vance no ginásio estalando os dedos, ensinando. O currículo do colégio. Currículo estalejante. O que é realmente peso quando você diz o peso? Trinta e dois pés por segundo por segundo. Lei da queda dos corpos: por segundo por segundo. Eles todos caem no chão. A Terra. É a força de gravidade da Terra que é o peso.
      Ele virou em direção contrária e vagou pela rua. Como ela andava com suas salsichas? Desse jeito mais ou menos. Enquanto andava ele pegou o Freeman dobrado do seu bolso do lado, desdobrou-o, enrolou-o no seu comprimento como um bastão e bateu com ele na sua perna-de-calça a cada passo saracoteante. Ar descuidado: só dei uma passada para ver. Por segundo por segundo. Por segundo quer dizer cada segundo. Do meio-fio ele lançou um olhar penetrante através da porta do correio. Tarde demais para retirada das cartas das caixas. O correio aqui. Ninguém. Entrar.
      Ele estendeu o cartão através da grade de metal.

– Há alguma carta para mim? – perguntou.

     Enquanto a funcionária do correio procurava no escaninho ele olhou para o pôster de recrutamento de soldados de todas as armas em parada: e levou a ponta do bastão até as narinas, cheirando a tinta fresca do pedaço de jornal. Nenhuma resposta provavelmente. Fui longe demais da última vez.
     A funcionária estendeu de volta através da grade o cartão com uma carta. Ele agradeceu e olhou rapidamente para o envelope batido à máquina.

Henry Flower Esq. 
 c/o P. O. Westland Row 
 City.

     De qualquer forma respondeu. Ele enfiou o cartão e a carta no seu bolso do lado, revendo de novo os soldados em parada. Onde está o regimento do velho Tweedy? Soldado rejeitado. Ali; barretina de pele e penacho de pluma. Não, ele é um granadeiro. Punhos pontudos. Lá está ele: fuzileiros do Royal Dublin. Casacosvermelhos. Chamativos demais. Deve ser por isso que as mulheres vão atrás deles. Uniforme. Mais fácil de alistar e treinar. Carta de Maud Gonne para tirá-los da O’Connell Street à noite: uma desgraça para nossa capital irlandesa. O jornal de Griffith está com a mesma norma de ação agora: um exército podre com doença venérea: império ultramarino ou de embriagados. Parecem meio sazonados: como hipnotizados. Olhos fixos. Marcando o passo. Gamela: ela. Penacho: acho. Propriedade do rei. Nunca o vi vestido de bombeiro ou de policial. De maçom, sim.
     Ele se retirou do prédio do correio e dobrou à direita. Falar: como se isso consertasse as coisas. Sua mão entrou no bolso e um dedo indicador apalpou por baixo da aba do envelope, rasgando aos trancos ao abri-lo. Às mulheres pouco se lhes dá, creio. Seus dedos arrancaram a carta e amassaram o envelope em seu bolso. Alguma coisa presa com um alfinete: uma foto talvez. Cabelo? Não.
      M’Coy. Ficar livre dele rápido. Tirar-me do meu caminho. Detesto companhia quando se.

– Alô, Bloom. Para onde você está indo?

– Alô, M’Coy. Nenhum lugar em particular.

– Como vai essa força?

– Ótimo. E você como vai?

– Só me mantendo vivo – disse M’Coy.

     Com os olhos na gravata e na roupa preta ele perguntou em tom respeitoso:

– Há algum... nenhum problema espero? Vejo que você está...

– Ó, não – disse o Sr. Bloom. – Pobre Dignam, você sabe. O enterro é hoje.

– É isso aí, pobre homem. É mesmo. A que horas?

    Uma foto não é. Um emblema talvez.

– Ooonze – respondeu o Sr. Bloom.

– Eu vou tentar ir lá – disse M’Coy. – Onze, é isso não? Eu só soube ontem à noite. Quem foi mesmo que me disse? Holohan. Você conhece Hoppy?

