sexta-feira, 28 de abril de 2023

Ulisses - Parte 1 (2a): Você, Cochrane, que cidade fez apelo a ele?

Ulisses

James Joyce

Parte 1

2


Você, Cochrane, que cidade fez apelo a ele?

– Tarento, senhor. 
– Muito bem. E então? 
– Houve uma batalha, senhor. 
– Muito bem. Onde?

O olhar vazio do menino perguntou à janela vazia. 
Fabulado pelas filhas da Memória. E no entanto era de uma certa forma como se a memória não o tivesse inventado. Uma frase, então, de impaciência, um golpe das asas de intemperança de Blake. Eu ouço a destruição de todo o espaço, vidro estilhaçado e alvenaria ruída e o tempo uma lívida chama final. O que restou para nós então?

– Eu esqueci o lugar, senhor. 279 a.C. 
– Asculo – disse Stephen, olhando para o nome e a data no livro sebento. 
– Sim, senhor. E ele disse: Uma outra vitória como essa e nós estamos liquidados

Daquela frase o mundo se lembrara. Uma vaga tranquilidade mental embotada. De uma colina acima de uma planície semeada de cadáveres um general falava aos seus oficiais apoiado em sua lança. Qualquer general a quaisquer oficiais. Eles prestam ouvido. 

– Você, Armstrong – disse Stephen. – Qual foi o fim de Pirro? 
– Fim de Pirro, senhor? 
– Eu sei, senhor. Pergunte a mim, senhor – disse Comyn. 
– Espere. Você, Armstrong. Você sabe alguma coisa sobre Pirro?

Um saco de rolinhos doces de figo estava confortavelmente instalado na sacola de Armstrong. De vez em quando ele os enroscava nas palmas das mãos e os engolia suavemente. Migalhas aderiram à polpa de seus lábios. O hálito adocicado de um menino. Gente rica, orgulhosa porque seu filho estava na marinha. Vico Road, Dalkey.

– Pirro, senhor? Pirro, um píer.

Todos riram. Uma risada alta maliciosa sem alegria. Armstrong olhou para os seus colegas à volta, regozijo tolo em esboço. Dentro de alguns instantes eles vão rir mais alto, conscientes da minha falta de comando e das mensalidades que seus papais pagam. 

– Diga-me agora – disse Stephen, cutucando o ombro do menino com o livro –, o que é um píer? 
– Um píer, senhor – disse Armstrong. – Uma coisa lá na água. Uma espécie de ponte. O píer Kingstown, senhor. 

Alguns riram novamente: sem alegria mas com sentido. Dois no banco de trás sussurraram. Sim. Eles sabiam: não tinham nunca aprendido nem tinham nunca sido inocentes. Todos. Com inveja ele observou seus rostos: Edith, Ethel, Gerty, Lily. Semelhantes a eles: seus hálitos, também, adocicados por chá e geleia, seus braceletes rindo com riso abafado na luta. 

– Píer Kingstown – disse Stephen. – É isso, uma ponte desapontada. 

As palavras perturbaram os olhares deles. 

– Como, senhor? – disse Comyn. – Uma ponte fica através de um rio. 

Para o livrinho de contos populares de Haines. Ninguém aqui para ouvir. Hoje à noite habilmente em meio a conversas e bebidas desenfreadas, penetrar na malha reluzente de sua mente. O que então? Um bufão na corte de seu mestre, tratado com indulgência e menosprezado, conquistando um elogio clemente do mestre. Por que eles haviam escolhido toda essa parte? Não exclusivamente por uma carícia suave. Para eles também a história era um conto como outro qualquer ouvido demais, sua nação uma casa de penhores.
Não tivesse Pirro caído pela mão de uma bruxa em Argos ou não tivesse Júlio César sido morto a punhaladas. Eles não podem ser descartados do pensamento. O tempo os marcou a ferro em brasa e agrilhoados eles estão alojados no lugar das possibilidades infinitas que eles jogaram fora. Mas podem essas ter sido possíveis visto que elas nunca se deram? Ou foi possível apenas essa que aconteceu? Teça, tecelão do vento.

