Ulisses
James Joyce
Parte 1
Parte 1
2
continuando...
A mão de Stephen, novamente livre, voltou para as conchas ocas. Símbolos também de beleza e poder. Um bocado no meu bolso: símbolos manchados por cobiça e miséria.
– Não leve seu dinheiro desse jeito – disse o Sr. Deasy. – Você vai tirá-lo em algum lugar e perdê-lo. Compre simplesmente uma dessas engenhocas. Você vai ver que elas são muito úteis.
Responda alguma coisa.
– A minha ficaria freqüentemente vazia – disse Stephen.
A mesma sala e hora, a mesma sabedoria: e eu o mesmo. Três vezes agora. Três cadeias à minha volta aqui. E então? Eu posso rompê-las neste instante se eu quiser.
– Porque você não economiza – disse o Sr. Deasy, apontando com o dedo. – Você não sabe ainda o que é o dinheiro. Dinheiro é poder. Quando você tiver vivido tanto quanto eu. Eu sei, eu sei. Se ao menos a mocidade soubesse. Mas o que diz Shakespeare? Ponha apenas dinheiro em sua carteira.
– Iago – murmurou Stephen.
Ele ergueu os olhos das conchas ociosas para o olhar fixo do velho homem.
– Ele sabia o que o dinheiro era – disse o Sr. Deasy. – Ele ganhou dinheiro. Um poeta, sim, mas um inglês também. Você sabe qual é o orgulho dos ingleses? Você sabe qual é a palavra mais altiva que você pode ouvir da boca de um inglês?
O senhor dos mares. Seus olhos marfrios olharam para a baía vazia: parece que é culpa da história: sobre mim e sobre as minhas palavras, sem ódio.
– Que no seu império – disse Stephen – o sol nunca se põe.
– Bolas! – gritou o Sr. Deasy. – Isso não é inglês. Um celta francês disse isso.
Ele deu umas pancadinhas com sua caixinha de níqueis de encontro à unha do seu polegar.
– Eu vou lhe dizer – disse ele solenemente – qual é a sua bazófia mais altiva. Eu paguei a minha parte.
Bom homem, bom homem.
– Eu paguei a minha parte. Eu nunca pedi um shilling emprestado em toda a minha vida. Você pode sentir isso? Eu não devo nada. Você pode?
Mulligan, nove libras, três pares de meias, um par de borzeguins, gravatas. Curran, dez guinéus. MacCann, um guinéu. Fred Ryan, dois shillings. Temple, dois almoços. Russell, um guinéu, Cousins, dez shillings, Bob Reynolds, meio guinéu, Kohler, três guinéus, a Sra. McKernan, cinco semanas de alojamento. O punhado que eu tenho é inútil.
– No momento, não – respondeu Stephen.
O Sr. Deasy riu com puro encantamento, guardando de volta a caixinha de níqueis.
– Eu sabia que você não podia – disse ele alegremente. – Mas um dia você precisa sentir isso. Nós somos um povo generoso mas também precisamos ser justos.
– Eu temo essas grandes palavras – disse Stephen – que nos tornam tão infelizes.
Por alguns momentos o Sr. Deasy fitou severamente acima do aparador a magnitude bem proporcionada de um homem de saiote escocês axadrezado: Alberto Eduardo, príncipe de Gales.
– Você me considera um velho antiquado e um velho tóri – disse sua voz pensativa. – Eu vi três gerações desde o tempo de O’Connell. Eu me lembro da praga da fome em 46. Você sabia que os núcleos orange agitaram a opinião pública em favor da revogação do Ato de União vinte anos antes que O’Connell o fizesse ou antes que os prelados de sua confraria o denunciassem como demagogo? Vocês fenianos esquecem algumas coisas.
Memória gloriosa, piedosa e imortal. O núcleo de Diamond em Armagh, a esplêndida, ornado de cadáveres de papistas. O juramento de lealdade dos fazendeiros ásperos, mascarados e armados até os dentes. O norte protestante-reacionário e os verdadeiros presbiterianos escoceses legalistas da bíblia. Submetam-se cabeças tosadas.
Stephen esboçou um gesto rápido.