– Conheço.

     O Sr. Bloom olhou para o outro lado da rua para o cabriolé parado diante da porta do hotel Grosvenor. O porteiro içou a valise no porta-bagagem. Ela ficou parada, aguardando, enquanto o homem, marido, irmão, como ela, procurava um trocado em seus bolsos. Tipo elegante de casaco com aquela gola alta, quente para um dia como aquele, parece um cobertor. Posição descuidada a dela com suas mãos naqueles bolsos de malha. Como aquela criatura altiva na partida de polo. As mulheres são todas a favor do sistema de classes até que se acerte no alvo. É bonito e faz bonito. Reservadas prestes a se render. A honrada Sra. e Brutus é um homem honrado. Possua-a uma vez e retire o formalismo dela.

– Eu estive com Bob Doran, em uma de suas bebedeiras periódicas, e como você o chama Bantam Lyons. Estivemos justamente ali no bar de Conway.

      Doran e Lyons no Conway. Ela ergueu uma mão enluvada até seus cabelos. Chegou o Hoppy. Tomando um trago. Inclinando a cabeça para trás e olhando para longe por entre as pálpebras abaixadas ele viu a pele castanho-clara brilhar no clarão, debruns engalonados. Posso ver claramente hoje. Talvez a umidade à volta permita uma visão de longa distância. Falando de uma coisa ou de outra. Mão de dama. De que lado ela vai se erguer?

– E ele disse: Que coisa triste aquela do nosso pobre amigo Paddy! Que Paddy?, disse eu. O pobrezinho do Paddy Dignam, disse ele.

      De partida para o campo: Broadstone provavelmente. Botas marrons de cano alto com os cadarços balançando. Pé bem torneado. Por que ele está alvoroçado com esse trocado? Me vê olhando. Sempre de olho em outro homem de reserva. Boa recuada. Para ela dois coelhos de uma só cajadada.

Por quê?, disse eu. O que há de errado com ele?, disse eu. 

     Altiva: rica: meias de seda.

– Sim – disse o Sr. Bloom.

     Ele andou um pouco para o lado da cabeça falante de M’Coy. Vai se levantar dentro de um minuto.

O que há de errado com ele?, disse ele. Está morto, disse. E, por certo, ele encheu a cara. O Paddy Dignam?, disse eu. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Eu estive com ele na sexta-feira passada ou quinta no Arco. Sim, disse ele: É sim. Ele se foi. Morreu na segunda-feira, pobre rapaz.

     Atenção! Atenção! Um lampejo de fina meia de seda branca. Atenção!
     Um pesado bonde buzinando a sineta girou no meio.
      Perdi. Maldito seja o seu nariz arrebitado e barulhento. Sente-se trancado do lado de fora. Paraíso e espírito benfazejo. Sempre acontece desse jeito. No momento exato. A moça na entrada de Eustace Street na segunda-feira estava ajeitando a liga. Sua amiga cobrindo a exibição da. Esprit de corps. Ora, por que você está aí embasbacado?

– Sim, sim – disse o Sr. Bloom depois de soltar um suspiro desanimado. – Um outro se foi.

– Um dos melhores – disse M’Coy.

      O bonde passou. Eles partiram em direção à ponte de Loop Line, sua bela mão enluvada no cabo de metal. Tremular, tremular: o brilho de renda do seu chapéu ao sol: tremular, tremor.

– Sua mulher está bem, suponho – disse M’Coy com voz mudada.

– Está, sim – disse o Sr. Bloom. – Excelente, obrigado.

      Ele desenrolou o bastão de jornal indolentemente e leu indolentemente:

O que é um lar sem 
Carne enlatada de Plumtree? 
Incompleto. 
Com ela uma moradia feliz.

– Minha cara-metade acabou de receber uma proposta de contrato. Pelo menos ainda não foi firmada.

