Ulisses
James Joyce
Parte 2
Parte 2
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continuando...
– Ora vamos, minha senhorinha – disse ele.
Ela ofereceu uma moeda em pagamento, sorrindo impudente, estendendo seu pulso
grosso.
– Obrigado, minha senhorinha. E um shilling e três pence de troco. Para a senhorinha,
por favor.
O Sr. Bloom apontou rapidamente. Para alcançá-la e andar atrás dela se ela se
movesse lentamente, atrás de suas ancas ondulantes. Primeira coisa agradável de se ver de
manhã. Apresse-se, droga. Aproveitar a oportunidade. Ela estava de pé fora da loja sob a luz
do sol e saracoteou preguiçosamente dobrando à direita. Ele suspirou pelo nariz: elas nunca
compreendem. Mãos ásperasdesoda. Unhas dos pés encrostadas também. Escapulários
marrons em frangalhos, defendendo-a de todos os lados. A picada da indiferença despertou um
fraco prazer em seu peito. Ela era para um outro: um policial de folga abraçando-a em Eccles
Lane. Elas gostam deles bem grandes. Salsicha de primeira. Ó por favor, Sr. Policial, eu estou
totalmente perdida.
– Três pence, por favor.
A mão dele aceitou a glândula tenra e úmida e a enfiou no bolso do lado. Em seguida
pegou três moedas do bolso da calça e as colocou sobre cilindros de borracha. Elas ficaram
ali, foram lidas rapidamente e rapidamente deslizaram, disco por disco, dentro da gaveta da
caixa registradora.
– Obrigado, senhor. Até a próxima vez.
Uma faísca mínima de ansiedade dos olhos de raposa lhe agradeceu. Ele desviou o
olhar depois de um instante. Não: melhor não: numa outra ocasião.
– Passe bem – disse ele, se afastando.
– Passe bem, senhor.
Nenhum sinal. Partiu. O que importa?
Andou de volta pela rua Dorset, lendo gravemente. Agendath Netaim: companhia de
plantadores. Comprar extensões de terra deserta arenosa do governo turco e plantar
eucaliptos. Excelente para sombra, combustível e construção. Pomares-de-laranjeiras e
imensos campos de melão ao norte de Jaffa. Você paga oitenta marcos e eles plantam em mil
metros quadrados de terra oliveiras, laranjeiras, amendoeiras ou limoeiros. Oliveiras são
mais baratas: laranjeiras precisam de irrigação artificial. Todo ano você recebe uma remessa
da safra. Seu nome é incluído como proprietário para sempre no livro da união. Pode pagar
dez por cento de entrada e o restante em prestações anuais. Bleibtreustrasse 34, Berlim, W. 15.
Não há nada a fazer. Ainda assim uma ideia por trás disso.
Ele olhou para o gado num halo de canícula prateada. Oliveiras salpicadas de prata.
Dias tranquilos e longos: podando, amadurecendo. As azeitonas são embaladas em frascos de
vidro, não é? Ainda me restam algumas de Andrews. Molly as cuspindo. Sabe o gosto delas
agora. Laranjas embrulhadas em papel de seda em caixotes. Limões também. Me pergunto se o
pobre Citron ainda se encontra em Saint Kevin’s Parade. E Mastiansky com sua velha cítara.
Noites agradáveis tivemos então. Molly sentada na cadeira-de-vime de Citron. Agradável de
segurar, fruto fresco e lustroso, de segurar na mão, de levar às narinas e sentir o perfume.
Assim, pesado, adocicado, perfume forte. Sempre a mesma coisa, ano após ano. Eles
renderam preços altos, me disse Moisel. Arbustus Place: Pleasants Street, velhos tempos
agradáveis. Tem que ser sem nenhum defeito, disse ele. Vindo de tão longe: Espanha,
Gibraltar, Mediterrâneo, o Levante. Caixotes enfileirados no cais de Jaffa, um camarada
conferindo num livro, estivadores os manuseando descalços com macacões sujos. Ali está
comovocêochama saído de. Como vai? Não vê. Um sujeito que você conhece só de
cumprimento um pouco chato. Suas costas são como as daquele capitão norueguês. Me
pergunto se vou encontrá-lo hoje. Carreta de regar. Para provocar chuva. Na terra como no
céu.