– Eu também tenho sangue rebelde em mim – disse o Sr. Deasy. – Do lado materno. Mas eu descendo de sir John Blackwood que votou em favor da união. Nós somos todos irlandeses, todos filhos de reis.
– Ai de mim – disse Stephen.
– Per vias rectas – disse o Sr. Deasy firmemente –, era o seu lema. Ele votou em favor disso e para fazê-lo pôs suas botas de montar e cavalgou de Ards of Down até Dublin.
Trota, trota meu rocimE me leva até Dublin.
Um fidalgo rural mal-humorado a cavalo com suas botas reluzentes. Um dia ameno, sir John! Um dia ameno, Excelência!... Dia!... Dia!... Duas botas de montar vão aos solavancos até Dublin. Trota, trota meu rocim. Trota, trota para mim.
– Isso me lembra uma coisa – disse o Sr. Deasy. – O senhor pode me fazer um favor, Sr. Dedalus, com alguns de seus amigos intelectuais. Eu tenho uma carta aqui para os jornais. Sente-se um momento. Eu só tenho que copiar o fim.
Ele foi para a mesa perto da janela, puxou duas vezes sua cadeira e leu algumas palavras da folha de papel no cilindro da máquina de escrever.
– Sente-se e me desculpe – disse ele por cima do ombro – os ditames do bom senso. Só um instante.
Por sob suas sobrancelhas hirsutas ele examinou o manuscrito ao seu lado e, resmungando, começou a aguilhoar lentamente as teclas rígidas do teclado, soprando às vezes quando acertava o cilindro para apagar um erro.
Stephen se sentou silenciosamente diante da presença principesca. Emolduradas nas paredes imagens de cavalos desaparecidos prestavam homenagem, com suas cabeças dóceis erguidas: Repulse, de lorde Hastings, Shotover, do duque de Westminster, Ceylon, prix de Paris, 1866, do duque de Beaufort. Cavaleiros elfos os montavam, atentos a um sinal. Ele viu a velocidade deles ao defender as cores da coroa, e gritou com os gritos das multidões desaparecidas.
– Ponto final – anunciou o Sr. Deasy às suas teclas. – Mas pronto debate desta questão de grande importância...
Lá onde Cranly me levou para ficar rico rapidamente, caçando seus favoritos entre as moitas salpicadas de lama, em meio aos gritos dos apontadores de apostas e à fumaça da cantina acima do lodo multicolorido. Fair Rebel! Fair Rebel! Dinheiro líquido no favorito: dez a um como ele ganha dos concorrentes. Passamos apressados pelos jogadores de dados e os trapaceiros que exploram o jogo de dedais, em busca das patas, bonés e jaquetas dos competidores e por uma mulher com cara de rodela-de-carne, mulher de um açougueiro, que enfiava avidamente seu focinho na metade de uma laranja.
Gritos agudos e o zunido de um apito soaram vindos do campo de esporte dos meninos.
De novo: um gol. Eu entre eles, entre seus corpos contendores numa mixórdia, o combate da vida. Você quer dizer aquele queridinho da mãe, cambaio, que parece estar ligeiramente de ressaca? Torneios. O tempo abalado repercute a cada impacto. Liças, lodo e rebuliço das batalhas, o gelado vômitomortal dos mortos, um brado de lanças alimentadas das entranhas sangrentas dos homens.
– Pois bem – disse o Sr. Deasy, erguendo-se.
Ele veio até a mesa, grampeou as folhas de papel. Stephen se levantou.
– Eu expus a questão em poucas palavras – disse o Sr. Deasy. – É sobre a febre aftosa. Só examine isso aqui. Não pode haver duas opiniões sobre este assunto.
Permita-me abusar de seu espaço valioso. Aquela doutrina de laissez faire que ocorre tão frequentemente em nossa história. O comércio de nosso gado. O processo de todas as nossas velhas indústrias. A corja de Liverpool que sabotou o projeto do porto de Galway. Conflagração europeia. Suprimentos de cereais através das águas estreitas do canal. A mais-que-perfeita imperturbabilidade do departamento de agricultura. Que me seja perdoada uma alusão clássica. Cassandra. Por uma mulher que não valia nem um pouco mais do que sua reputação. Para se chegar ao ponto em questão.