      A tática da valise novamente. Por falar nisso nenhum problema. Estou fora disso, obrigado.
      O Sr. Bloom voltou seus olhos de longas pálpebras com afabilidade morosa.

– Minha mulher também – disse ele. – Ela vai cantar num negócio de alta esfera em Ulster Hall, Belfast, no dia vinte e cinco.

– É mesmo? – disse M’Coy. – Alegra-me ouvir isso, meu velho. Quem está pondo isso de pé?

     Sra. Marion Bloom. Ainda não está em pé. A rainha estava no seu quarto comendo pão com. Nenhum livro. Figuras sebentas de baralho estavam espalhadas ao longo de sua coxa em grupos de sete. Dama morena e homem louro. Carta. Gata como uma bola de pêlo negro. Pedacinho rasgado de envelope.

Velha. 
Doce. 
Canção. 
De amor. 
Vem velha doce...

– É uma espécie de tour, entendeu – disse o Sr. Bloom pensativamente. – Doooce canção. Há um comitê formado. Parte é repartida e parte é lucro.

     M’Coy acenou com a cabeça, puxando o bigode ralo.

– Ó, tudo bem – disse ele. – Isso é uma boa notícia.

     Ele se moveu para ir.

– Ora, é um prazer vê-lo em boa forma. Encontrá-lo perambulando.

– Sim – disse o Sr. Bloom.

– Por falar nisso – disse M’Coy. – Você poderia assinar o meu nome no enterro, está bem? Eu gostaria de ir mas é possível que eu não consiga, você sabe. Pode ser que um caso de afogamento em Sandycove venha à tona e então o médico-legista e eu teremos de ir para lá se o corpo for encontrado. Você só põe o meu nome se eu não estiver lá, está bem?

– Eu farei isso – disse o Sr. Bloom, se preparando para partir. – Está combinado.

– Certo – disse M’Coy vivamente. – Obrigado, meu velho. Eu iria se realmente pudesse. Bem. Até a vista. Só C. P. M’Coy basta.

– Isso será feito – respondeu o Sr. Bloom firmemente.

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Ulisses - Parte 2 (5a): Com um andar compassado
Ulisses - Parte 2 (5b): Não me pegou desprevenido
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Ulisses - Parte 2 (4c): Ele acomodou o livro

Ulisses

James Joyce

Parte 2

4

continuando...

   Ele acomodou o livro de qualquer jeito no seu bolso interior e, dando uma topada com os dedos dos pés contra a cômoda quebrada, saiu apressadamente em direção ao cheiro, descendo rapidamente a escada com pernas de uma cegonha agitada. Uma fumaça pungente se elevou com um jato raivoso de um lado da panela. Cutucando com um dente do garfo por baixo do rim ele o destacou e o virou de borco. Só um pouco queimado. E jogou-o então da panela num prato e deixou que o molho marrom reduzido gotejasse sobre ele.
   Uma xícara de chá agora. Ele se sentou, cortou uma fatia de pão e passou manteiga nela. Separou a superfície queimada e a jogou para a gata. Em seguida pôs uma garfada na boca, mastigando com discernimento a carne maleável e saborosa. No ponto exato. Um gole de chá. Então ele cortou fora pedacinhos de pão, embebeu um no molho e o pôs na boca. Que história era aquela de um jovem estudante e de um piquenique? Desamassou a carta ao seu lado e a leu lentamente enquanto mastigava, embebendo um outro pedacinho de pão no molho e o levando à boca.

