Ulisses
Com um andar compassado o Sr. Bloom caminhou ao longo dos caminhões do cais de sir John
Rogerson, passando por Windmill Lane, Leask o esmagador de linhaça, o prédio dos Correios
e Telégrafo. Podia ter dado este endereço também. E passou pelo Abrigo do Marinheiro.
Deixou para trás os ruídos matinais da beira do cais e enveredou pela Lime Street. Perto dos
chalés um menino coletor de lixo estava refestelado, com o balde de refugo seguro por uma
corda, fumando um coto de cigarro mastigado. Uma menina menor com cicatrizes de eczema
na testa olhava para ele, segurando apaticamente sua argola de barril amassada. Diga pra ele
que se ele fumar não crescerá. Ó deixe ele em paz! Sua vida não é lá esse mar de rosas.
Esperando do lado de fora dos bares para trazer o pai pra casa. Vem pra casa pra mãe, pai.
Hora de inatividade: não haverá muitas ali. Ele atravessou Towsend Street, passou em frente à
fachada rebarbativa de Bethel. El, sim: casa de: Aleph, Beth. E por Nichols o agente
funerário. É às onze. Tempo suficiente. Acho que Corny Kelleher se apossou do emprego para
O’Neill. Canta com os olhos fechados. Corny. Encontrei com ela uma vez no parque. No
escuro. Que achado. Um informante da polícia. Seu nome e endereço ela me deu então com
meu patibum patibum bum, bum. Ó, certamente ele o abateu. Enterrá-lo barato num
comosechama. Com meu patibum, patibum, patibum, patibum.James Joyce
Parte 2
Parte 2
5
Em Westland Row ele parou diante da vitrine da Companhia de Belfast de Chá
Oriental e leu os rótulos dos pacotes de papel laminado: mistura requintada, a mais alta
qualidade, chá da família. Muito calor. Chá. Tenho que conseguir um de Tom Kernan. Não
poderia pedir-lhe isso no enterro, contudo. Enquanto seus olhos ainda liam brandamente ele
tirou o chapéu aspirando serenamente o óleo do seu cabelo e pousando sua mão com lenta
elegância sobre sua testa e cabelo. Manhã muito quente. Sob suas pálpebras caídas seus olhos
encontraram a pequenina dobra da carneira de couro do seu chap de qualidade superior. Bem
ali. Sua mão direita desceu até dentro da copa do chapéu. Seus dedos encontraram
rapidamente um cartão atrás da carneira e o transferiram para o bolso do seu colete.
Tanto calor. Sua mão direita passou de novo mais lentamente sobre sua testa e cabelo.
Ele pôs então novamente o chapéu, aliviado: e leu de novo: mistura requintada, feita das
melhores marcas do Ceilão. O Oriente distante. Lugar encantador deve ser: o jardim do
mundo, folhas grandes preguiçosas a flutuar à volta, cactos, campinas floridas, cipós sinuosos
assim os chamam. Me pergunto se é realmente assim. Aqueles cingaleses perambulando à
volta sob o sol num dolce far niente, não fazendo absolutamente nada o dia inteiro. Dormem
seis meses de doze. Calor excessivo para se brigar. Influência do clima. Letargia. Flores da
ociosidade. O ar alimenta a maioria. Azotes. Estufa em Jardins Botânicos. Plantas sensitivas.
Nenúfares. Pétalas cansadas demais para. Doença do sono no ar. Caminhar sobre pétalas de
rosas. Imagine tentar comer tripa e mocotó. Onde é que estava aquele camarada que eu vi
naquele quadro em algum lugar? Ah, sim, no mar morto flutuando de costas, lendo um livro
com um guarda-sol aberto. Não poderia afundar mesmo que você tentasse: tão espesso de sal.
Porque o peso da água, não, o peso do corpo na água é igual ao peso de quê? Ou é o volume
que é igual ao peso? É uma lei ou coisa no gênero. Vance no ginásio estalando os dedos,
ensinando. O currículo do colégio. Currículo estalejante. O que é realmente peso quando você
diz o peso? Trinta e dois pés por segundo por segundo. Lei da queda dos corpos: por segundo
por segundo. Eles todos caem no chão. A Terra. É a força de gravidade da Terra que é o peso.
Ele virou em direção contrária e vagou pela rua. Como ela andava com suas
salsichas? Desse jeito mais ou menos. Enquanto andava ele pegou o Freeman dobrado do seu
bolso do lado, desdobrou-o, enrolou-o no seu comprimento como um bastão e bateu com ele
na sua perna-de-calça a cada passo saracoteante. Ar descuidado: só dei uma passada para ver.
