Ulisses
James Joyce
Parte 1
Parte 1
3
continuando...
Uma mulher e um homem. Eu vejo o saiote dela. Arregaçado, eu aposto.
O cachorro deles marchava em volta de um banco reduzido de areia, trotando,
farejando para todos os lados. Procurando alguma coisa perdida em tempos idos. De repente
ele fugiu como uma lebre saltitante, as orelhas jogadas para trás, caçando uma gaivota em voo
rasante. O assobio estridente do homem atingiu suas orelhas flácidas. Ele se voltou, saltou
para trás, se aproximou, trotando com suas pernas reluzentes. Num campo alaranjado um
cervo, saltitante, de cor adequada, desprovido de chifres. Na orla rendada da maré ele se
deteve, com as patas da frente enrijecidas e as orelhas apontando para o mar. O focinho
erguido ele ladrou para o tumulto das ondas e para os bandos de vacas-marinhas. Elas
serpentearam em direção a seus pés, se encrespando, desfraldando crista por crista, toda nona,
quebrando, salpicando, vindo de longe, de bem longe, ondas e mais ondas.
Apanhadores-de-conchas. Eles andaram um pouco na água e, se inclinando,
encharcaram suas sacolas e as erguendo novamente saíram da água. O cão ganiu correndo para
eles, se ergueu e pôs as patas neles, caindo sobre as quatro patas, as ergueu novamente até
eles com um mudo afago rude. Ignorado, permaneceu junto deles enquanto eles se dirigiam
para a areia mais seca, com um frangalho de língua rapace vermelho-ofegante pendendo de
suas mandíbulas. Seu corpo sarapintado caminhava à frente deles e então deu longos passos
num galope de bezerro. A carcaça se encontrava em seu caminho. Ele parou, farejou, rastejou
em volta dela, irmão, esfregando o focinho mais perto, andou à sua volta, fungando
rapidamente como um cão por cima de todo o couro enlameado do cão morto. Crâniocanino,
fungadacanina, olhos no chão, ele se dirige para um grande alvo. Ah, pobre corpodecão! Aqui
jaz o pobre corpo do corpodecão.
– Andrajos! Cai fora, seu vira-lata!
O grito o trouxe esquivo de volta para o seu dono e o pontapé violento de um pé
descalço o lançou em fuga, servilmente agachado mas incólume através de um banco de areia.
Ele se moveu de volta furtivamente fazendo uma curva. Não me vê. Ao longo da borda do
quebra-mar ele saltou, zaranzou, cheirou uma rocha e empinando a perna traseira urinou nela.
Saiu trotando em frente e levantando novamente a perna traseira urinou agora um pouco e
rápido numa rocha não cheirada. Os prazeres simples dos pobres. Suas patas traseiras
espalharam então a areia: em seguida suas patas dianteiras salpicaram areia e esgravataram.
Alguma coisa ele enterrou ali, sua avó. Ele fuçou a areia, chapinhando, esgravatando e parou
para escutar o vento, cavou de novo a areia com a fúria de suas garras, cessando logo, um
leopardo, uma pantera, nascida do adultério, rapinando os mortos.
Depois que ele me acordou ontem à noite foi o mesmo sonho ou não foi? Espere. Abra
a porta da entrada. Rua das meretrizes. Lembre-se. Haroun al Raschid. Eu estou quasindo isso.
Aquele homem me levou, falou. Eu não estava com medo. O melão que ele segurava ele o
encostou no meu rosto. Sorriu: cheiro de frutacremosa. Era essa a regra, disse. Entre. Venha.
Tapete vermelho estendido. Você vai ver quem.
Com os sacos nos ombros eles se arrastavam, os ciganos. Os pés azulados dele
saindo das calças arregaçadas batiam na areia pegajosa, um cachecol cor de tijolo escuro
sufocava seu pescoço barbudo. Com passos de mulher ela seguia: o rufião e sua perambulante
rameira. Pilhagem suspensa nas costas dela. Areia fofa e grãos de concha se incrustavam nos
seus pés descalços. Seus cabelos caíam sobre sua face castigada pelo vento. Atrás do seu
senhor, a companheira dele, vão embora para Londres. Quando a noite esconde os defeitos do
seu corpo, envolta em seu xale marrom, atraindo para debaixo da arcada onde cães fizeram
suas sujeiras. Seu cáften está negociando com dois fuzileiros da Royal Dublin no bordel
O’Loughlin de Blackpitts. Beijem-na, façam amor com ela, digam-lhe coisas bonitas, pois, Ó,
ela é minha bonita e encantadora garota! Uma brancura demoníaca sob seus trapos rançosos.