Meu querido paizinho

Obrigadíssima pelo lindo presente de aniversário. Ele ficou esplêndido em mim. Todos dizem que eu fico uma beldade com o novo gorro escocês. Eu recebi a bonita caixa de bombons de chocolate de leite de mamãe e estou escrevendo. Eles são muito saborosos. Estou me saindo muito bem no negócio de fotografia agora. O Sr. Coghlan tirou uma foto de mim com a Sra. Vou mandar quando reproduzida. Ontem foi um dia ótimo para os negócios. Um dia bonito e todas as mulheres de pernas grossas estavam presentes. Na segunda-feira nós vamos com alguns amigos a um piquenique informal no lago Owel. Dê meu carinho a mamãe e para você um grande beijo e obrigada. Eu os ouço tocando piano lá embaixo. No sábado vai haver um concerto no Greville Arms. Há um jovem estudante chamado Bannon que vem algumas noites aqui seus primos ou coisa que o valha são da alta e ele canta a canção de Boylan (eu estava prestes a escrever Blazes Boylan) sobre as moças à beira da praia. Diga-lhe que a Silly-Milly lhe manda lembranças. Tenho que terminar agora com todo o meu amor.
A filha que o ama  
Milly
P.S. Desculpe a letra ruim estou apressada. Baibai.

M. 
   Quinze anos ontem. Curioso, dia quinze do mês também. Seu primeiro aniversário fora de casa. Separação. Eu me lembro da manhã de verão em que ela nasceu, correndo para bater na porta da Sra. Thornton em Denzille Street. Uma senhora idosa alegre. Ela deve ter contribuído para trazer ao mundo uma porção de bebês. Ela soube desde o início que o nosso pobre pequeno Rudy não viveria. Ora, Deus é bom, senhor. Ela soube imediatamente. Ele teria onze anos agora se tivesse vivido. 

   O rosto apático dele fixava compassivamente o pós-escrito. Desculpe a letra ruim. Pressa. Piano lá embaixo. Ela saindo da concha. A briga com ela no XLCafé sobre a pulseira. Não queria comer os bolos ou falar ou olhar. Atrevidinha. Ele embebeu outros pedacinhos de pão no molho e comeu pedaço por pedaço do rim. Doze shillings e seis por semana. Não muito. Assim mesmo ela podia estar em situação pior. Palco de musical. Jovem estudante. Ele tomou um gole de chá mais frio para banhar sua refeição. Em seguida leu a carta novamente: duas vezes. 
   Ó, tudo bem: ela sabe como se cuidar. Mas se não? Não, não aconteceu nada. Naturalmente que poderia. De qualquer jeito espere até que aconteça. Uma peça agreste de mercadoria. Suas pernas finas subindo correndo a escada. Destino. Amadurecendo agora. Vaidosa: muito. 
   Ele sorriu com uma preocupação afetiva para a janela da cozinha. O dia em que a peguei beliscando as bochechas para torná-las vermelhas. Um pouco anêmica. Foi-lhe dado leite tempo demais. Aquele dia no Rei de Erin em volta do Kish. Miserável barco velho jogando de popa a proa. Nem um pouco amedrontada. Sua echarpe azul-claro solta ao vento com o seu cabelo.  

Aquelas moças de se sonhar, 
Aquelas moças da beira-mar.

   Milly também. Beijos jovens: o primeiro. Bem longe agora o passado. Sra. Marion. Lendo, recostada agora, contando os fios de seus cabelos, sorrindo, trançando.
   Um suave receio, tristeza, percorreu sua espinha dorsal, num crescendo. Vai acontecer, sim. Impedir. Inútil: não posso alterar nada. Lábios delicados e doces de moça. Vai acontecer também. Sentiu o receio fluindo espalhar-se sobre ele. Inútil alterar agora. Lábios beijados, beijando, beijados. Lábios grossos e pegajosos de mulher.
   Melhor que esteja lá: longe. Ocupá-la. Queria um cachorro para passar o tempo. Podia viajar para lá. Feriado bancário de agosto, apenas duas e seis ida e volta. Seis semanas fora, no entanto. Podia cavar um passe de imprensa. Ou através de M’Coy.
   A gata, tendo limpado todo o seu pelo, voltou para o papel manchado de carne, cheirou-o e rastejou até a porta. Olhou de volta para ele, miando. Quer sair. Espere até que uma porta em determinado momento se abra. Que ela espere. Fica inquieta. Elétrica. Tempestade no ar. Estava lavando sua orelha com o dorso também voltado para a lareira.
   Ele se sentia pesado, cheio: então uma suave soltura de seus intestinos. Levantou-se, abrindo o cós da calça. A gata miou para ele.