– Conte-nos uma história, senhor. 
– Ó, por favor, senhor. Uma história de assombração. 
– Onde vocês começam nisso? – perguntou Stephen, abrindo um outro livro. 
Não chorem mais – disse Comyn. 
– Continue então, Talbot. 
– E a história, senhor? 
– Depois – disse Stephen. – Continue, Talbot.

Um menino escuro abriu um livro e o apoiou rapidamente sob a proteção de sua sacola. Ele recitou o verso aos trancos com olhares esporádicos para o texto: 

– Não chorem mais, tristes pastores, não chorem mais 
Pois Lycidas, que chorais, não está morto, 
Embora submerso no fundo das águas mortais... 

Deve ser um movimento então, uma realidade do possível como possível. A frase de Aristóteles se formou dentro dos versos ininteligíveis e eles flutuaram para dentro do silêncio estudioso da biblioteca de Santa Genoveva onde ele lera, noite após noite, protegido contra o pecado de Paris. Ao seu lado um franzino siamês examinava um manual de estratégia. À minha volta, cérebros alimentados e se alimentando: sob lâmpadas elétricas fosforescentes, empalados, com antenas a bater ligeiramente: e na escuridão de minha mente uma preguiça do submundo, relutante, desprovida de claridade, a mover suas pregas escamosas de dragão. O pensamento é o pensamento do pensamento. Claridade tranqüila. A alma é de certa maneira tudo que existe: a alma é a forma das formas. Tranqüilidade, súbita, vasta, candente: forma das formas. 

Talbot repetiu:

– Pelo amado poder Dele que andou sobre as ondas, 
Pelo amado poder... 
– Vire a página – disse Stephen serenamente. – Eu não vejo nada. 
– O que, senhor? – perguntou simplesmente Talbot se inclinando para a frente.

Sua mão virou a página. Ele se reclinou para trás e prosseguiu novamente, tendo acabado de se lembrar. Dele que andou sobre as ondas. Aqui também acima desses corações covardes repousa sua sombra e no coração e nos lábios escarnecedores e nos meus. Repousa nos rostos ansiosos dos que lhe ofereceram uma moeda do tributo. A César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Um olhar prolongado partindo de olhos escuros, uma frase enigmática para ser tecida cada vez mais no tear da igreja. Para sempre. 

Adivinhe, adivinhe, adivinho! 
Ganhei grãos pra semear do paizinho. 

Talbot deixou seu livro fechado deslizar para dentro da sacola.

– Eu ouvi todos? – perguntou Stephen. 
– Sim, senhor. Hóquei às dez, senhor. 
– Metade do dia, senhor. Quinta-feira. 
– Quem pode responder uma charada? – perguntou Stephen.

Eles recolheram seus livros, os lápis estalando, as páginas farfalhando. Empurrando uns aos outros eles passaram as tiras de couro e afivelaram suas sacolas, todos tagarelando alegremente:

– Uma charada, senhor? Pergunte a mim, senhor. 
– Ó, pergunte a mim, senhor. 
– Uma bem difícil, senhor. 
– É esta a charada – disse Stephen.
O galo cacarejou, 
O céu azulou; 
Sinos de bronze 
Soaram onze. 
A hora da pobre alma Ir pro céu chegou. 
O que é isso? 
– O quê, senhor? 
– De novo, senhor. Nós não ouvimos.

Os olhos deles cresciam enquanto os versos eram repetidos. Depois de um silêncio Cochrane disse:

– O que é, senhor? Nós desistimos.

Com a garganta comichando, Stephen respondeu: 

– A raposa enterrando sua avó debaixo de um azevinho. 

