sábado, 17 de agosto de 2024

Ensaio - a vida não é feita de ilusão: 04

primeiro dia

baitasar

a cândida deu um oi frio e rápido, passou direto, assim como apareceu do nada, seguiu em frente, não olhou, não viu meus olhos quentes e apaixonados, atravessou a cortina da sombra esparramada pelo pátio, continuei parado no cais do porto, o lugar seguro para os afogados, olhei para os lados, pensei, Vamos dar o fora daqui, não disse, não disse, não disse, ia continuar sentado esperando neste caminho sem fim, incapaz de acabar com qualquer esperança, o sol molhava meu rosto e eu sem nada, sem nenhuma palavra sequer, continuaria ali sentado pela vida inteira, babando, queimando, não sabia o que fazer, queria ser visto, tudo o que eu podia ver à minha frente era aquela lindinha, como deve ser se sentir gostosa e desejada, não sei como é se sentir assim, eu gostaria de saber o que ela pensa

o contrário de como me sinto, alguém que não existe, feio e recusável, não desperto apetência nenhuma, um resto de nenhuma esperança que o relógio nunca desperta, adormecido, um caso clássico de negligência da natureza, os deuses da beleza estavam bêbados na minha vez, meu desenho saiu grande, torto e feio, não gostavam de fato de mim, nenhuma chance de viver aquilo que mais quero, abandonar essa dor de ser invisível

tempos difíceis nestes dias que começam e não terminam

a cândida também está no terceiro ano do médio, no topo das meninas mais respeitadas da escola, no meu jeito de ver não tem para ninguém, é a mais lindinha e a mais poderosa com sua calça colada, tipo entrou e não sai mais, um perigo, ela parece que está na maldade, eu preciso saber como vai essa lindinha, gosto mais dela que de mim mesmo, não sei se isso é ruim

sigo olhando seu desfile, babando suas dobras e cruzamentos, sua lindeza, tudo se passa muito lentamente, penso o que seria bom para mim num domingo à tarde, meus olhos tristonhos desejando aquele paraíso, enfio as mãos nos bolsos vazios, é um cansaço estar sempre com os bolsos vazios, não tem explicação não ter coragem para falar do meu desejo pelo calor do seu corpo, esquecer tudo e ficar em paz num domingo à tarde

mais adiante, ela encontra outras meninas da turma, estão reunidas tagarelando, fazem o tipo se contorcendo, balançando a esmo, minhas malditas orelhas não escutam, não tem importância, fico vigiando seus movimentos pelo canto dos olhos, as mãos nos bolsos me alisando, me sinto um idiota envergonhado, como seria bom ficar com você

continuamos sentados, apenas olhando, realmente ela me parece a melhor, acho que isso é amor, te fazer companhia, falam alto, não entendo, acho que estão fingindo que não nos viram, como os guris elas fazem planos secretos para continuarem juntas, não são nada discretas, pensei em quantas estariam, daqui alguns anos, casadas, donas de casa, mães, divorciadas, mal amadas, sozinhas, esperando inutilmente num quarto vazio e frio, qual delas fingiria estar excitada num rio falso de vertigens, assim acontecia apenas porque teriam mais a perder que nós homens ou tinham sido ensinadas dessa maneira, não sei, quem sabe menos das coisas sabe muito mais que eu, mas conte sempre comigo

olho para gustavo e dalton, pensei em parar de fazer perguntas, gostaria que tivéssemos bastante dinheiro, em vez de caminhar em ruas esburacadas, continuava em silêncio, sentados, me voltei e anunciei, Sexo é um negócio, não é esporte, os dois me olharam em silêncio, o tempo parou esperando a continuação, mas não tem continuação, sei lá, parado assim eu sofro, fico imprudente com as palavras, talvez leviano, foi uma frase estúpida, talvez não

estávamos surpresos, eu também me surpreenderia, coisas da vida, enfim disse, Acho que com dinheiro podemos viver a vida que queremos, Tu é um idiota, Eu sei, eu sei... não me dou valor, mas se estivessem me enfiando dinheiro nos bolsos, essa cara feia, que tem uma vida inteira pra viver, não ficaria sozinha, encontraria as mais lindas companhias, as garotas me olharia com cobiça ao passar, encarando, sussurrando minha qualidades.

Tu ainda quer ser escritor?

Sim.

