Gabriel García Márquez
continuando... O doutor Juvenal Urbino tinha uma rotina fácil de seguir, desde que haviam
ficado para trás os anos tempestuosos dos primeiros embates, e conseguiu uma
respeitabilidade um prestígio que não tinham igual na província. Levantava-se com
os primeiros galos, e a essa hora começava a tomar seus remédios secretos:
brometo de potássio para levantar o ânimo, salicilatos para as dores dos ossos em
tempo de chuva, gotas de cravagem de centeio para as vertigens, beladona para o
bom dormir. Tomava alguma coisa a cada hora, sempre às escondidas, porque em
sua longa vida de médico e mestre foi sempre contrário a receitar paliativos para a
velhice: achava mais fácil suportar as dores alheias que as próprias. No bolso levava
sempre um cristal de cânfora que aspirava fundo quando não tinha ninguém
olhando, para se livrar do medo de tantos remédios misturados.
Permanecia uma hora no seu gabinete, preparando a aula de clínica geral que
ministrou na Escola de Medicina todos os dias de segunda a sábado, às oito em
ponto, até a véspera de sua morte. Era também um leitor atento das novidades
literárias que lhe mandava pelo correio seu livreiro de Paris, ou das que lhe
despachava de Barcelona seu livreiro local, embora não acompanhasse a literatura
da língua castelhana com tanta atenção quanto a francesa. De qualquer forma
nunca as lia pela manhã e sim depois da sesta durante uma hora, e à noite antes de
dormir. Ao deixar o gabinete fazia quinze minutos de exercícios respiratórios no
banheiro, defronte da janela aberta, respirando sempre para o lado em que
cantavam os galos, que era onde estava o ar novo. Depois tomava banho, cuidava da
barba e engomava o bigode num ambiente saturado de água-de-colônia da legítima
de Farina Gegenüber, e se vestia de linho branco, com colete e chapéu mole, e
botinas de cordovão. Aos oitenta e um anos conservava o jeito despreocupado e o
espírito festivo de quando voltou de Paris, pouco depois da epidemia grande do
cólera morbo, e o cabelo bem penteado com o repartido no meio continuava igual
ao da juventude, salvo pela cor metálica. Tomava café em família, mas com um
regime pessoal: uma infusão de flores de absinto maior, para o bem-estar do
estômago, e uma cabeça de alho cujos dentes descascava e comia um por um,
mastigando-os com método em fatias de pão caseiro, para prevenir os sufocos do
coração. Só em raras ocasiões não tinha depois da aula algum compromisso
relacionado com suas iniciativas cívicas, ou com suas milícias católicas, ou com
suas promoções artísticas e sociais.
Almoçava quase sempre em casa, fazia uma sesta de dez minutos sentado na
varanda do quintal, ouvindo em sonhos as canções das criadas debaixo da copa das
mangueiras, ouvindo os pregões da rua, o fragor de motores com o fedor de óleos da
baía, cujos eflúvios esvoaçavam por dentro da casa nas tardes de calor como um
anjo condenado à podridão. Depois lia durante uma hora os livros recentes, em
especial romances e estudos históricos, e dava lições de francês e de canto ao louro
doméstico que há anos era uma atração local. Às quatro saía para visitar os doentes,
depois de tomar uma grande caneca de limonada com gelo. Apesar da idade, resistia
à ideia de receber os pacientes no consultório, continuando a atendê-los nas
respectivas casas, como sempre tinha feito, desde os tempos em que a cidade era
tão doméstica que se podia ir a pé a qualquer lugar.
