sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Juvenal Urbino

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

     O doutor Juvenal Urbino tinha uma rotina fácil de seguir, desde que haviam ficado para trás os anos tempestuosos dos primeiros embates, e conseguiu uma respeitabilidade um prestígio que não tinham igual na província. Levantava-se com os primeiros galos, e a essa hora começava a tomar seus remédios secretos: brometo de potássio para levantar o ânimo, salicilatos para as dores dos ossos em tempo de chuva, gotas de cravagem de centeio para as vertigens, beladona para o bom dormir. Tomava alguma coisa a cada hora, sempre às escondidas, porque em sua longa vida de médico e mestre foi sempre contrário a receitar paliativos para a velhice: achava mais fácil suportar as dores alheias que as próprias. No bolso levava sempre um cristal de cânfora que aspirava fundo quando não tinha ninguém olhando, para se livrar do medo de tantos remédios misturados.
      Permanecia uma hora no seu gabinete, preparando a aula de clínica geral que ministrou na Escola de Medicina todos os dias de segunda a sábado, às oito em ponto, até a véspera de sua morte. Era também um leitor atento das novidades literárias que lhe mandava pelo correio seu livreiro de Paris, ou das que lhe despachava de Barcelona seu livreiro local, embora não acompanhasse a literatura da língua castelhana com tanta atenção quanto a francesa. De qualquer forma nunca as lia pela manhã e sim depois da sesta durante uma hora, e à noite antes de dormir. Ao deixar o gabinete fazia quinze minutos de exercícios respiratórios no banheiro, defronte da janela aberta, respirando sempre para o lado em que cantavam os galos, que era onde estava o ar novo. Depois tomava banho, cuidava da barba e engomava o bigode num ambiente saturado de água-de-colônia da legítima de Farina Gegenüber, e se vestia de linho branco, com colete e chapéu mole, e botinas de cordovão. Aos oitenta e um anos conservava o jeito despreocupado e o espírito festivo de quando voltou de Paris, pouco depois da epidemia grande do cólera morbo, e o cabelo bem penteado com o repartido no meio continuava igual ao da juventude, salvo pela cor metálica. Tomava café em família, mas com um regime pessoal: uma infusão de flores de absinto maior, para o bem-estar do estômago, e uma cabeça de alho cujos dentes descascava e comia um por um, mastigando-os com método em fatias de pão caseiro, para prevenir os sufocos do coração. Só em raras ocasiões não tinha depois da aula algum compromisso relacionado com suas iniciativas cívicas, ou com suas milícias católicas, ou com suas promoções artísticas e sociais.
     Almoçava quase sempre em casa, fazia uma sesta de dez minutos sentado na varanda do quintal, ouvindo em sonhos as canções das criadas debaixo da copa das mangueiras, ouvindo os pregões da rua, o fragor de motores com o fedor de óleos da baía, cujos eflúvios esvoaçavam por dentro da casa nas tardes de calor como um anjo condenado à podridão. Depois lia durante uma hora os livros recentes, em especial romances e estudos históricos, e dava lições de francês e de canto ao louro doméstico que há anos era uma atração local. Às quatro saía para visitar os doentes, depois de tomar uma grande caneca de limonada com gelo. Apesar da idade, resistia à ideia de receber os pacientes no consultório, continuando a atendê-los nas respectivas casas, como sempre tinha feito, desde os tempos em que a cidade era tão doméstica que se podia ir a pé a qualquer lugar.
     Desde que voltara da Europa pela primeira vez andava no landô familiar com dois alazões dourados, mas quando este se tornou imprestável trocou-o por uma vitória de um cavalo só, e continuou a usá-la sempre com certo desdém pela moda, nessa época em que as carruagens começavam a desaparecer do mundo e as únicas que ainda perduravam na cidade só serviam para levar turistas a passeio e coroas ao cemitério. Embora se negasse a aposentadoria, estava consciente de que só o chamavam para atender a casos perdidos, mas considerava que isso também era uma forma de especialização. Era capaz de saber o que tinha um doente só pelo seu aspecto, e cada vez desconfiava mais dos medicamentos comerciais e via com alarme a vulgarização da cirurgia. Dizia: "O bisturi é a prova maior do fracasso da medicina." Achava que dentro de um critério estrito todo remédio era veneno, e que setenta por cento dos alimentos correntes apressavam a morte. "De qualquer maneira", costumava dizer em classe, "a pouca medicina que se sabe só a sabem alguns médicos." De seus entusiasmos juvenis tinha passado a uma posição que ele mesmo definia como um humanismo fatalista: "Cada qual é dono de sua própria morte, e a única coisa que podemos fazer, chegada a hora, é ajudá-lo a morrer sem medo nem dor." Mas a despeito dessas ideias extremadas, que já eram parte do folclore médico local, seus antigos alunos continuavam a consultá-lo mesmo quando já eram profissionais estabelecidos, pois reconheciam nele o que então se chamava olho clínico. De todo modo foi sempre um médico caro e excludente, e sua clientela se concentrava nas casas fidalgas do bairro dos Vice-Reis.
     Tinha um dia-a-dia tão metódico que a esposa sabia onde lhe mandar um recado se surgisse algo urgente no transcorrer da tarde. Quando moço passava algum tempo no Café da Paróquia antes de voltar para casa, e assim aperfeiçoou seu xadrez com os cúmplices do sogro e com alguns refugiados do Caribe. Mas a partir dos albores do novo século não voltou ao Café da Paróquia e tratou de organizar torneios nacionais patrocinados pelo Clube Social. Foi por essa época que chegou Jeremiah de Saint-Amour, já com os joelhos mortos e ainda sem o ofício de fotógrafo de crianças, e antes de três meses era conhecido de quem quer que soubesse movimentar um bispo num tabuleiro, porque ninguém conseguira ganhar-lhe uma partida. Para o doutor Juvenal Urbino foi um encontro milagroso, num momento em que o xadrez se transformara para ele numa paixão indomável e já não lhe restavam muitos adversários para saciá-la.
      Graças a ele, Jeremiah de Saint-Amour pôde ser o que foi entre nós. O doutor Urbino se converteu em seu protetor incondicional, em seu fiador de tudo, sem se dar sequer trabalho de averiguar quem era, nem o que fazia, nem de que guerras sem glória vinha naquele estado de invalidez e descalabro. Acabou por emprestar lhe o dinheiro para que montasse o estúdio de fotógrafo, que Jeremiah de Saint Amour pagou com um rigor de pobre soberbo, até o último vintém, a partir do instante em que retratou o primeiro menino assustado pelo relâmpago de magnésio.