A ruela de Fumbally aquela noite: os odores do curtume.
Brancas as tuas mãos, rubra a tua bocaO teu corpo é tão belo e tão delicado.Deita e dorme então comigo.No beijo da noite, no abraço apertado.
O que o barrigudo Aquino, frate porcospino, chama de deleitamento soturno. Antes
da queda Adão copulava mas não gozava. Deixe ele então gritar: teu corpo é tão delicado.
Linguagem nem um pouquinho pior do que a dele. Palavras de monge, contas-de-rosário que
tagarelam sobre suas cinturas: palavrasenganadoras, pepitas duras tamborilam em seus bolsos.
Passando agora.
Um olhar de soslaio para o meu chapéu à Hamlet. Se eu estivesse de repente nu
sentado aqui? Eu não estou. Através das areias do mundo inteiro, seguida pela espada
flamejante do sol, ela migra, em direção a oeste, para as terras da noite. Ela arrasta, schleppa,
traina, reboca, trascina sua carga. Uma maré que se estende para oeste atraída pela lua em seu
rastro. Marés nela, com miríades de ilhas, sangue que não é o meu, oinopa ponton, um mar
escuro como vinho. Contemple a serva da lua. No sono o sinal líquido lhe indica a sua hora,
ordena que ela se levante. Leito nupcial, leito de parto, leito de morte, de velas espectrais.
Omnis caro ad te veniet. Ele vem, o pálido vampiro, através da tempestade seus olhos, suas
asas de morcego ensanguentando o mar, boca para o beijo da boca feminina.
Aqui. Anote isso, cara, está bem? Minhas tabuletas. Boca para o beijo dela. Não. É
preciso duas delas. Que fiquem bem coladas. Boca para o beijo da boca feminina.
Os lábios dele tocaram e abocanharam os lábios descarnados do ar: a boca no ventre
dela. ’entre, tumba que tudo entranha. A boca dele moldou o sopro que emanava, sem fala:
ooiihaha: rugido de planetas diluvianos, englobados, chamejantes, rugindo longelongelongelongelonge. Papel. As notas bancárias, raios as partam. A carta do velho
Deasy. Aqui. Obrigado pela hospitalidade rasgue fora o final em branco. Virando as costas
para o sol ele se inclinou sobre uma mesa de rocha e escrevinhou palavras. Esta já foi a
segunda vez que eu esqueci de pegar papeletas no balcão da biblioteca.
Sua sombra repousava sobre as rochas quando ele se inclinou, terminando. Por que
não infindável até a estrela a mais distante? Elas estão ali sombrias por trás desta luz,
escuridão brilhando na claridade, delta de Cassiopéia, mundos. Eu estar sentado ali com
minha bengala como varinha de condão, de sandálias emprestadas, de dia, despercebido, ao
lado de um mar lívido, na noite violeta caminhando sob o domínio de estrelas misteriosas. Eu
me desfaço desta minha sombra circunscrita, forma humana inelutável e a chamo de volta.
Interminável, seria minha, forma de minha forma? Quem me observa aqui? Quem jamais em
algum lugar lerá estas palavras escritas? Sinais em um campo branco. Em algum lugar para
alguém em sua voz a mais flautada. O bom bispo de Cloyne retirou o véu do templo de seu
chapéu eclesiástico: véu do espaço com emblemas coloridos sombreados sobre a sua matéria.
Segure firme. Colorido sobre uma superfície plana: sim, está certo. A superfície plana eu vejo,
então pense em distância, perto, longe, o plano eu vejo, leste, atrás. Ah, veja agora! Cai para
trás subitamente, rígido em estereoscópio. Um clique opera o truque. Você acha minhas
palavras obscuras. A escuridão está em nossas almas você não acha? Mais aflautado. Nossas
almas, feridas pela vergonha de nossos pecados se aferram ainda mais a nós, uma mulher se
apega ao seu amante, mais e mais.
