terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Ulisses - Parte 2 (4a): O Sr. Leopold Bloom

Ulisses

James Joyce

Parte 2

4

   O Sr. Leopold Bloom comia com prazer os órgãos internos de aves e de outros animais. Ele gostava de uma sopa grossa de miúdos de aves, moela com nozes, um coração recheado assado, fatias de fígado fritas à milanesa, ovas de bacalhau tostadas. Mais do que tudo ele gostava de rins de carneiro grelhados que davam ao seu paladar um sabor refinado de urina ligeiramente perfumada. 
   Rins estavam em sua cabeça enquanto ele se movia mansamente pela cozinha, arrumando as coisas dela na bandeja corcovada. Havia na cozinha uma luz e um ar gélidos mas lá fora se estendia em toda parte uma suave manhã de verão. Fazia com que ele se sentisse um tanto faminto.
   Os carvões estavam avermelhando.
   Uma outra fatia de pão com manteiga: três, quatro: certo. Ela não gostava de seu prato cheio. Tudo bem. Ele deu as costas para a bandeja, levantou a chaleira da chapa de ferro da lareira e a pôs de lado no fogo. Ela ficou ali sentada, apática e acocorada, com o bico projetado para fora. Uma xícara de chá logo. Bom. Boca seca.
   A gata andou toda esticada com a cauda erguida em volta de uma das pernas da mesa.

– Minhau.

– Ah, você está aí – disse o Sr. Bloom, se virando de costas para o fogo. 

   A gata respondeu miando e toda esticada se aproximou rastejando miando novamente em volta de uma das pernas da mesa. Exatamente do jeito que ela rasteja em cima de minha escrivaninha. Ronron. Coce minha cabeça. Ron. 
   O Sr. Bloom observou, gentilmente inquisitivo, a forma negra flexível. Graciosa de ver: o brilho do seu pelo lustroso, o botão branco sob a base de sua cauda, os olhos verdes cintilantes. Ele se inclinou para ela, com mãos apoiadas nos joelhos.

 – Leite para a gatinha – disse ele

– Minhau! – gritou a gata.

   Eles as chamam de tolas. Elas entendem o que dizemos melhor do que nós as entendemos. Ela entende tudo que quer. Vingativa também. Cruel. A natureza dela. Curioso os camundongos não chiam nunca. Parecem gostar disso. Eu me pergunto o que é que eu pareço para ela. Altura de uma torre? Não, ela pode pular por cima de mim.

– Medo dos pintos ela tem – disse ele zombeteiramente. – Medo dos chukchuks. Eu nunca vi uma gatinha tão tola como essa gatinha. 

– Miinhau! – gritou alto a gata. 

   Ela piscou para ele seus olhos ávidos a se fechar envergonhados, miando longa e queixosamente, mostrando para ele seus dentes brancos como leite. Ele observou as pupilas escuras se apertando de ganância até os olhos se tornarem duas pedras verdes. Em seguida ele foi até o aparador, pegou a jarra que o leiteiro de Hanlon acabara de encher para ele, derramou leite quente e espumoso em um pires que pôs lentamente no chão.

– Grru! – ela gritou, correndo para lamber. 

   Ele espreitou os bigodes dela brilhando metalicamente sob a luz fraca enquanto ela se inclinava três vezes e lambia ligeiramente. Eu me pergunto se é verdade que se cortarmos seus bigodes eles não podem mais depois caçar ratos. Por quê? Elas brilham no escuro, talvez, as pontas. Ou são uma espécie de antenas no escuro, talvez.
   Ele escutou o barulhinho da lambida dela. Ovos e presunto, não. Ovos nada bons nesta estiagem. Precisam de água fresca pura. Quinta-feira: um dia nada bom para rim de carneiro do Buckley. Frito na manteiga, com um pouco de pimenta. Melhor um rim de porco do Dlugacz. Enquanto a chaleira está fervendo. Ela sorveu mais devagar, limpando então o pires com lambidas. Por que as línguas deles são tão ásperas? Para lamber melhor, todas de orifícios porosos. Nada que ela possa comer? Ele olhou à sua volta. Não.
   Com suas botas rangendo discretamente ele subiu a escada que dava para o saguão e parou junto à porta do quarto. Talvez ela gostasse de alguma coisa saborosa. Ela gosta de manhã de fatias finas de pão com manteiga. Ainda assim quem sabe: uma vez ou outra.
   Ele falou suavemente no saguão vazio:

– Eu vou dar um pulo na esquina. Estou de volta em um minuto.

   E quando ouviu sua voz dizer isso ele acrescentou: 

– Você quer alguma coisa para o café-da-manhã? 

   Uma voz sonolenta resmungou como resposta: 

– Mnan. 