     A causa de tudo foi o xadrez. A princípio jogavam às sete da noite, depois do jantar, com justas vantagens para o médico em razão da superioridade notória do adversário, mas cada vez com menos vantagens, até que emparelharam. Mais tarde, quando o senhor Galileo Daconte abriu a primeira sala de cinema, Jeremiah de Saint-Amour foi um dos seus clientes mais assíduos, e as partidas de xadrez se reduziram às noites em que não se estreava nenhuma fita. Nessa altura se havia tornado tão amigo do médico que este o acompanhava ao cinema, mas sempre sem a esposa, em parte porque ela não tinha paciência para seguir o fio dos enredos difíceis, e em parte porque sempre lhe pareceu, por puro olfato, que Jeremiah de Saint-Amour não era uma boa companhia para ninguém.
     Seu dia diferente era o domingo. Assistia à missa solene na catedral, e depois voltava para casa e ali ficava descansando e lendo na varanda do quintal. Poucas vezes saía para ver um doente em dia de guarda, a menos que fosse de extrema urgência, e há muitos anos não aceitava nenhum compromisso social que não fosse quase obrigatório. Naquele dia de Pentecostes, por uma coincidência excepcional, haviam concorrido dois acontecimentos raros: a morte de um amigo e as bodas de prata de um discípulo eminente. Mesmo assim, em vez de regressar a casa sem rodeios, como previra depois de atestar a morte de Jeremiah de Saint-Amour, se deixou arrastar pela curiosidade.
      Logo que subiu no carro fez uma recapitulação rápida da carta póstuma, e ordenou ao cocheiro que o levasse a um endereço difícil no antigo bairro dos escravos. Aquela determinação era tão estranha a seus hábitos que o cocheiro quis ter certeza de que não havia algum erro. Não havia: o endereço era claro, e quem o escrevera tinha motivos de sobra para conhecê-lo muito bem. O doutor Urbino voltou então à primeira folha, e mergulhou outra vez naquele manancial de revelações indesejáveis que teriam podido mudar-lhe a vida, mesmo na sua idade, se tivesse conseguido convencer a si mesmo de que não eram os delírios de um desenganado.
     O humor do céu tinha começado a se descompor desde muito cedo, e estava nublado e fresco, mas não havia riscos de chuva antes do meio-dia. Tratando de encontrar um caminho mais curto, o cocheiro se meteu pelas ladeiras empedradas da cidade colonial, e teve que parar muitas vezes para que o cavalo não se espantasse com a desordem dos colégios e congregações religiosas que voltavam da liturgia do Pentecostes. Havia grinaldas de papel nas ruas, músicas e flores, e moças com sombrinhas coloridas e véus de musselina que viam passar a festa dos balcões. Na Praça da Catedral, onde se distinguia a estátua do Libertador entre as palmeiras africanas e as novas luminárias de globos, havia um engarrafamento de automóveis à saída da missa e não restava um lugar disponível no venerável e barulhento Café da Paróquia. O único carro de cavalos era o do doutor Urbino, e se diferenciava dos muito poucos que restavam na cidade porque mantinha sempre o brilho da capota de charão e tinha as ferragens de bronze, para que o salitre não as comesse, e as rodas e varais pintados de vermelho com frisos dourados, como nas noites de gala da Ópera de Vieña. Além disso, enquanto mesmo as famílias mais cheias de si se conformavam com cocheiros que ostentassem uma camisa limpa, ele continuava exigindo do seu a libré de veludo soturno e a cartola de domador de circo, coisas que eram não só anacrônicas como representavam uma falta de misericórdia na canícula do Caribe.
      Apesar do seu amor quase maníaco pela cidade, e de conhecê-la melhor do que ninguém, o doutor Juvenal Urbino tinha tido muito poucas vezes motivo como o daquele domingo para se aventurar sem hesitações pela mixórdia do antigo bairro dos escravos. O cocheiro teve que dar muitas voltas e perguntar várias vezes para encontrar o endereço. O doutor Urbino reconheceu de perto a inércia dos pântanos, seu silêncio fatídico, suas ventosidades de afogado que em tantas madrugadas de insônia subiam até seu quarto de envolta com a fragrância dos jasmins do quintal, e que ele sentia passar como um vento de ontem que nada tinha a ver com sua vida. Mas aquela pestilência tantas vezes idealizada pela saudade se converteu numa realidade insuportável quando o carro começou a dar saltos pelo lodaçal das ruas onde os urubus disputavam entre si os restos do matadouro arrastados pelo mar em retirada. Ao contrário da cidade vice-real, cujas casas eram de alvenaria, ali eram feitas de madeiras desbotadas e telhados de zinco, assentados em sua maioria sobre estacas para não serem atingidas pelas cheias das cloacas a céu aberto herdadas dos espanhóis. Tudo tinha um aspecto miserável e desamparado, mas das tavernas sórdidas saía o trovão de música da pândega sem Deus nem lei do Pentecostes dos pobres. Quando afinal encontraram o endereço, o carro ia perseguido por maltas de meninos nus que troçavam dos atavios teatrais do cocheiro, e que este tinha que espantar a chicote. O doutor Urbino, preparado para uma visita confidencial, compreendeu tarde demais que não havia candura mais perigosa do que a da sua idade.
      O exterior da casa sem número não tinha nada que a distinguisse das menos felizes, salvo a janela com cortinas de renda e um portão desmontado de alguma igreja antiga. O cocheiro fez soar a aldraba; e só quando comprovou que estava no endereço correto ajudou o médico a descer do carro. O portão fora aberto sem barulho, e na penumbra interior estava uma mulher madura, vestida de preto absoluto e com uma rosa vermelha na orelha. Apesar dos seus anos, que não eram menos de quarenta, continuava sendo uma mulata altiva, de olhos dourados e cruéis, e o cabelo ajustado à forma do crânio como um capacete de palha de aço. O doutor Urbino não a reconheceu, embora a tivesse visto várias vezes entre as nebulosas das partidas de xadrez no estúdio do fotógrafo, e em alguma ocasião lhe havia receitado uns envelopes de quinina para as febres terças. Estendeu-lhe a mão, e ela a tomou entre as suas, menos para cumprimentá-lo do que para ajudá-lo a entrar. A sala tinha o clima e o murmúrio invisível de uma floresta, e estava atulhada de móveis e objetos primorosos, cada um em seu lugar natural. O doutor Urbino se lembrou sem amargura da botica de um antiquário de Paris, numa segunda feira de outono do século anterior, no número 26 da rua de Montmartre. A mulher se sentou diante dele e lhe falou num castelhano difícil.