– Eu não tenho papas na língua, não é? – perguntou o Sr. Deasy enquanto Stephen continuava a ler.
Febre aftosa. Conhecida como preparado de Koch. Soro e vírus. Porcentagem de cavalos imunizados. Rinderpest. Peste bovina. Cavalos do imperador Mürzsteg, Áustria meridional. Cirurgiões veterinários. O Sr. Henry Blackwood Price. Oferta cortês de um julgamento honesto. Ditames do bom senso. Uma questão da maior importância. No sentido completo da palavra pegar o touro a unha. Agradecendo a hospitalidade de suas colunas.
– Eu quero que isso seja impresso e lido – disse o Sr. Deasy. – Você verá no próximo surto que eles vão embargar o gado irlandês. E ele pode ser curado. E é curável. Meu primo, Blackwood Price, me escreveu que na Áustria ele é regularmente tratado e curado pelos veterinários de gado. Eles se oferecem a vir para cá. Eu estou tentando influenciar o departamento. Agora eu vou tentar a publicidade. Eu estou cercado de dificuldades, por... intrigas, por... influências secretas, por...
Antes de falar ele ergueu o dedo indicador no ar com o gesto de um velho.
– Preste atenção às minhas palavras, Sr. Dedalus – disse ele. – A Inglaterra está nas mãos dos judeus. Em todos os mais altos cargos: suas finanças, sua imprensa. E eles são o sinal da decadência de uma nação. Onde quer que eles se juntem eles devoram a força vital da nação. Eu tenho visto isto acontecendo estes anos. Tão certo como estarmos de pé aqui os comerciantes judeus já estão em plena ação de destruição. A velha Inglaterra está morrendo.
Deu uns passos rápidos, com os olhos voltando animadamente a si enquanto percorriam um extenso raio de sol. Deu meia-volta e retornou à posição anterior.
– Morrendo – disse ele novamente –, se ela já não estiver morta.
De rua em rua uma prostituta berraE vai se tecendo a mortalha da Inglaterra.
Seus olhos escancarados fixavam severamente numa visão o raio de sol no qual ele se detivera.
– Um comerciante – disse Stephen – é alguém que compra barato e vende caro, judeu ou gentio, não é não?
– Eles pecaram contra a luz – disse gravemente o Sr. Deasy. – E é possível ver a escuridão nos olhos deles. E é por isso que eles são os errantes da terra até o dia de hoje.
Nos degraus da Bolsa de Paris os homens de pele-dourada cotavam o preço do mercado em seus dedos cobertos de anéis. Parolagem de patetas. Eles formigavam ruidosamente, insólitos, pelo templo, suas cabeças maquinando ferrenhamente por baixo de seus desajeitados chapéus de copa alta. Não eram deles: estas roupas, esta fala, estes gestos. Seus olhos absortos e lentos desmentiam as palavras, os gestos ansiosos e inofensivos, mas sabiam do rancor concentrado à sua volta e sabiam que o seu zelo era vão. Vã a paciência que empilhava e armazenava. O tempo certamente dispersaria tudo. Um tesouro empilhado na beira da estrada: pilhado e passado adiante. Seus olhos conheciam os anos de perambulação e, pacientes, tinham conhecimento das indignidades de sua natureza humana
– Quem não pecou? – disse Stephen.
– O que você quer dizer? – perguntou o Sr. Deasy.
Ele deu um passo à frente e parou junto à mesa. Seu maxilar inferior pendeu um pouco para o lado em dúvida. É isso a velha sabedoria? Ele espera ouvir alguma coisa de mim.
– A história – disse Stephen – é um pesadelo do qual estou tentando despertar.
Do campo de esporte dos meninos ouviu-se um grito. Um apito estridente: gol. O que aconteceria se esse pesadelo desse um pontapé de volta na gente?
– Os caminhos de Deus não são os nossos – disse o Sr. Deasy. – Toda a história da humanidade se move em direção a um grande alvo, a manifestação de Deus.
Stephen sacudiu seu polegar em direção à janela, dizendo:
– Isso é Deus.
Hurra! Ai! Rrhiiii!
– O quê? – o Sr. Deasy perguntou.
– Um grito na rua – respondeu Stephen, sacudindo os ombros.