Uma nuvem começou a cobrir o sol lentamente, totalmente. Cinza. Longe.
Uma nuvem começou a cobrir o sol lentamente, totalmente. Cinza. Longe.
Não, não desse jeito. Uma terra estéril, nua deserta, lago vulcânico, o mar morto:
nenhum peixe, nenhuma alga, afundado profundamente na terra. Nenhum vento podia elevar
aquelas ondas, metal cinzento, águas nebulosas venenosas. Chamavam de enxofre a cair como
chuva: as cidades da planície: Sodoma, Gomorra, Edom. Todos nomes mortos. Um mar morto
numa terra morta, cinza e velha. Velha agora. Ela produziu a primeira raça, a mais antiga. Uma
velha megera encurvada vindo de Cassidy atravessou, agarrando pelo pescoço uma garrafa
com um pouco de licor. O povo mais antigo. Vagou bem longe por toda a terra, de cativeiro em
cativeiro, se multiplicando, morrendo, nascendo em toda parte. Jazia ali agora. Agora não
podia mais gerar. Morta: de uma mulher velha: a boceta cinzenta afundada do mundo.
Desolação.
Um horror cinzento crestou sua carne. Dobrando a página dentro de seu bolso ele
virou em Eccles Street, se apressando em direção à casa. Óleos frios deslizaram por suas
veias, enregelando seu sangue: a idade o incrustando com uma capa de sal. Bem, eu estou aqui
agora. É sim, eu estou aqui agora. Boca da manhã imagens nocivas. Eu me levantei da cama
com o pé esquerdo da cama. Preciso recomeçar aqueles exercícios Sandow. Deitado apoiado
nas mãos. Casas de tijolos marrons manchados. O número oitenta ainda desalugado. Por que
isso? Avaliado em apenas vinte e oito libras. Towers, Battersby, North, MacArthur: janelas do
salão emplastradas de anúncios. Emplastros num olho ferido. Sentir o cheiro suave da fumaça
do chá, a emanação da frigideira, a manteiga crepitante. Estar perto de sua carne abundante
aquecida pela cama. Sim, sim.
Um breve raio de sol quente escapando de Berkeley Road, rapidamente, em sandálias
elegantes, ao longo da calçada iluminada. Corre, ela corre ao meu encontro, uma moça de
cabelos dourados ao vento.
Duas cartas e um cartão se encontravam no chão da sala de entrada. Ele se inclinou e
os apanhou. Sra. Marion Bloom. Seu coração apressado diminuiu imediatamente as batidas.
Mão atrevida. Sra. Marion.
– Poldy!
Entrando no quarto com os olhos semicerrados ele caminhou através da penumbra
quente amarelada em direção à cabeça desgrenhada dela.
– Para quem são as cartas?
Ele as olhou. Mullingar. Milly.
– Uma carta para mim de Milly – disse ele cuidadosamente – e um cartão para você.
E uma carta para você.
Ele pôs o cartão e a carta sobre a colcha de sarja perto da curva dos joelhos dela.
– Você quer que eu suspenda a veneziana?
Suspendendo a veneziana com suaves e equilibrados puxões ele olhou com o rabo dos
olhos para o olhar que ela lançou à carta que enfiou debaixo do travesseiro.
– Assim basta? – perguntou ele, se virando.
Ela estava lendo o cartão apoiada em seus cotovelos.
– Ela recebeu as coisas – disse ela.
Ele esperou que ela pusesse o cartão de lado e se enroscasse lentamente de volta com
um suspiro de reconforto.
– Apresse-se com aquele chá. Estou seca.
– A chaleira está fervendo – disse ele.
Mas ele se demorou arrumando a cadeira: a anágua listada dela, a roupa suja atirada:
e pegou tudo com um braço pondo no pé da cama.
Enquanto ele descia a escada da cozinha ela chamou:
– Poldy!
– O quê?
– Escalde o bule de chá.