Ela confia em mim, sua mão suave, seus olhos de cílios longos. Agora com todos os
diabos aonde eu a estou levando para além do véu? Para a modalidade inelutável da
visualidade inelutável. Ela, ela, ela. Que ela? A virgem na vitrine de Hodges Figgis na
segunda-feira procurando os livros de abecedário que você ia escrever. Você lançou a ela
um olhar agudo. O pulso através da alça trançada da sombrinha dela. Ela vive no parque
Leeson de desgosto e guloseimas, uma dama letrada. Conte isso para outro, Stevie: uma
mulher fácil. Aposto que ela usa aquela praga de Deus de espartilho com ligas e meias
compridas amarelas cerzidas bojudas de cerzido. Fale com ela sobre bolinhos de maçã,
piuttosto. Onde é que está a sua esperteza?
Me acaricie. Olhos meigos. Mão macia macia macia. Eu estou sozinho aqui. Ó, me
acaricie logo, agora. Qual é aquela palavra conhecida de todos os homens? Eu estou aqui
quieto só. Triste também. Toque em mim, me acaricie.
Ele se deitou com o corpo estendido sobre as rochas pontiagudas, socando a nota
escrevinhada e o lápis dentro do bolso, com seu chapéu cobrindo os olhos. Esse movimento
que eu fiz é o mesmo de Kevin Egan, cabeceando para a sua soneca, na sesta de domingo.
Et vidit Deus. Et erant valde bona. Halô! Bonjour. Seja bem-vindo como as flores em maio.
Sob a aba do chapéu ele observou o sol que avançava para o sul através de seus cílios
palpitantes de lúnulas. Eu estou preso nesta cena ardente. A hora de Pan, o meio-dia do fauno.
Entre as plantasserpentes pesadas de goma, frutos gotejantes-de-leite, em cujas águas fulvas
folhas se estendem amplamente. O sofrimento está longe.
E basta de virar para o lado e meditar
Seu olhar se perdeu em suas botas de largosartelhos, os refugos de um cervo,
nebeneinander. Ele contou as pregas do couro vincado em que o pé de um outro se aninhara
aquecido. O pé que batera no chão em ritmo de tripudium, pé que eu desamo. Mas você ficou
encantado quando seu pé entrou no sapato de Esther Osvalt: moça que eu conheci em Paris.
Tiens, quel petit pied! Amigo fiel, uma alma irmã: amor de Wilde que não ousa dizer seu
nome. O braço dele: o braço de Cranly. Ele agora vai me abandonar. E a culpa de quem? Sou
como sou. Como sou. Ou tudo ou nada.
Em longas laçadas vindas do lago Cock a água fluía copiosa, cobrindo de areia as
lagoas verdedouradas, se elevando, jorrando. Minha bengala vai flutuar para longe. Eu vou
esperar. Não, a água vai continuar passando, passando, se esfregando de encontro às rochas
baixas, rodopiando, passando. É melhor terminar com este negócio rápido. Ouça: a linguagem
de quatropalavras da onda: siisu, hrss, rsseeiss, uuus. Sopro veemente das águas entre
serpentesmarinhas, cavalos corcoveantes, rochas. Nas cavidades das rochas ela salpica:
sacode, salpica, bate: ricocheteando em tonéis. E, exausta, sua fala se extingue. Ela reflui,
fluindo amplamente, poça-de-espuma flutuante, flor desabrochante.
Sob a maré que se ergue inflada ele viu as algas contorcidas se elevarem
languidamente e balançarem os braços relutantes, erguendo seus saiotes, balançando e
revirando suas tímidas copas prateadas na água sussurrante. Dia após dia: noite após noite: se
ergueram, jorraram e se deixaram cair. Céus, elas estão cansadas e quando alguma coisa lhes é
cochichada elas suspiram. Santo Ambrósio ouviu o suspiro das folhas e ondas, esperando,
aguardando a plenitude de seus dias, diebus ac noctibus iniurias patiens ingemiscit.
Reunidas sem nenhuma finalidade; em vão em seguida libertadas, jorrando para a frente,
recuando para trás: tecelagem da lua. Também cansada aos olhos dos amantes, dos homens
lascivos, uma mulher nua brilhando em sua corte, ela retira das águas um trabalho árduo para
si.