Ele se levantou e soltou uma risada estridente e nervosa à qual os gritos deles ecoaram consternação. 
Um taco bateu na porta e uma voz no corredor chamou: 

– Hóquei!

Eles se separaram, andando de lado por entre os bancos, saltando por cima deles. Em pouco tempo eles tinham partido e do quarto de despejo veio o estrépito dos tacos e o clamor de suas botas e línguas. 
Sargent que fora o único que se deixara ficar avançou lentamente, mostrando um caderno de notas aberto. Seu cabelo embaraçado e seu pescoço fino testemunhavam despreparo e irresolução e através de seus óculos embaciados olhos se erguiam em apelação. Na sua face, apática e exangue, havia uma mancha de tinta em forma de tâmara recente e úmida como o leito de um caracol. 
Ele estendeu seu caderno. A palavra Somas estava escrita no cabeçalho. Abaixo havia algarismos inclinados e embaixo de tudo uma assinatura tortuosa com voltas cegas e um borrão. Cyril Sargent: seu nome e carimbo.

– O Sr. Deasy me disse para escrever tudo de novo e lhe mostrar, senhor. 

Stephen tocou as bordas do livro. Inutilidade. 

– Você compreende agora como fazer isso? – perguntou ele. 
– Do número onze ao quinze – respondeu Sargent. – O Sr. Deasy disse que eu devia copiá-los do quadro, senhor. 
– Você consegue os resolver, você mesmo? – perguntou Stephen. 
– Não, senhor

Feio e inútil: pescoço fino e cabelo embaraçado e uma mancha de tinta, um leito de caracol. No entanto alguém o amara, o carregara em seus braços e em seu coração. Não fosse por ela a raça do mundo o teria esmagado sob seus pés, um caracol sem ossos despedaçado. Ela tinha amado seu sangue aguado fraco drenado do dela própria. Era isso então real? A única coisa verdadeira na vida? O corpo prostrado de sua mãe o ardente Columbano em seu zelo sagrado passou por cima. Ela não existia mais: o esqueleto trêmulo de um galho no fogo, um odor de pau-rosa e cinzas molhadas. Ela o salvara de ser esmagado sob pés e partira, mal tendo existido. Uma pobre alma tendo partido para o céu: e numa charneca sob estrelas cintilantes uma raposa, com o cheiro desagradável de rapina no seu pêlo vermelho, com olhos claros impiedosos cavava a terra, escutava, esburacava a terra, escutava, cavava e cavava. 
Sentando ao seu lado Stephen solucionou o problema. Ele prova por meio da álgebra que o fantasma de Shakespeare é o avô de Hamlet. Sargent olhou de esguelha através de seus óculos inclinados. Tacos de hóquei retiniam no quarto de despejo: a batida oca de uma bola e os gritos vindos do campo. 
Através da página os símbolos se moviam numa solene dança mouresca, na pantomima de suas letras, usando bonés exóticos de quadrados e cubos. Dê as mãos, atravesse, incline-se diante do parceiro: assim: diabinhos da imaginação dos mouros. Partiram também do mundo, Averróis e Moisés Maimônides, homens escuros em semblante e ação, refletindo em seus espelhos zombeteiros a alma obscura do mundo, uma escuridão brilhando na claridade que a claridade não pôde compreender.

– Você compreende agora? Você consegue fazer o segundo trabalho sozinho? 
– Consigo, senhor.

Em longos traços de pena vacilantes Sargent copiou os dados. Esperando sempre por uma palavra de ajuda sua mão moveu fielmente os símbolos variáveis, uma ligeira coloração de vergonha estremecendo por trás de sua pele fosca. Amor matris: genitivo subjetivo e objetivo. Com seu sangue fraco e leite azedo ela o alimentara e o escondera assim como os cueiros dele da vista dos outros. 
Como ele eu era, esses ombros inclinados, esta desgraciosidade. Minha infância se curva ao meu lado. Longe demais para eu pousar uma vez minha mão ali ou sequer levemente. A minha está longe e a dele é secreta como nossos olhos. Segredos, silenciosos, empedernidos se sentam nos palácios escuros de nossos dois corações: segredos exaustos de sua tirania: tiranos, desejando ser destronados. 
A soma foi feita.

