sábado, 10 de agosto de 2024

Ensaio - a dois passos do céu, as pernas tremendo: 03

primeiro dia

baitasar

E se chover... a terra voltará a ficar mole? E o dique vai suportar? Desta vez, não suportou. E as bombas vão continuar as mesmas? O desmatamento vai continuar livre e solto? Vamos continuar acreditando nas mesmas mentiras? A falta de manutenção não é crime? Vão continuar com a vontade insaciável de derrubar o muro? Vamos seguir resmungando sem pensar? E os oportunistas de plantão?

Não existem respostas fáceis, meu filho, Me sinto péssimo, mãe, Todos estamos nos sentindo assim, O que fazer, então, É preciso pensar, Esses tipos de sempre, Talvez sim, talvez não, quem sabe... querem que pensemos assim, Pai, estou perdido, só sei o que não quero,  Isso já é um começo, meu filho, Vamos dormir, meu bem.

amanheceu mais um dia cinzento

e o dalton, aluno do terceiro ano do médio, chega se anunciando, Ehaaí, Gustavo, os dois se cumprimentam, são meus colegas de turma, jamais me adularam, sempre os mesmos juntos, nos mesmos lugares, tudo normal, estávamos de volta, mas não éramos mais os mesmos

o aperto das mãos anuncia aquele pequeno encontro de atitude, um soco encurtado e frágil de mútuo consentimento, o ritual da tribo permanecia, me pergunto sobre o que ainda continuava

gente, eu sei que não parece, mas sou o mais moço dos três, também sou grande e o mais feio, aquele cara em que as garotas não se deitam no mesmo lençol, tenho quinze anos, às vezes, me sinto fora do lugar e do tempo, muito triste, sei lá, sinto um frio como se tivesse sessenta, e viajando no tempo com esses quinze anos, é isso, têm momentos em que estou sonhando fora do lugar para mais, outras vezes grito para menos, nem sempre faço o meu melhor

sentamos no mesmo banco de cimento desde o primeiro dia do primeiro ano, eles com sete, eu com seis anos, é bastante tempo observando o futuro duvidoso, imaginando loucuras e mascando chicles sem fazer nada, sobrevivendo aos alinhamentos pedagógicos – como sei sobre esses alinhamentos pedagógicos? sou filho de professores – com suas chamadas, avaliações, conselhos, gritos temáticos, risos recortados e avisos urgentes, para ser sincero, só não suporto professor sem paixão que não se arrisca fora do script, acomodado, medroso, gosto daqueles que nos levam para ver o sol se esconder, apreciar estrelas, complicam menos, enchem meu coração

Como vai tudo, Mauro?

senti vontade de chorar e dizer adeus, queria voltar, mas ainda não estou pronto, dá pra imaginar o medo da chuva no silêncio da noite, Fique calado, pensei, desatento a resposta pro dalton

Uma merda...

e esse sol que não vem, tudo ainda é frio, muito frio, pouco sol, os dias não estão fáceis, a vida devia ser melhor, o mau cheiro se espalhando, montanhas de entulho 

Sei... observamos as meninas e marcamos os chicles com dentes brancos e jovens, mordemos e vigiamos, os cabelos estão diferentes, não usamos mais o cabelo arrepiado e empastado de gel, tudo mais simples e curto, uma sequência dégradée contínua da altura do corte, suas intensidades formando uma transição suave entre as partes, bem normal, não é nada original, Fodam-se! Estivemos dois passos do inferno... estou só esperando pela noite longa pra poder chorar por mim e por nós, os afogados.