   Não. Ela não queria nada. Ele ouviu então um suspiro pesado e caloroso, mais suave, quando ela se virou na cama e as argolas de metal do enxergão soltas tilintaram. Tenho que mandar consertar essas coisas realmente. Que pena. Vindas de tão longe de Gibraltar. Ela esqueceu o pouco espanhol que sabia. Imagino o quanto o pai dela deu por isso. Estilo antigo. Ah sim! naturalmente. Comprou-a no leilão do governador. Conseguiu num lance curto. Duro na queda numa barganha, o velho Tweedy. Sim, senhor. Isso foi em Plevna. Eu vim de soldado raso a oficial, senhor, e me orgulho disso. Ainda assim ele tinha massa cinzenta suficiente para especular com selos. Ora isso era ver longe.
   Sua mão pegou o chapéu no cabide por cima de seu sobretudo pesado com suas iniciais e de sua capa de chuva de segunda mão do departamento de objetos perdidos. Selos: figuras com cola no verso. Aposto que muitos oficiais também estão por dentro disso. Naturalmente que estão. A inscrição gordurosa na copa interna do chapéu lhe lembrou silenciosamente: a alta categoria de Plasto, ora. Ele deu uma rápida olhadela dentro da tira de couro. Papelzinho branco. Bem seguro ali.
   Na soleira da porta ele apalpou o bolso de trás em busca da chave de trinco. Nada ali. Na calça que eu suspendi. Tenho que pegá-la. A batata eu tenho. Armário rangente. Inútil perturbá-la. Ela se virou sonolentamente daquela vez. Ele puxou a porta do saguão atrás de si bem suavemente, mais, até que o rodapé da porta caiu gentilmente sobre a soleira, um tampo flácido. Parecia fechada. Está certo ao menos até eu voltar.
   Ele atravessou para o lado ensolarado, evitando o alçapão da adega, solto, do número setenta e cinco. O sol estava se aproximando do campanário da igreja de São Jorge. Será um dia quente imagino. Especialmente nestas roupas pretas vou sentir mais. O preto conduz, reflete (será refrata?) o calor. Mas eu não podia ir com aquele terno claro. Fazer disso um piquenique. Suas pálpebras se afundaram mansamente várias vezes enquanto ele andava em meio à calidez aprazível. A caminhonete do pão de Boland entregando em bandejas o nosso de cada dia mas ela prefere pães dormidos pastéis tostados com a parte de cima quente. Faz você se sentir jovem. Em algum lugar no Oriente: cedo de manhã: partir de madrugada. Viajar por aí de frente pro sol, roubar um dia de marcha dele. Manter isso para sempre nunca ficar um dia sequer tecnicamente mais velho. Caminhar ao longo da praia, terra estranha, chegar ao portão de uma cidade, sentinela ali, velho soldado que também chegou a oficial, o bigode grande do velho Tweedy, se apoiando numa espécie de lança longa. Perambular através das ruas sombreadas de toldos. Rostos de turbantes passando. Grutas escuras como lojas de tapetes, homem grande, Turco o Terrível, sentado de pernas cruzadas, fumando um cachimbo espiralado. Gritos de vendedores nas ruas. Beber água perfumada com erva-doce e suco de frutas. Vagar o dia inteiro. Poderia encontrar um ou dois ladrões. Pois bem, encontrá-lo. Indo para o poente. As sombras das mesquitas entre os pilares: padre com um pergaminho enrolado. Um estremecer das árvores, sinal, o vento da noite. Eu sigo em frente. Céu dourado sumindo. Uma mãe me observa da soleira de sua porta. Ela chama seus filhos pra casa na linguagem obscura deles. Muro elevado: além tangem cordas. Céu noturno, lua, violeta, cor das novas ligas de Molly. Cordas. Ouça. Uma moça tocando um desses instrumentos como é que vocês os chamam: cítaras. Eu passo.
   Provavelmente nem um pouco realmente desse jeito. Espécie de matéria que você lê: no rastro do sol. Refulgência do sol no título da página. Ele sorriu, num agrado a si mesmo. O que Arthur Griffith disse sobre o cabeçalho a respeito do líder do Freeman: um governo próprio se erguendo a noroeste vindo da alameda atrás do banco da Irlanda. Ele prolongou seu sorriso satisfeito. Um esperto toque judeu este: sol de autonomia se erguendo a noroeste.
   Ele se aproximou do armazém de Larry O’Rourke. Partindo do respiradouro de grade do porão flutuava o jato fraco de cerveja. Através da porta aberta do bar jorravam bafos de gengibre, pó de chá, farinha de biscoito. Uma casa boa, no entanto: bem no final do tráfego da cidade. Por exemplo o armazém de M’Auley lá embaixo: nada bom como localidade. Naturalmente se criassem uma linha de bonde do mercado de gado ao cais ao longo do Circular-Norte ia ser um tiro em termos de valorização.
   Cabeça calva acima da veneziana. Velho astuto e esquisitão. Inútil cabalá-lo para um anúncio. Assim mesmo ele conhece melhor o seu negócio. Lá está ele, com toda a certeza, meu audacioso Larry, em manga de camisa apoiado na caixa de açúcar de olho no seu caixeiro que limpava com esfregão e balde de água. Simon Dedalus imita com a maior precisão seus olhos apertados. Você sabe o que eu vou lhe dizer? O que é isso, Sr. O’Rourke? Sabe de uma coisa? Os russos, eles seriam apenas um café de oito da manhã para os japoneses.
   Pare e diga uma palavra: sobre o funeral quem sabe. Coisa triste a do pobre Dignam, Sr. O’Rourke.
   Dobrando na rua Dorset ele disse com uma saudação vigorosa através da soleira da porta:

– Bom-dia, Sr. O’Rourke.

– Bom-dia para o senhor também.

– Um dia bonito, senhor.

– É isso tudo sim.

   Onde eles conseguem o dinheiro? Caixeiros ruivos vindos do condado de Leitrim, enxaguando os recipientes vazios e guardando na adega os restos de bebida de um freguês. Então, veja e observe, eles florescem como Adam Findlater ou Dan Tallon. Pense então na competição. Sede geral. Um bom quebra-cabeça seria atravessar Dublin sem passar por um bar. Poupar isso eles não podem. Retirado dos bêbados talvez. Anotar três e levar cinco. O que é isso, um shilling aqui outro ali, em conta-gotas. Na venda por atacado talvez. Fazendo uma trapaça dupla com os caixeiros-viajantes. Elevem isso com o patrão e nós dividiremos o lucro, certo?
   Quanto iria totalizar tirando isso por mês da cerveja? Digamos dez barris do troço. Digamos que ele retire dez por cento. Ou mais. Quinze. Ele passou pela escola Nacional São José. Gritaria dos fedelhos. Janelas abertas. Ar fresco ajuda à memória. Ou o ritmo. Abecê defgê kaelemen opequê erstuvê dabliu. São meninos eles? Sim. Inishturk. Inishark. Inishboffin. Na jografi deles. A minha. Monte Bloom.
   Ele parou em frente à vitrine de Duglacz, olhando para as salsichas, chouriços, brancos e pretos. Quinze multiplicado por. Os números empalideceram em sua mente, sem solução: insatisfeito, ele os deixou sumir. Rolos reluzentes, abarrotados de recheio de carne moída, alimentavam seu olhar e ele inspirava tranquilinho a exalação tépida de sangue de porco condimentado, cozido.
    Um rim vertia gotas-de-sangue na travessa decorada de ramos de salgueiro: o último. Ele estava no balcão ao lado da moça sua vizinha. Será que ela ia comprar isso também, nomeando os itens de um pedaço de papel em sua mão? Áspera: água sanitária. E um quilo e meio de salsichas Denny. Os olhos dele repousaram nos quadris viçosos dela. Woods é o nome dele. Eu me pergunto o que ele faz. A mulher dele é velhota. Sangue novo. Nenhum pretendente permitido. Um par de braços fortes. Batendo com força um tapete no varal. E ela bate com força mesmo, por Deus. Do jeito que sua saia retorcida balança a cada batida forte.
   O salsicheiro de olhos-de-fuinha dobrou, com dedos manchados de rosa-da-salsicha, as salsichas que ele tinha cortado. Carne de boa qualidade ali: como uma novilha engordada- no-estábulo.
    Ele pegou uma página da pilha de folhas cortadas: a fazenda modelo em Kinnereth à beira do lago de Tiberíades. Poderia se tornar um sanatório de inverno ideal. Moisés Montefiore. Eu achava que ele era. Casa de fazenda, cercada por um muro, gado indistinto pastando. Ele afastou a página de si: interessante: leia mais perto, o título, o indistinto gado pastando, a página farfalhando. Uma jovem novilha branca. Aquelas manhãs no mercado-de-gado, os animais mugindo em seus cercados, carneiros marcados a ferro, baque e queda de esterco, os criadores com botas ferradas, chafurdando no estrume, batendo com a palma no quarto traseiro de carne no ponto, essa está no auge, com uma vareta em estado bruto na mão. Ele segurou pacientemente a página inclinada, contendo seus sentidos e sua vontade, com o olhar suavemente pousado. A saia retorcida balançando, blam e blam e blam.

continua na página 61...
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Ulisses - Parte 2 (4a): O Sr. Leopold Bloom
Ulisses - Parte 2 (4b): O salsicheiro
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

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