– É muito simples – disse Stephen ao se levantar. 
– É sim, senhor. Obrigado – respondeu Sargent.

Ele secou a página com uma folha fina de mata-borrão e levou seu caderno de notas de volta para a sua carteira.

– É melhor você pegar o seu taco e ir se juntar aos outros – disse Stephen enquanto seguia a figura desgraciosa do menino que se dirigia para a porta. 
– Sim, senhor. 

No corredor era ouvido o seu nome, chamado do campo de jogo.

– Sargent! 
– Corra – disse Stephen. – O Sr. Deasy o está chamando.

Ele parou no pórtico e observou o retardatário se apressar em direção ao campo de luta onde vozes agressivas discutiam. Eles estavam divididos em times e o Sr. Deasy veio embora pisando em pedacinhos de grama com seus pés em polainas. Quando alcançou o prédio do colégio vozes novamente em disputa o chamaram. Ele virou para eles seu bigode branco irritado.

– O que é agora? – gritou continuamente sem parar para ouvir. 
– Cochrane e Halliday estão do mesmo lado, senhor – disse Stephen. 
– Espere por favor por um momento no meu escritório – disse o Sr. Deasy – até que eu restabeleça a ordem aqui.

E enquanto caminhava atarantadamente de volta pelo campo sua voz de velho gritava severamente: 

– O que é que há? O que é agora? 

As vozes agressivas dos meninos gritavam de todos os lados à sua volta: suas múltiplas figuras o cercaram, a brilhante luz solar descorando o mel de seus cabelos mal pintados. 
Um ar enfumaçado e viciado pairava no escritório com o cheiro do couro marrom-claro das cadeiras. Como no primeiro dia em que ele barganhou comigo. Como era no princípio, é agora. No aparador a bandeja com as moedas Stuart, tesouro servil de um irlandereco: e sempre será. E bem confortáveis em seu estojo de colheres de pelúcia púrpura, desbotada, os doze apóstolos tendo pregado para todos os gentios: por todos os séculos. 
Um passo apressado nas pedras do pórtico e no corredor. Afastando com um sopro seu bigode escasso o Sr. Deasy parou junto à mesa.

– Em primeiro lugar, nosso acordo financeiro – disse ele.

Ele retirou do paletó uma carteira de dinheiro atada por uma tira de couro que estalou ao ser aberta. E dela tirou duas notas, uma delas feita de duas metades coladas, e as colocou cuidadosamente sobre a mesa.

– Duas – disse ele, atando e guardando sua carteira.

E agora seu cofre-forte para o ouro. A mão embaraçada de Stephen se moveu por sobre as conchas amontoadas no frio almofariz de pedra: búzios e caurins e rombos: e esta, espiralada como um turbante de emir, e esta, a vieira-de-são-tiago. Uma coleção de um velho peregrino, um tesouro morto, conchas ocas. 
Um soberano caiu, novo e brilhante, sobre a lanosidade macia da toalha de mesa.

– Três – disse o Sr. Deasy, rodando com sua caixinha de níqueis em sua mão. – Estas são coisas úteis de ter. Veja. Isto é para soberanos. Isto é para shillings. Seis pence, meiascoroas. E aqui coroas. Veja.

Ele fez saltarem dela duas coroas e dois shillings.

– Três e doze – disse ele. – Creio que você vai concordar que está certo. 
– Obrigado, senhor – disse Stephen, juntando o dinheiro com uma pressa tímida e pondo tudo no bolso de sua calça. 
– Nada de agradecimento – disse o Sr. Deasy. – Você mereceu.

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