Cinco braças ali. Umas boas cinco braças abaixo teu pai repousa. Ele disse: à uma
hora. Encontrado afogado. Maré alta na barra de Dublin. Arrastando à sua frente um monte
solto de detritos, um leque de cardume de peixes, de conchas disparatadas. Um cadáver
branco de sal se erguendo na ressaca, um boto balançando passo a passo em direção à terra.
Lá está ele. Enganche-o rápido. Puxe. Por mais afundado que ele esteja sob o solo da água.
Nós o temos. Devagar agora.
Saco de gás cadavérico ensopado em salmoura infecta. Uma trepidação de
barrigudinhos, gordura de um petisco esponjoso, jorra através das fendas da braguilha
abotoada de sua calça. Deus se torna homem se torna peixe se torna bernaca se torna montanha
de leito-de-penas. Sopros mortais eu respiro vivo, piso em pó morto, devoro os restos
urinosos de todos os mortos. Arrastado rígido sobre a amurada ele exala para cima o odor
fétido de sua sepultura verde, o orifício leproso de seu nariz ressonando para o sol.
Uma mudança do mar esta, olhos marrons azulados de sal. Morte no mar, a mais suave
de todas as mortes conhecidas do homem. Velho Pai Oceano. Prix de Paris: cuidado com
imitações. Faça você mesmo simplesmente um julgamento justo. Nós nos divertimos
imensamente.
Vamos. Estou com sede. O céu está se cobrindo de nuvens. Nenhuma nuvem escura em
parte alguma, será que há? Trovão de tempestade. Todoesplendoroso ele cai, o clarão
orgulhoso do intelecto, Lucifer, dico, qui nescit occasum. Não. Meu chapéu de bico, meu
bastão e delemeus sapatos assandalhados. Onde? Para terras noturnas. A noite vai se encontrar
a si mesma.
Ele pegou o cabo de sua bengala, dando uma estocada com ela, brincando parado com ela. É isso aí, a noite vai se encontrar em mim, sem mim. Todos os dias completam o seu fim. Por falar nisso o próximo quando será. Terça-feira será o dia mais longo. De todo este ano novo feliz, mamãe, rataplan, plan, plan. Lawn Tennyson, cavalheiro poeta. Già. Para a velha megera de dentes amarelos. E monsieur Drumont, cavalheiro jornalista. Già. Meus dentes estão bem ruinzinhos. Por quê, eu me pergunto. Sinta. Este também se vai. Conchas. Eu me pergunto, será que eu devo ir ao dentista com este dinheiro? Aquele. Este. Kinch desdentado, o super-homem. Por que isso, eu me pergunto, ou talvez queira dizer alguma coisa?
Ele pegou o cabo de sua bengala, dando uma estocada com ela, brincando parado com ela. É isso aí, a noite vai se encontrar em mim, sem mim. Todos os dias completam o seu fim. Por falar nisso o próximo quando será. Terça-feira será o dia mais longo. De todo este ano novo feliz, mamãe, rataplan, plan, plan. Lawn Tennyson, cavalheiro poeta. Già. Para a velha megera de dentes amarelos. E monsieur Drumont, cavalheiro jornalista. Già. Meus dentes estão bem ruinzinhos. Por quê, eu me pergunto. Sinta. Este também se vai. Conchas. Eu me pergunto, será que eu devo ir ao dentista com este dinheiro? Aquele. Este. Kinch desdentado, o super-homem. Por que isso, eu me pergunto, ou talvez queira dizer alguma coisa?
Meu lenço. Ele o atirou. Eu me lembro. Eu não o apanhei?
Sua mão apalpou em vão os seus bolsos. Não, eu não apanhei. Melhor comprar um.
Ele colocou, cuidadosamente, a meleca seca que tirou de sua narina numa saliência da
rocha. Quanto ao resto, quem quiser que veja.
Atrás. Talvez haja alguém.
Ele virou o rosto por sobre o ombro, olhando para trás. Movendo-se através do ar
vergas elevadas de três mastros, com suas velas enfunadas nos vaus reais, um navio silencioso
voltava para casa, corrente acima, movendo-se silenciosamente.
continua na página 57...
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Ulisses - Parte 1 (3c): Uma mulher e um homem
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Joyce, James
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.
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