– Miau – disse ele, em resposta. – Espere até eu terminar.

   Indolência: dia quente se aproximando. Trabalho demais se esfalfar subindo a escada até o patamar. 
   Um jornal. Ele gostava de ler na privada. Espero que nenhum chato venha bater na porta justo na hora em que eu estiver.
   Na gaveta da mesa ele encontrou um antigo número do Titbits. Dobrou-o e o pôs debaixo do braço, foi para a porta e a abriu. A gata subiu em saltos ágeis. Ah, queria ir lá para cima, enroscar-se como uma bola na cama.
   Escutando, ele ouviu a voz dela:

– Venha, venha, gatinha. Venha.

   Ele saiu pela porta dos fundos para o jardim: parou para escutar o que vinha do jardim vizinho. Nenhum som. Talvez estivesse pendurando roupas para secar. A empregada estava no jardim. Bela manhã.
   Ele se inclinou para contemplar uma magra fileira de hortelãs crescendo muro acima. Fazer um quiosque aqui. Feijões escarlates. Trepadeiras da Virgínia. É preciso estrumar todo o lugar, solo ingrato. Uma camada escura de potássio e enxofre. Todo solo seria assim se não se adubasse. Restos domésticos. Barro, o que é que é isso afinal? As galinhas do jardim vizinho: seus excrementos são adubo de primeira. No entanto o melhor é o do gado, especialmente quando eles são alimentados com torta de linhaça. Excremento arenoso. Melhor coisa para limpar luvas de senhoras de pele de cabra. A sujeira limpa. Cinza também. Reformar todo o lugar. Plantar ervilha naquele canto ali. Alface. Ter sempre então verduras frescas. Ainda assim os jardins têm seus inconvenientes. Aquela abelha ou mosca-varejeira aqui na segunda-feira de Páscoa. 
   Ele continuou a andar. Por falar nisso, onde está o meu chapéu? Devo tê-lo posto de volta no cabide. Ou deixado no chão. Engraçado, eu não me lembro disso. Cabideiro cheio demais. Quatro guarda-chuvas, capa de chuva dela. Pegando as cartas. A campainha da loja Drago tocando. Esquisito eu estava justamente pensando naquele momento. Cabelo castanho-escuro com brilhantina sobre o colarinho dele. Acabou de ser lavado e escovado. Eu me pergunto se vou ter tempo para um banho esta manhã. Tara Street. O camarada da caixa registradora ali ajudou James Stephens a escapar, dizem. O’Brien.
   Voz grave tem aquele camarada Dlugacz. Agendath o que é isso? Ora, minha senhorinha. Entusiasta.
   Chutando ele abriu a porta rachada do sanitário. É bom ter cuidado para não sujar esta calça para o enterro. Ele entrou, abaixando a cabeça sob o lintel baixo. Deixando a porta entreaberta, em meio ao mau cheiro de caiação mofada e teias de aranha bolorentas ele arriou o suspensório. Antes de se sentar deu uma olhadela através de uma fenda para a janela do vizinho. O rei estava no seu escritório de contabilidade. Ninguém.
   Acocorado no vaso sanitário ele abriu o jornal, virando as páginas sobre seus joelhos nus. Alguma coisa nova e fácil. Nada de muita pressa. Retenhamos um pouco. Nosso prêmio titbit: Golpe de mestre de Matcham. Escrito pelo Sr. Philip Beaufoy, Clube dos Aficionados do Teatro, Londres. Pagamento na base de um guinéu por coluna foi feito ao escritor. Três e meia. Três libras e três. Três libras, treze e seis.
