terça-feira, 21 de março de 2023

Ulisses - Parte 1 (1d): Haines, que até então rira

Ulisses

James Joyce

Parte 1

1


continuando...

Haines, que até então rira prudentemente, prosseguiu andando ao lado de Stephen e disse:

– Não deveríamos rir, creio. Ele é muito irreverente. Eu mesmo não sou um crente, na verdade. Assim mesmo a sua alegria retira um pouco o aspecto ofensivo, não é? Como é que ele o chamou? José o Carpinteiro? 

– A balada do Jesus piadista – respondeu Stephen. 

– Ó – disse Haines –, você já ouviu isso antes? 

– Três vezes ao dia, depois das refeições – disse Stephen secamente. 

– Você não é um crente, é? – perguntou Haines. – Quero dizer, um crente no sentido estrito da palavra. Criação do nada e milagres e um Deus pessoal. 

– Só existe um sentido da palavra, me parece – disse Stephen.

Haines parou para retirar uma cigarreira de prata na qual brilhava uma pedra verde. Ele a abriu fazendo saltar a tampa com o polegar e a ofereceu. 

– Obrigado – disse Stephen, pegando um cigarro.

Haines tirou um para si e fechou com um estalo a cigarreira. Ele a pôs de volta em seu bolso do lado e tirou do bolso do seu colete um isqueiro de níquel, abriu-o e tendo acendido seu cigarro, estendeu a centelha chamejante para Stephen, protegida por suas mãos fechadas em concha.

– Sim, naturalmente – disse ele, enquanto eles retomavam a caminhada. – Ou a gente acredita ou não acredita, não é? Pessoalmente eu não poderia engolir a idéia de um Deus pessoal. Você não defende essa idéia, suponho? 

– Você vê em mim – disse Stephen com soturno descontentamento – um horrível modelo de livre-pensamento.

Ele continuou a andar, esperando que lhe fosse dirigida a palavra, arrastando sua bengala ao seu lado. Sua ponteira seguia ligeiramente pelo caminho, chiando em seus calcanhares. Meu espíritobruxo, atrás de mim, me chamando, Steeeeeeeeeeephen! Uma linha oscilante ao longo do caminho. Eles vão caminhar por ele de noite, vindo aqui no escuro. Ele quer a chave. Ela é minha. Eu paguei o aluguel. Agora eu como seu pão salgado. Dê-lhe a chave também. Tudo. Ele vai pedi-la. Isso estava claro em seus olhos.

– Afinal de contas... – começou Haines. 

Stephen se virou e viu que o olhar frio que o examinava não era tão mau assim. 

– Afinal de contas, eu diria que você é capaz de se libertar. Você é seu próprio mestre, me parece. 

– Eu sou um servo de dois patrões – disse Stephen –, um inglês e um italiano. 

– Italiano? – disse Haines.

Uma rainha louca, velha e ciumenta. Ajoelhe-se diante de mim

– E um terceiro – disse Stephen – existe que me quer para trabalhos avulsos. 

– Italiano? – Haines disse novamente. – O que você quer dizer? 

– O estado imperial britânico – respondeu Stephen, ficando ruborizado – e a santa igreja católica apostólica romana.

Haines retirou do lábio inferior algumas fibras de tabaco antes de falar.

– Eu posso entender isso perfeitamente – disse ele calmamente. – Um irlandês deve pensar assim, ouso dizer. Nós na Inglaterra sentimos que tratamos vocês bem injustamente. Parece que a culpa é da história.

Os títulos potentes e orgulhosos retiniram na memória de Stephen o triunfo de seus sinos de bronze: et unam sanctam catholicam et apostolicam ecclesiam: o crescimento lento e a mudança de rito e dogma como seus próprios pensamentos escassos, uma química de estrelas. Símbolo dos apóstolos na missa para o papa Marcelo, as vozes misturadas, cantando alto em uníssono como afirmação: e por trás do canto o anjo vigilante da igreja militante desarmava e ameaçava seus heresiarcas. Uma horda de heresias voando impropriamente com mitras: Fócio e a ninhada de zombadores dos quais Mulligan era um, e Ario lutando com a própria vida a respeito da consubstancialidade do Filho com o Pai, e Valentino, rejeitando o corpo terrestre de Cristo, e o sutil heresiarca africano Sabelio que afirmou que o Pai era Ele Próprio Seu próprio Filho. Palavras que Mulligan falara havia um momento como zombaria ao estrangeiro. Zombaria vã. O vazio aguarda certamente todos aqueles que tecem o vento: uma ameaça, um desarmar e uma derrota provocada por aqueles anjos dispostos para a batalha da igreja, o exército de Miguel, que sempre a defende na hora do conflito com suas lanças e seus escudos. 

Bravo, bravo! Aplauso prolongado. Zut! Nom de Dieu! 

– Naturalmente eu sou um britânico – disse a voz de Haines –, e sinto como tal. Eu também não quero ver meu país cair nas mãos de judeus-alemães. Receio que seja esse o nosso problema nacional, agora.