Por segundo por segundo. Por segundo quer dizer cada segundo. Do meio-fio ele lançou um
olhar penetrante através da porta do correio. Tarde demais para retirada das cartas das caixas.
O correio aqui. Ninguém. Entrar.
Ele estendeu o cartão através da grade de metal.
– Há alguma carta para mim? – perguntou.
Enquanto a funcionária do correio procurava no escaninho ele olhou para o pôster de
recrutamento de soldados de todas as armas em parada: e levou a ponta do bastão até as
narinas, cheirando a tinta fresca do pedaço de jornal. Nenhuma resposta provavelmente. Fui
longe demais da última vez.
A funcionária estendeu de volta através da grade o cartão com uma carta. Ele
agradeceu e olhou rapidamente para o envelope batido à máquina.
Henry Flower Esq.c/o P. O. Westland RowCity.
De qualquer forma respondeu. Ele enfiou o cartão e a carta no seu bolso do lado, revendo de novo os soldados em parada. Onde está o regimento do velho Tweedy? Soldado rejeitado. Ali; barretina de pele e penacho de pluma. Não, ele é um granadeiro. Punhos pontudos. Lá está ele: fuzileiros do Royal Dublin. Casacosvermelhos. Chamativos demais. Deve ser por isso que as mulheres vão atrás deles. Uniforme. Mais fácil de alistar e treinar. Carta de Maud Gonne para tirá-los da O’Connell Street à noite: uma desgraça para nossa capital irlandesa. O jornal de Griffith está com a mesma norma de ação agora: um exército podre com doença venérea: império ultramarino ou de embriagados. Parecem meio sazonados: como hipnotizados. Olhos fixos. Marcando o passo. Gamela: ela. Penacho: acho. Propriedade do rei. Nunca o vi vestido de bombeiro ou de policial. De maçom, sim.
Ele se retirou do prédio do correio e dobrou à direita. Falar: como se isso
consertasse as coisas. Sua mão entrou no bolso e um dedo indicador apalpou por baixo da aba
do envelope, rasgando aos trancos ao abri-lo. Às mulheres pouco se lhes dá, creio. Seus
dedos arrancaram a carta e amassaram o envelope em seu bolso. Alguma coisa presa com um
alfinete: uma foto talvez. Cabelo? Não.
M’Coy. Ficar livre dele rápido. Tirar-me do meu caminho. Detesto companhia quando
se.
– Alô, Bloom. Para onde você está indo?
– Alô, M’Coy. Nenhum lugar em particular.
– Como vai essa força?
– Ótimo. E você como vai?
– Só me mantendo vivo – disse M’Coy.
Com os olhos na gravata e na roupa preta ele perguntou em tom respeitoso:
– Há algum... nenhum problema espero? Vejo que você está...
– Ó, não – disse o Sr. Bloom. – Pobre Dignam, você sabe. O enterro é hoje.
– É isso aí, pobre homem. É mesmo. A que horas?
Uma foto não é. Um emblema talvez.
– Ooonze – respondeu o Sr. Bloom.
– Eu vou tentar ir lá – disse M’Coy. – Onze, é isso não? Eu só soube ontem à noite.
Quem foi mesmo que me disse? Holohan. Você conhece Hoppy?
– Conheço.
O Sr. Bloom olhou para o outro lado da rua para o cabriolé parado diante da porta do
hotel Grosvenor. O porteiro içou a valise no porta-bagagem. Ela ficou parada, aguardando,
enquanto o homem, marido, irmão, como ela, procurava um trocado em seus bolsos. Tipo
elegante de casaco com aquela gola alta, quente para um dia como aquele, parece um cobertor.
Posição descuidada a dela com suas mãos naqueles bolsos de malha. Como aquela criatura
altiva na partida de polo. As mulheres são todas a favor do sistema de classes até que se
acerte no alvo. É bonito e faz bonito. Reservadas prestes a se render. A honrada Sra. e Brutus
é um homem honrado. Possua-a uma vez e retire o formalismo dela.
– Eu estive com Bob Doran, em uma de suas bebedeiras periódicas, e como você o
chama Bantam Lyons. Estivemos justamente ali no bar de Conway.
Doran e Lyons no Conway. Ela ergueu uma mão enluvada até seus cabelos. Chegou o
Hoppy. Tomando um trago. Inclinando a cabeça para trás e olhando para longe por entre as
pálpebras abaixadas ele viu a pele castanho-clara brilhar no clarão, debruns engalonados.
Posso ver claramente hoje. Talvez a umidade à volta permita uma visão de longa distância.
Falando de uma coisa ou de outra. Mão de dama. De que lado ela vai se erguer?