   Tranquilamente ele leu, se contendo, a primeira coluna e, cedendo mas resistindo, começou a segunda. No meio do caminho, sua última resistência cedeu, ele permitiu que seus intestinos se esvaziassem tranquilamente enquanto ele lia, lendo ainda pacientemente aquela ligeira prisão de ventre da véspera tinha-se ido. Espero que não seja grande demais para não provocar novamente hemorroidas. Não, justo o tamanho. Assim. Ah! Prisão de ventre. Um tablete de cáscara-sagrada. A vida devia ser assim. Isso não o agitava nem o emocionava mas era alguma coisa rápida e limpa. Imprima qualquer coisa agora. Estação tola. Ele continuou a ler sentado calmamente sobre o seu próprio cheiro que se elevava. Limpo certamente. Matcham pensa frequentemente no golpe de mestre por meio do qual conquistou a feiticeira risonha com quem agora. Começa e termina moralmente. De mãos dadas. Esperto. Ele olhou para trás para o que tinha lido e, enquanto sentia a urina fluir tranquilamente, invejava brandamente o Sr. Beaufoy que tinha escrito isso e recebido pagamento de três libras, treze e seis.
   Podia arranjar um esquete. Pelo Sr. e a Sra. L. M. Bloom. Inventar uma história para algum provérbio. Qual? Houve tempo em que eu costumava tentar rabiscar no meu punho o que ela dizia ao se vestir. Não gosto que nos vistamos juntos. Me cortei ao me barbear. Ela mordendo o lábio inferior, ao enganchar a abertura de sua saia. Marcando o tempo dela. 9:15. Roberts já lhe pagou? 9:20. O que Gretta Conroy estava usando? 9:23. O que me fez comprar este pente? 9:24. Estou inchada depois daquele repolho. Um grão de pó na bota de verniz dela: esfregando vivamente de cada vez cada dobra da bota de encontro à barriga da perna com meia. Manhã depois da dança do bazar quando a banda de May tocou a dança das horas de Ponchielli. Explique-se isso: horas da manhã, meio-dia, então o entardecer chegando, então horas da noite. Ela lavando os dentes. Aquela foi sua primeira noite. Sua cabeça dançando. Seu leque clicando ao fechar. Esse tal de Boylan está bem de vida? Ele tem dinheiro. Por quê? Eu reparei que ele exala um cheiro bom da sua boca ao dançar. Não adianta cantarolar então. Aluda a isso. Tipo estranho de música naquela última noite. O espelho estava na sombra. Ela esfregou seu espelho de mão rapidamente na sua roupa de lã de encontro ao seio roliço e balouçante. Espreitando para dentro dele. Rugas nos seus olhos. De uma forma ou de outra não ia dar resultado.
   Horas crepusculares, moças em gaze cinza. Horas noturnas então: pretume com punhais e máscaras nos olhos. Ideia poética: rosa, e então dourado, e então cinza, e então preto. Ainda assim, fiel à realidade também. Dia: e então a noite.
   Ele rasgou com força metade da história premiada e se limpou com ela. Em seguida suspendeu a calça, pôs o suspensório e se abotoou. Puxou a porta desconjuntada do sanitário e saiu da penumbra para o ar livre.
   Na luz clara, com os membros frios e leves, ele olhou cuidadosamente para sua calça preta: as extremidades, os joelhos, os jarretes dos joelhos. A que horas é o enterro? Melhor verificar no jornal.
   Um rangido e um zunido sombrio bem alto no ar. Os sinos da igreja de São Jorge. Eles soaram a hora: elevado ferro escuro.

Haiho! Haiho! 
Haiho! Haiho! 
Haiho! Haiho!

   Um quarto para. Lá vai novamente: o som concomitante prosseguindo através do espaço. Um terceiro.
   Pobre Dignam!
 
continua na página 70...
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