antes do aguaceiro usávamos calças folgadas, um número acima, nesta nova versão, estamos ajustados às calças desocupadas e doadas, a tempestade ainda não estava distante o suficiente, o medo deixa luzes acessas

eu, com o meu metro e noventa... por aí, parecia mais velho naquela pequena tribo, continuava com espinhas, cravos e a cara indecifrável, um nojo, pelo menos, eu me sentia nojento, por certo, os demais sentiam o mesmo, mas enfim, julgava ser uma troca justa, já que aturava suas súplicas de ajuda nas provas, tudo oportuno e proveitoso, algumas coisas não mudam

faço o estilo altíssimo magro, feio e fraco, acho que já disse isso, tudo bem repetir, as mentiras se repetem mais que as verdades, sou aquele sujeito que nenhuma garota vai fazer nada pra chamar minha atenção, eles, ao contrário, têm o charme fortão, músculos saltando, à vista de todas, muitos chicles e nem mesmo precisam dizer nada pra agradar

gustavo e dalton observam tudo por trás dos óculos ray-ban, só usam acessórios de marca importada às escondidas pela fronteira paraguaia, dignos representantes dos predadores desatinados, às vezes, por ser cedo, outras vezes, por ser tarde demais, ficamos sozinhos no banco de cimento, gustavo com armação dourada e o dalton com seus óculos de armação vermelha como brasas de cigarro, são garotões bonitos, ninguém fingirá dizer isso pra mim, não dou motivo pra tanto, me aproveito deles

nossas caras são todas conhecidas, o medo nelas é a novidade

sujeitos como eu, independente do que aconteça, não têm a menor chance ao lado desses garotos bonitos, a vida é isso mesmo, eu finjo não me importar, não fazer caso

Olhem aquela ali...

Quem, perguntei, esperançoso de algum reconhecimento como um jovem macho alfa, perigoso e atraente que desafia às regras comuns da atração e comportamento, uma tempestade magnética silenciosa do segundo sol realinhando as órbitas dos planetas, com meu jeans, camiseta branca, músculos que não tenho para mostrar e aquele olhar que não tem explicação, parecendo saber um segredo que o mundo inteiro quer descobrir

um rosto feio com um charme intrigante, um furacão sem todo o tempo do mundo, um sorriso devastador que desafia e exige escolhas diferentes, anuncia que não é tempo perdido enquanto saboreamos aquela sobremesa ao final de um jantar

capaz de rir de mim mesmo, mas incapaz de mudar o mundo girando ao meu redor se assim o mundo deseja, pronto para gargalhadas, compaixão e até um pouco de confusão desajeitada como uma obrigação inevitável em frangalhos, um lembrete colorido que a vida é uma paixão bem-humorada com um toque de audácia, trazendo mais cores ao cotidiano

A Mariá... foi a resposta imediata do gustavo, fez um sinal à esquerda, olhei surpreendido, lá vinha ela toda bonitinha de blusinha branca, aparecendo do nada, continuei lutando com meus pensamentos, O amor não tem hora, não tem explicação, ele até se esconde, se deixa fingir como um bobo, uma distância tão pequena e tão longe, quis chamar, não disse nada, não sou um lobo mau, só quero ser feliz, gosto muito desta menina, é lindinha daquele jeito que dá vontade de ficar olhando, escutando as vozes do coração, quero uma chance saboreando com o olhar até ficar em frangalhos, hoje eu tô me repetindo adoidado

nunca senti o gosto de um beijo, acho que isso é um motivo para viver, quem sabe um anjo do céu me trás você

É menina muito parceira, a voz do gustavo está doce, sei que posso contar com essa gatinha a qualquer hora.

o dalton tirou seus óculos vermelhos, continuamos sentados sob a imensa figueira, a vida passando, ele deixa em seu olhar uma pequena nuvem de dúvida, Você tem certeza?

Ela é muito especial, foi a resposta acalorada, você não sabe quanto essa garota caminhou até chegar aqui.

Entendi, sutilmente disfarçou sua inveja, fechou os olhos e apenas deixou que sua voz fosse levada cheia de ironia nas entrelinhas, senti como se o mundo acabasse ali

confesso que imaginei vozes no meu deserto, estava perdendo minha chance de viver, nuvens escuras estavam lá no céu, no mesmo lugar, a menina bonita caminhando com seus olhos negros na sombra da figueira sob o amanhecer, Deixa eu te amar, a menina mais linda de toda escola, a mais bela com seus olhos negros, quero teu cheiro dos cabelos em meu rosto... vamos fugir, menina!

minhas pernas tremiam, mal conseguia ficar em pé, ela entrava em mim e colava meus pedaços

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