Desde que voltara da Europa pela primeira vez andava no landô familiar com
dois alazões dourados, mas quando este se tornou imprestável trocou-o por uma
vitória de um cavalo só, e continuou a usá-la sempre com certo desdém pela moda,
nessa época em que as carruagens começavam a desaparecer do mundo e as únicas
que ainda perduravam na cidade só serviam para levar turistas a passeio e coroas ao
cemitério. Embora se negasse a aposentadoria, estava consciente de que só o
chamavam para atender a casos perdidos, mas considerava que isso também era
uma forma de especialização. Era capaz de saber o que tinha um doente só pelo seu
aspecto, e cada vez desconfiava mais dos medicamentos comerciais e via com
alarme a vulgarização da cirurgia. Dizia: "O bisturi é a prova maior do fracasso da
medicina." Achava que dentro de um critério estrito todo remédio era veneno, e que
setenta por cento dos alimentos correntes apressavam a morte. "De qualquer
maneira", costumava dizer em classe, "a pouca medicina que se sabe só a sabem
alguns médicos." De seus entusiasmos juvenis tinha passado a uma posição que ele
mesmo definia como um humanismo fatalista: "Cada qual é dono de sua própria
morte, e a única coisa que podemos fazer, chegada a hora, é ajudá-lo a morrer sem
medo nem dor." Mas a despeito dessas ideias extremadas, que já eram parte do
folclore médico local, seus antigos alunos continuavam a consultá-lo mesmo
quando já eram profissionais estabelecidos, pois reconheciam nele o que então se
chamava olho clínico. De todo modo foi sempre um médico caro e excludente, e sua
clientela se concentrava nas casas fidalgas do bairro dos Vice-Reis.
Tinha um dia-a-dia tão metódico que a esposa sabia onde lhe mandar um recado
se surgisse algo urgente no transcorrer da tarde. Quando moço passava algum
tempo no Café da Paróquia antes de voltar para casa, e assim aperfeiçoou seu
xadrez com os cúmplices do sogro e com alguns refugiados do Caribe. Mas a partir
dos albores do novo século não voltou ao Café da Paróquia e tratou de organizar
torneios nacionais patrocinados pelo Clube Social. Foi por essa época que chegou
Jeremiah de Saint-Amour, já com os joelhos mortos e ainda sem o ofício de
fotógrafo de crianças, e antes de três meses era conhecido de quem quer que
soubesse movimentar um bispo num tabuleiro, porque ninguém conseguira
ganhar-lhe uma partida. Para o doutor Juvenal Urbino foi um encontro milagroso,
num momento em que o xadrez se transformara para ele numa paixão indomável e
já não lhe restavam muitos adversários para saciá-la.
Graças a ele, Jeremiah de Saint-Amour pôde ser o que foi entre nós. O doutor
Urbino se converteu em seu protetor incondicional, em seu fiador de tudo, sem se
dar sequer trabalho de averiguar quem era, nem o que fazia, nem de que guerras
sem glória vinha naquele estado de invalidez e descalabro. Acabou por emprestar
lhe o dinheiro para que montasse o estúdio de fotógrafo, que Jeremiah de Saint
Amour pagou com um rigor de pobre soberbo, até o último vintém, a partir do
instante em que retratou o primeiro menino assustado pelo relâmpago de
magnésio.
A causa de tudo foi o xadrez. A princípio jogavam às sete da noite, depois do
jantar, com justas vantagens para o médico em razão da superioridade notória do
adversário, mas cada vez com menos vantagens, até que emparelharam. Mais tarde,
quando o senhor Galileo Daconte abriu a primeira sala de cinema, Jeremiah de
Saint-Amour foi um dos seus clientes mais assíduos, e as partidas de xadrez se
reduziram às noites em que não se estreava nenhuma fita. Nessa altura se havia
tornado tão amigo do médico que este o acompanhava ao cinema, mas sempre sem
a esposa, em parte porque ela não tinha paciência para seguir o fio dos enredos
difíceis, e em parte porque sempre lhe pareceu, por puro olfato, que Jeremiah de
Saint-Amour não era uma boa companhia para ninguém.