E quem vai enfiar dinheiro nesses bolsos vazios?

para o mundo inteiro era indiferente o que se passava aqui dentro de mim, sem recordações, nada demais, nada do que quero vai sobreviver nem a lembrança das minhas mãos me aquecendo, apenas meu pai e seus sonhos, Eu devia ter acreditado em meu pai.

dalton não parecia com paciência para me oferecer um funeral decente, Mas afinal, o que seu pai tem com isso tudo?

pensei, Vou dizer simplesmente dos sonhos de papai e dos meus medos, mas deixei que minha autoestima literária contasse uma pequena história de verdades e mentiras, É o seguinte, Dalton, para papai todo jogador de futebol tem uma vida de dinheirama, muita fortuna e fartura de garotas. Desde que dei meus primeiros passos, ele sonhava em me ver jogando num grande estádio, vestindo a camisa da seleção brasileira. Como muitos pais apaixonados pelo futebol, ele me imaginava driblando adversários, levantando a torcida com minhas jogadas enfeitiçadas, provocativas, fazendo o adversário sangrar com meus gols, levantando troféus. E assim, sábado após sábado, papai se tornava o meu motorista oficial, sempre animado e disposto a incentivar o seu pequeno atleta. A rotina dos sábados era intensa, cheguei quase a acreditar, mas no fundo, eu sabia que não ia ser daquele jeito nem do meu jeito nem de jeito nenhum, ainda não compreendia, apenas desconfiava que mostarda barata e aguada não faz um bom sanduíche.

continuávamos parados e sentados, acne e espinhas me marcando, orelhas redondas flutuando ao vento, Logo pela manhã, papai iniciava os preparativos. Ajeitava minha mochila, enquanto eu me amarrava nas chuteiras, as mesmas que ele havia escolhido com tanta esperança. A caminho do campo, ele contava histórias de grandes jogadores, partidas emocionantes e episódios heroicos de superação. Eu escutava encantado, atraído por cada palavra, enquanto sonhava acordado os sonhos de meu pai com os aplausos e fritos animados da torcida. Nessas histórias, não existiam as vaias, derrotas, fracassos, seus heróis eram invencíveis.

talvez, um dos três se tornasse um caminhoneiro invencível sentado na boleia do caminhão, no para-choque o nome dela, o coração no para-brisa cheio de desejo, No campo, papai observava cada um dos meus movimentos com atenção e cuidado, sentado à beira do gramado. Acompanhava o treino torcendo e vibrando a cada chute meu no gol. O calor do sol refletia em seu rosto, mas nada se comparava a emoção dele me ver correndo, me esforçando, mudando de direção como se o campo fosse uma pista de dança. A paixão que eu sentia era contagiante, ele me perguntava se estava colocando muita pressão sobre meus ombros e pés, vivia mais ansioso que eu. Afinal, o sonho era dele, eu tinha outros interesses nada parecidos com futebol. Em momentos de dúvida, papai se lembrava das manhãs em que vovô o levava aos campos, o seu desejo de ser atleta e a frustração de não ter conseguido. Agora, nem quero lembrar se era isso que queria pra mim.

os dois continuavam em silêncio e para minha surpresa estavam atentos, mistérios que se vão e vêm de longe, impotentes feridas, o tempo era ao mesmo tempo muito lento e muito rápido, eles podiam levantar e sair para viver as suas vidas e esquecer, mas estavam ao meu lado, coisas da vida, Sabia que a resposta não viria fácil. No final do treino, enquanto eu corria em sua direção com um sorriso no rosto, eu sentia meu coração aquecer. Ali estava a razão dos meus esforços, a alegria pura de um menino que ainda não sabia da pressão do mundo dos adultos, só queria o meu pai ao meu lado pra sempre, independente do caminho escolhido, fecho os olhos de saudade, ele sempre foi mais importante que o futebol, eu sentia que ele sabia tudo. Não se dedicava só em me levar, mas também observava meus interesses. Jogar bola era apenas parte do que eu gostava. Até que descobri a biblioteca da escola. Uma bruma leve me entrou de leve, caminhava pela biblioteca, brincando, olhando e cheirando os livros, sussurrando suas histórias, lentamente fui aprendendo contar e escrever histórias. Ele percebeu que meu futuro não era um caminho a ser traçado, mas uma viagem a ser explorada.

levantei, meus únicos dois ouvintes continuavam sentados, em silêncio, surpreendidos, a nossa conversa animada se perdera, voltei a observar as meninas, o pensamento em mim era uma navalha, um feioso covarde com um pai apoiador que jogou fora a oportunidade da dinheirama sem desejo de jogar futebol

a vida não é feita de ilusão


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