O Sr. Deasy baixou os olhos e segurou entre os dedos as asas pinçadas do seu nariz. Erguendo novamente os olhos ele as soltou.
– Eu sou mais feliz do que você – disse ele. – Nós cometemos muitos erros e muitos pecados. Uma mulher trouxe o pecado para o mundo. Por uma mulher que não era nem um pouco melhor do que ela, Helena, a mulher fugitiva de Menelau, os gregos guerrearam Tróia durante dez anos. Uma mulher infiel trouxe pela primeira vez estrangeiros para o nosso litoral, a mulher de MacMurrough e seu amante, O’Rourke, príncipe de Breffni. Uma mulher também causou a derrocada de Parnell. Muitos erros, muitas falhas mas não o pecado dos pecados. Eu sou um lutador agora e o serei até o final dos meus dias. Mas eu vou lutar pelo direito até o fim.
Por Ulster lutaremosE Ulster salvaremos.
Stephen ergueu as folhas de papel em sua mão.
– Bem, senhor – disse ele.
– Eu prevejo – disse o Sr. Deasy – que o senhor não permanecerá aqui nesta atividade por muito tempo. O senhor não nasceu para ser professor, creio. Talvez eu esteja enganado.
– De preferência um aprendiz – disse Stephen.
E aqui o que você aprenderá mais?
O Sr. Deasy sacudiu a cabeça.
– Quem sabe? – disse ele. – Para aprender é necessário ser humilde. Mas a vida é a grande mestra.
Stephen fez as folhas novamente farfalharem.
– Quanto a estas – começou ele...
– Sim – disse o Sr. Deasy. – O senhor tem duas cópias aí. Se o senhor puder fazer com que sejam publicadas imediatamente.
Telegraph. Irish Homestead.
– Eu vou tentar – disse Stephen –, e o informarei amanhã. Eu conheço ligeiramente dois editores.
– Isso é o bastante – disse o Sr. Deasy vivamente. – Eu escrevi ontem à noite ao Sr. Field, membro do Parlamento. Há um encontro de comerciantes de gado hoje no City Arms Hotel. Eu pedi que ele apresentasse a minha carta antes da reunião. Veja se o senhor consegue pôr isso em seus dois jornais. Quais são eles?
– O Evening Telegraph...
– Isso é o bastante – disse o Sr. Deasy. – Não há tempo a perder. Agora tenho que responder essa carta do meu primo.
– Até a vista, senhor – disse Stephen, colocando as folhas no bolso. – Obrigado.
– Não há de quê – disse o Sr. Deasy enquanto procurava os papéis em sua mesa. – Eu gosto de quebrar lanças com o senhor, por mais velho que eu seja.
– Até a vista, senhor – disse Stephen novamente se inclinando para as costas curvadas dele.
Ele saiu pelo pórtico aberto e seguiu pela alados. Assim mesmo eu vou ajudá-lo em sua luta. Mulligan vai me dar um novo apelido: o bardo protetor-de-novilho.
– Sr. Dedalus!
Correndo atrás de mim. Chega de cartas, espero.
– Um instantinho só.
– Sim, senhor – disse Stephen, dando as costas para o portão.
O Sr. Deasy parou, respirando com força e engolindo a respiração.
– Eu só queria lhe dizer – disse ele. – Dizem que a Irlanda tem a honra de ser o único país que nunca perseguiu os judeus. O senhor sabia disso? Não. E o senhor sabe por quê?
Ele franziu a testa severamente no ar luminoso.
– Por quê, senhor? – perguntou Stephen, começando a sorrir.
– Porque ela nunca os deixou entrar – disse o Sr. Deasy solenemente.
Um acesso de tosse e de riso saltou de sua garganta arrastando atrás de si uma cadeia chocalhante de expectoração. Ele se voltou rapidamente, tossindo, rindo, com os braços erguidos abanando no ar.
– Ela nunca os deixou entrar – gritou ele novamente através do riso enquanto batia com os pés calçados de polainas nos cascalhos da alameda. – É essa a razão.
Sobre seus ombros sábios o sol lançou lantejoulas e moedas dançantes através da marchetaria das folhas.
continua na página 44...
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Ulisses - Parte 1 (2b): A mão de Stephen
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Joyce, James
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.
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