Seu dia diferente era o domingo. Assistia à missa solene na catedral, e depois
voltava para casa e ali ficava descansando e lendo na varanda do quintal. Poucas
vezes saía para ver um doente em dia de guarda, a menos que fosse de extrema
urgência, e há muitos anos não aceitava nenhum compromisso social que não fosse
quase obrigatório. Naquele dia de Pentecostes, por uma coincidência excepcional,
haviam concorrido dois acontecimentos raros: a morte de um amigo e as bodas de
prata de um discípulo eminente. Mesmo assim, em vez de regressar a casa sem
rodeios, como previra depois de atestar a morte de Jeremiah de Saint-Amour, se
deixou arrastar pela curiosidade.
Logo que subiu no carro fez uma recapitulação rápida da carta póstuma, e
ordenou ao cocheiro que o levasse a um endereço difícil no antigo bairro dos
escravos. Aquela determinação era tão estranha a seus hábitos que o cocheiro quis
ter certeza de que não havia algum erro. Não havia: o endereço era claro, e quem o
escrevera tinha motivos de sobra para conhecê-lo muito bem. O doutor Urbino
voltou então à primeira folha, e mergulhou outra vez naquele manancial de
revelações indesejáveis que teriam podido mudar-lhe a vida, mesmo na sua idade,
se tivesse conseguido convencer a si mesmo de que não eram os delírios de um
desenganado.
O humor do céu tinha começado a se descompor desde muito cedo, e estava
nublado e fresco, mas não havia riscos de chuva antes do meio-dia. Tratando de
encontrar um caminho mais curto, o cocheiro se meteu pelas ladeiras empedradas
da cidade colonial, e teve que parar muitas vezes para que o cavalo não se
espantasse com a desordem dos colégios e congregações religiosas que voltavam da
liturgia do Pentecostes. Havia grinaldas de papel nas ruas, músicas e flores, e moças
com sombrinhas coloridas e véus de musselina que viam passar a festa dos balcões.
Na Praça da Catedral, onde se distinguia a estátua do Libertador entre as palmeiras
africanas e as novas luminárias de globos, havia um engarrafamento de automóveis
à saída da missa e não restava um lugar disponível no venerável e barulhento Café
da Paróquia. O único carro de cavalos era o do doutor Urbino, e se diferenciava dos
muito poucos que restavam na cidade porque mantinha sempre o brilho da capota
de charão e tinha as ferragens de bronze, para que o salitre não as comesse, e as
rodas e varais pintados de vermelho com frisos dourados, como nas noites de gala
da Ópera de Vieña. Além disso, enquanto mesmo as famílias mais cheias de si se
conformavam com cocheiros que ostentassem uma camisa limpa, ele continuava
exigindo do seu a libré de veludo soturno e a cartola de domador de circo, coisas que
eram não só anacrônicas como representavam uma falta de misericórdia na
canícula do Caribe.
Apesar do seu amor quase maníaco pela cidade, e de conhecê-la melhor do que
ninguém, o doutor Juvenal Urbino tinha tido muito poucas vezes motivo como o
daquele domingo para se aventurar sem hesitações pela mixórdia do antigo bairro
dos escravos. O cocheiro teve que dar muitas voltas e perguntar várias vezes para
encontrar o endereço. O doutor Urbino reconheceu de perto a inércia dos pântanos,
seu silêncio fatídico, suas ventosidades de afogado que em tantas madrugadas de
insônia subiam até seu quarto de envolta com a fragrância dos jasmins do quintal, e
que ele sentia passar como um vento de ontem que nada tinha a ver com sua vida.
Mas aquela pestilência tantas vezes idealizada pela saudade se converteu numa
realidade insuportável quando o carro começou a dar saltos pelo lodaçal das ruas
onde os urubus disputavam entre si os restos do matadouro arrastados pelo mar em
retirada. Ao contrário da cidade vice-real, cujas casas eram de alvenaria, ali eram
feitas de madeiras desbotadas e telhados de zinco, assentados em sua maioria sobre
estacas para não serem atingidas pelas cheias das cloacas a céu aberto herdadas dos
espanhóis. Tudo tinha um aspecto miserável e desamparado, mas das tavernas
sórdidas saía o trovão de música da pândega sem Deus nem lei do Pentecostes dos
pobres. Quando afinal encontraram o endereço, o carro ia perseguido por maltas de
meninos nus que troçavam dos atavios teatrais do cocheiro, e que este tinha que
espantar a chicote. O doutor Urbino, preparado para uma visita confidencial,
compreendeu tarde demais que não havia candura mais perigosa do que a da sua
idade.