Em ebulição com toda a certeza: um rastro de vapor saindo do bico do bule. Ele
escaldou e esvaziou o bule de chá e colocou dentro quatro colheres de chá bem cheias,
inclinando então a chaleira para que a água escorresse nele. Tendo deixado o chá apurando ele
retirou a chaleira e comprimiu bem a frigideira sobre os carvões em brasa e observou um
bocado de manteiga deslizando e derretendo. Enquanto desembrulhava o rim a gata miava
faminta enroscada nele. Dê carne demais e ela não caçará ratos. Dizem que eles não comem
carne de porco. Koshner. Aqui. Ele deixou que o papel lambuzado de sangue caísse para ela e
jogou o rim no molho crepitante de manteiga. Pimenta. Tirando-a de um porta-ovo lascado
salpicou-a por entre os dedos à volta.
Em seguida abriu a carta, olhando-a de cima a baixo. Obrigada: novo gorro escocês
com borla: Sr. Coghlan: piquenique no lago Owel: jovem estudante: moças da beira do mar de
Blazes Boylan.
A infusão de chá estava pronta. Ele encheu, sorrindo, sua xícara-de-bigode, imitação
barata de Derby. Presente de aniversário da Silly-Milly. Ela só tinha cinco anos então. Não,
espere: quatro. Eu lhe dei o colar de âmbar prensado que ela partiu. Punha pedaços dobrados
de papel marrom na caixa do correio para ela. Ele sorriu vertendo o chá.
Ó, Milly Bloom, você é meu querubim.Você me reflete no claro e na escuridão.Prefiro ter você sem sequer um tostãoA ter Katey Keogh com seu asno e jardim.
Pobre velho professor Goodwin. Caso antigo terrível. Ainda assim ele era um velho
camarada cortês. Jeito antiquado que ele tinha de se inclinar diante de Molly quando ela se
retirava da plataforma. E o espelhinho na sua cartola. Na noite em que Milly o trouxe para a
sala de estar. Ó, olhem o que eu encontrei no chapéu do professor Goodwin! Nós todos rimos.
O sexo despontando desde então nela. Coisinha espevitada que ela era.
Ele espetou o garfo no rim e o virou com força: em seguida ajustou o bule de chá na
bandeja. Sua corcova se moveu aos solavancos quando ele a ergueu. Tudo nela? Pão e
manteiga, quatro, açúcar, colher, seu creme. Sim. Ele a carregou escada acima, com o polegar
enganchado na alça do bule.
Entreabrindo a porta com o joelho ele entrou com a bandeja e a colocou sobre a
cadeira junto à cabeceira da cama.
– Como você demorou! – disse ela.
Ela fez o metal tilintar ao se erguer rapidamente, apoiando o cotovelo no travesseiro.
Ele olhou calmamente para as formas roliças dela e para o espaço entre os seios grandes e
macios, caídos dentro de sua camisola como as tetas de uma cabra. O calor de seu corpo
reclinado se elevava no ar, mesclando-se com a fragrância do chá de que ela se servia.
Uma tira do envelope rasgado espreitava de debaixo do travesseiro ondulado. Prestes
a partir ele ficou para esticar a colcha.
– De quem é a carta? – perguntou ele.
Mão atrevida. Marion.
– Ó, de Boylan – disse ela. – Ele vai trazer o programa.
– O que você vai cantar?
– Là ci darem com J. C. Doyle – disse ela – e Love’s Old Sweet Song.
Os lábios grossos dela, bebendo, sorriam. Aquele incenso deixa no dia seguinte um
pouco de cheiro de mofo. Como de água de flores podre.
– Você quer que eu deixe a janela um pouco aberta?
Dobrando uma fatia de pão na boca, ela perguntou:
– A que horas é o enterro?
– Às onze, eu penso – disse ele. – Eu não vi o jornal.
Acompanhando o dedo dela que apontava ele pegou da cama uma perna de sua
calçola suja. Não? Então, uma liga cinzenta torcida enrolada em volta de uma meia: sola
amarrotada, lustrosa.
– Não: aquele livro.
Outra meia. A anágua.
– Deve ter caído no chão – disse ela.