 — Esta é sua casa, doutor — disse. — Não o esperava tão cedo.

     O doutor Urbino se sentiu denunciado. Observou-a com o coração, observou seu luto intenso, a dignidade da sua angústia, e então compreendeu que aquela era uma visita inútil, porque ela sabia melhor do que ele tudo quanto estava dito e justificado na carta póstuma de Jeremiah de Saint-Amour. Assim era. Ela o havia acompanhado até muito poucas horas antes da morte, como o havia acompanhado durante meia vida com uma devoção e uma ternura submissa que se pareciam demais com o amor, e sem que ninguém o soubesse nesta sonolenta capital de província onde eram do domínio público até os segredos de estado. Tinham se conhecido numa hospedaria de viandantes de Port-au-Prince, onde ela nascera e ele havia passado seus primeiros tempos de fugitivo, e o acompanhara até aqui um ano depois para uma visita breve, embora ambos soubessem sem discutir o assunto que vinha para todo o sempre. Ela se ocupava em manter a limpeza e a ordem do laboratório uma vez por semana, mas nem os vizinhos que mais maliciavam tudo confundiram as aparências com a verdade, porque supunham como todo o mundo que a invalidez de Jeremiah de Saint-Amour não era só de andar. O próprio doutor Urbino o supunha por razões médicas bem fundadas, e jamais teria acreditado que tivesse uma mulher caso ele mesmo não o houvesse revelado na carta. Fosse como fosse, lhe dava trabalho entender que dois adultos livres e sem passado, à margem dos preconceitos de uma sociedade fechada em si mesma, tivessem escolhido o risco dos amores proibidos. Ela lhe explicou: "Era seu gosto." Além disso, a clandestinidade compartilhada com um homem que nunca tinha sido seu por completo, e na qual mais de uma vez conheceram a explosão instantânea da felicidade, não lhe pareceu uma condição indesejável. Ao contrário: a vida lhe havia demonstrado que talvez fosse exemplar.

continua na página 014...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: O doutor Juvenal Urbino
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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