O exterior da casa sem número não tinha nada que a distinguisse das menos
felizes, salvo a janela com cortinas de renda e um portão desmontado de alguma
igreja antiga. O cocheiro fez soar a aldraba; e só quando comprovou que estava no
endereço correto ajudou o médico a descer do carro. O portão fora aberto sem
barulho, e na penumbra interior estava uma mulher madura, vestida de preto
absoluto e com uma rosa vermelha na orelha. Apesar dos seus anos, que não eram
menos de quarenta, continuava sendo uma mulata altiva, de olhos dourados e
cruéis, e o cabelo ajustado à forma do crânio como um capacete de palha de aço. O
doutor Urbino não a reconheceu, embora a tivesse visto várias vezes entre as
nebulosas das partidas de xadrez no estúdio do fotógrafo, e em alguma ocasião lhe
havia receitado uns envelopes de quinina para as febres terças. Estendeu-lhe a mão,
e ela a tomou entre as suas, menos para cumprimentá-lo do que para ajudá-lo a
entrar. A sala tinha o clima e o murmúrio invisível de uma floresta, e estava
atulhada de móveis e objetos primorosos, cada um em seu lugar natural. O doutor
Urbino se lembrou sem amargura da botica de um antiquário de Paris, numa
segunda feira de outono do século anterior, no número 26 da rua de Montmartre. A
mulher se sentou diante dele e lhe falou num castelhano difícil.
— Esta é sua casa, doutor — disse. — Não o esperava tão cedo.
O doutor Urbino se sentiu denunciado. Observou-a com o coração, observou seu
luto intenso, a dignidade da sua angústia, e então compreendeu que aquela era uma
visita inútil, porque ela sabia melhor do que ele tudo quanto estava dito e
justificado na carta póstuma de Jeremiah de Saint-Amour. Assim era. Ela o havia
acompanhado até muito poucas horas antes da morte, como o havia acompanhado
durante meia vida com uma devoção e uma ternura submissa que se pareciam
demais com o amor, e sem que ninguém o soubesse nesta sonolenta capital de
província onde eram do domínio público até os segredos de estado. Tinham se
conhecido numa hospedaria de viandantes de Port-au-Prince, onde ela nascera e ele
havia passado seus primeiros tempos de fugitivo, e o acompanhara até aqui um ano
depois para uma visita breve, embora ambos soubessem sem discutir o assunto que
vinha para todo o sempre. Ela se ocupava em manter a limpeza e a ordem do
laboratório uma vez por semana, mas nem os vizinhos que mais maliciavam tudo
confundiram as aparências com a verdade, porque supunham como todo o mundo
que a invalidez de Jeremiah de Saint-Amour não era só de andar. O próprio doutor
Urbino o supunha por razões médicas bem fundadas, e jamais teria acreditado que
tivesse uma mulher caso ele mesmo não o houvesse revelado na carta. Fosse como
fosse, lhe dava trabalho entender que dois adultos livres e sem passado, à margem
dos preconceitos de uma sociedade fechada em si mesma, tivessem escolhido o
risco dos amores proibidos. Ela lhe explicou: "Era seu gosto." Além disso, a
clandestinidade compartilhada com um homem que nunca tinha sido seu por
completo, e na qual mais de uma vez conheceram a explosão instantânea da
felicidade, não lhe pareceu uma condição indesejável. Ao contrário: a vida lhe havia
demonstrado que talvez fosse exemplar.
continua na página 014...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Juvenal Urbino
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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