Dois homens estavam de pé na beira do penhasco, observando: um comerciante, um barqueiro. 

– Ele está se dirigindo para o porto de Bullock. 

O barqueiro acenou em direção ao norte da baía desdenhosamente. 

– Ali há cinco braças – disse ele. – Desse jeito ele vai ser dragado quando a maré subir por volta de uma hora. Faz nove dias hoje. 

O homem que tinha se afogado. Uma vela girando em volta da baía vazia esperando que uma trouxa intumescida emerja subitamente, virando para o sol um rosto inchado, branco como o sal. Aqui estou eu.
Eles desceram do penhasco pelo caminho tortuoso. Buck Mulligan ficou de pé em cima de uma pedra, em manga de camisa, com a sua gravata desfeita esvoaçando no ombro. Um jovem se agarrando a uma saliência da rocha perto dele moveu lentamente como um sapo suas pernas verdes na profundeza gelatinosa da água

– O seu irmão está com você, Malachi? 

– Lá em Westmeath. Com os Bannons. 

– Lá ainda? Eu recebi um cartão de Bannon. Diz que ele conheceu uma coisinha jovem e encantadora lá. Moça da foto como ele a chama. 

– Um instantâneo, hein? Uma revelação rápida.

Buck Mulligan se sentou para desatar suas botas. Um homem mais velho projetou perto da saliência da rocha um rosto vermelho e ofegante. Ele escalou as pedras, com água brilhando em sua cachola e em sua guirlanda de cabelo grisalho, a água escorrendo pelo seu peito e pança e soltando jatos para fora de sua tanga preta e bamba. 
Buck Mulligan fez espaço para que ele passasse em sua escalada e, olhando para Haines e Stephen, fez piedosamente o sinal-da-cruz com seu polegar na testa e nos lábios e no peito. 

– Seymour está de volta na cidade – disse o jovem, agarrando-se de novo à sua saliência da rocha. – Ele se livrou da medicina e vai tentar o exército. 

– Puta merda! – exclamou Buck Mulligan. 

– Ele parte na semana que vem para queimar as pestanas. Você conhece aquela moça ruiva, a Lily Carlisle? 

– Conheço. 

– Estava aos beijos com ele na noite passada no quebra-mar. O pai é podre de rico. 

– Ela está de barriga? 

– É melhor perguntar ao Seymour. 

– Seymour um maldito oficial! – disse Mulligan.

Ele acenou com a cabeça em sinal de assentimento enquanto tirava a calça e se levantava, dizendo corriqueiramente:

– As ruivas copulam como cabras.

Ele se interrompeu alarmado, apalpando o lado do peito por baixo da camisa esvoaçante. 

– Minha décima segunda costela se foi – gritou ele. – Eu sou o Übermensch. O Kinch desdentado e eu, os super-homens. 

Ele arrancou fora sua camisa e a atirou atrás de si para onde estavam suas roupas.

– Você vai entrar aqui, Malachi? 

– Vou. Faça um lugar na cama.

O rapaz recuou aos solavancos na água e alcançou o meio da enseada com duas hábeis e longas braçadas. Haines se sentou sobre a pedra, a fumar. 

– Você não vai entrar? – perguntou Buck Mulligan. 

– Mais tarde. Não em cima do meu café-da-manhã.

Stephen se afastou.

– Estou indo embora, Mulligan – disse ele. 

– Dê-nos aquela chave, Kinch – disse Buck Mulligan –, para manter minha camisa estendida.

Stephen entregou a chave a ele. Buck Mulligan a colocou por cima das roupas amontoadas.

– E dois pence – disse ele –, para uma cervejinha. Jogue ali. 

Stephen atirou duas moedas de um penny na pilha macia. Vestir, despir.

Buck Mulligan ereto, com as mãos juntas à sua frente, disse solenemente:

– Aquele que rouba dos pobres empresta ao Senhor. Assim falou Zaratustra. 

Seu corpo gorducho mergulhou.

– Nós o veremos novamente – disse Haines, se voltando para Stephen que seguia pelo atalho e sorrindo para o irlandês arredio. 

Chifre de um touro, casco de um cavalo, sorriso de um saxão.

– O Ship – gritou Buck Mulligan. – Meio-dia e meia. 

– Certo – disse Stephen. 

Ele caminhou em direção ao atalho tortuoso. 

Liliata rutilantium. 
Turma circumdet. 
Iubilantium te virginum. 

A auréola cinzenta do padre no nicho em que ele discretamente se vestia. Eu não vou dormir aqui esta noite. Para casa também não posso ir.
Uma voz, sustentada suavemente, o chamava do mar. Dobrando na curva ele acenou com a mão. Ela chamava de novo. Uma cabeça marrom luzidia, de uma foca, bem longe no mar, redonda.
Usurpador. 


continua na página 34...
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Ulisses - Parte 1 (1d): Haines, que até então rira
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

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