– E ele disse: Que coisa triste aquela do nosso pobre amigo Paddy! Que Paddy?,
disse eu. O pobrezinho do Paddy Dignam, disse ele.
De partida para o campo: Broadstone provavelmente. Botas marrons de cano alto com
os cadarços balançando. Pé bem torneado. Por que ele está alvoroçado com esse trocado? Me
vê olhando. Sempre de olho em outro homem de reserva. Boa recuada. Para ela dois coelhos
de uma só cajadada.
– Por quê?, disse eu. O que há de errado com ele?, disse eu.
Altiva: rica: meias de seda.
– Sim – disse o Sr. Bloom.
Ele andou um pouco para o lado da cabeça falante de M’Coy. Vai se levantar dentro
de um minuto.
– O que há de errado com ele?, disse ele. Está morto, disse. E, por certo, ele encheu
a cara. O Paddy Dignam?, disse eu. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Eu estive
com ele na sexta-feira passada ou quinta no Arco. Sim, disse ele: É sim. Ele se foi. Morreu na
segunda-feira, pobre rapaz.
Atenção! Atenção! Um lampejo de fina meia de seda branca. Atenção!
Um pesado bonde buzinando a sineta girou no meio.
Perdi. Maldito seja o seu nariz arrebitado e barulhento. Sente-se trancado do lado de
fora. Paraíso e espírito benfazejo. Sempre acontece desse jeito. No momento exato. A moça na
entrada de Eustace Street na segunda-feira estava ajeitando a liga. Sua amiga cobrindo a
exibição da. Esprit de corps. Ora, por que você está aí embasbacado?
– Sim, sim – disse o Sr. Bloom depois de soltar um suspiro desanimado. – Um outro
se foi.
– Um dos melhores – disse M’Coy.
O bonde passou. Eles partiram em direção à ponte de Loop Line, sua bela mão
enluvada no cabo de metal. Tremular, tremular: o brilho de renda do seu chapéu ao sol:
tremular, tremor.
– Sua mulher está bem, suponho – disse M’Coy com voz mudada.
– Está, sim – disse o Sr. Bloom. – Excelente, obrigado.
Ele desenrolou o bastão de jornal indolentemente e leu indolentemente:
O que é um lar sem
Carne enlatada de Plumtree?
Incompleto.
Com ela uma moradia feliz.
– Minha cara-metade acabou de receber uma proposta de contrato. Pelo menos ainda não foi firmada.
A tática da valise novamente. Por falar nisso nenhum problema. Estou fora disso,
obrigado.
O Sr. Bloom voltou seus olhos de longas pálpebras com afabilidade morosa.
– Minha mulher também – disse ele. – Ela vai cantar num negócio de alta esfera em
Ulster Hall, Belfast, no dia vinte e cinco.
– É mesmo? – disse M’Coy. – Alegra-me ouvir isso, meu velho. Quem está pondo
isso de pé?
Sra. Marion Bloom. Ainda não está em pé. A rainha estava no seu quarto comendo
pão com. Nenhum livro. Figuras sebentas de baralho estavam espalhadas ao longo de sua coxa
em grupos de sete. Dama morena e homem louro. Carta. Gata como uma bola de pêlo negro.
Pedacinho rasgado de envelope.
Velha.Doce.Canção.De amor.Vem velha doce...
– É uma espécie de tour, entendeu – disse o Sr. Bloom pensativamente. – Doooce canção. Há um comitê formado. Parte é repartida e parte é lucro.
M’Coy acenou com a cabeça, puxando o bigode ralo.
– Ó, tudo bem – disse ele. – Isso é uma boa notícia.
Ele se moveu para ir.
– Ora, é um prazer vê-lo em boa forma. Encontrá-lo perambulando.
– Sim – disse o Sr. Bloom.
– Por falar nisso – disse M’Coy. – Você poderia assinar o meu nome no enterro, está
bem? Eu gostaria de ir mas é possível que eu não consiga, você sabe. Pode ser que um caso de
afogamento em Sandycove venha à tona e então o médico-legista e eu teremos de ir para lá se
o corpo for encontrado. Você só põe o meu nome se eu não estiver lá, está bem?
– Eu farei isso – disse o Sr. Bloom, se preparando para partir. – Está combinado.
– Certo – disse M’Coy vivamente. – Obrigado, meu velho. Eu iria se realmente
pudesse. Bem. Até a vista. Só C. P. M’Coy basta.
– Isso será feito – respondeu o Sr. Bloom firmemente.
continua na página 70...
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Ulisses - Parte 2 (5a): Com um andar compassado
Ulisses - Parte 2 (5b): Não me pegou desprevenido
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Joyce, James
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.
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