Ele apalpou aqui e ali. Voglio e non vorrei. Me pergunto se ela pronuncia isso
direito: voglio. Na cama não. Deve ter escorregado para baixo. Ele se inclinou e levantou o
dossel. O livro, caído, esparramado de encontro à protuberância do urinol com decoração
grega homérica.
– Mostra aqui – disse ela. – Eu pus uma marca nele. Há uma palavra que não entendo
e eu queria te perguntar.
Ela deu um gole no chá da xícara que ela segurava ignorando a asa e, tendo enxugado
as pontas dos dedos elegantemente no cobertor, começou a procurar com o grampo de cabelo
no texto até que alcançou a palavra.
– Metem psi o quê? – disse ele.
– Aqui – disse ela. – O que isso quer dizer?
Ele se inclinou para baixo e leu perto do polegar coberto de esmalte.
– Metempsicose?
– Sim. Quem é ele quando está em casa?
– Metempsicose – disse ele, franzindo as sobrancelhas. – É grego: do grego. Isso
significa a transmigração das almas.
– Ó, droga! – disse ela. – Fale com palavras comuns.
Ele sorriu, olhando de soslaio para os olhos zombeteiros dela. Os mesmos olhos
jovens. A primeira noite depois das charadas. Dolphin’s Barn. Ele virou as páginas
manchadas. Ruby: o Orgulho do Ringue. Alô. Ilustração. Italiano feroz com chicote-de-cocheiro. Deve ser Ruby orgulho de nu no chão. Lençol gentilmente oferecido. O monstro
Maffei desistiu e atirou sua vítima para longe de si com uma imprecação. Crueldade por trás
de tudo. Animais dopados. Trapézio em Hengler’s. Tinha de virar o rosto. O povo de boca
aberta. Torça o seu pescoço e nos torceremos de rir. Famílias inteiras. Jovens se entregam a
um trabalho árduo a fim de que se metempsicosem. Que nós vivemos depois da morte. Nossas
almas. Que a alma de um homem depois que ele morre, a alma de Dignam...
– Você já o terminou? – perguntou ele.
– Sim – disse ela. – Não há nada de obsceno nele. Ela está apaixonada pelo primeiro
camarada o tempo todo?
– Nunca o li. Você quer um outro?
– Sim. Traga um outro de Paul de Kock. Nome bonito que ele tem.
Ela pôs mais chá em sua xícara, observando de lado ele fluir.
Tenho que renovar aquele livro da biblioteca de Capel Street ou eles vão escrever
para Kearney, meu fiador. Reencarnação: é essa a palavra.
– Algumas pessoas acreditam – disse ele – que nós continuamos a viver num outro
corpo depois da morte, que nós vivemos antes. Eles chamam isso de reencarnação. Que nós
todos vivemos antes na Terra milhares de anos atrás ou em outro planeta. Eles dizem que nós
esquecemos isso. Alguns dizem que se lembram de suas vidas passadas.
O creme serpenteou lento em espirais coalhantes através do chá dela. Preferível
lembrá-la da palavra: metempsicose. Um exemplo seria melhor. Um exemplo?
O Banho da Ninfa acima da cama. Doada com o número de Páscoa da Photo Bits:
uma obra-prima esplêndida na arte das cores. Chá antes de pôr leite nele. Nada diferente dela
com seu cabelo solto: mais magra. Eu dei três e seis pela moldura. Ela disse que ficaria bonito
acima da cama. Ninfas nuas: Grécia: e por exemplo todas as pessoas que viveram então.
Ele virou as páginas para trás.
– Metempsicose – disse ele – é como os gregos a chamavam. Eles costumavam
acreditar que a gente podia ser transformado num animal ou numa árvore, por exemplo. O que
eles chamavam de ninfas, por exemplo.
A colher dela parou de mexer no açúcar. Ela olhou fixo em frente, inalando através de
suas narinas arqueadas.
– Está cheirando a queimado – disse ela. – Você deixou alguma coisa no fogo?
– O rim! – gritou ele subitamente.
continua na página 66...
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Ulisses - Parte 2 (4b): O salsicheiro
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Joyce, James
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.
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