Machado de Assis
Conto
A parasita azul
Capítulo VII(fim)
Precipitam-se os acontecimentos
Nenhum déspota sonhou nunca mais terríveis suplícios do que os que
Leandro Soares engendrou na sua escaldada imaginação. Dois dias e duas
noites passou o pobre namorado em conjecturas estéreis. No terceiro dia
resolveu ir simplesmente procurar o venturoso rival, lançar-lhe em rosto a
sua vilania e assassiná-lo depois.
Muniu-se de uma faca e partiu.
Saía da fazenda o feliz noivo, descuidado da sorte que o esperava. Sua
imaginação ideava agora uma vida cheia de bem-aventurança e deleites
celestes; a imagem da moça dava a tudo o que o rodeava uma cor
poética. Ia todo engolfado nestes devaneios quando viu em frente de si o
preterido rival. Esquecera-se dele no meio da sua felicidade;
compreendeu o perigo e preparou-se para ele.
Leandro Soares, fiel ao programa que se havia imposto desfiou um rosário
de impropérios que o médico ouviu calado. Quando Soares acabou e ia
dar à prática o ponto final sanguinolento, Camilo respondeu:
— Atendi a tudo o que me disse; peço-lhe agora que me ouça. É verdade
que vou casar com essa moça; mas também é verdade que ela o não
ama. Qual é o nosso crime neste caso? Ora, ao passo que o senhor nutre
a meu respeito sentimentos de ódio, eu pensava na sua felicidade.
— Ah! disse Soares com ironia.
— É verdade. Disse comigo que um homem das suas aptidões não devia
estar eternamente dedicado a servir de degrau aos outros; e então, como
meu pai quer à força fazer-me deputado provincial, disse-lhe que aceitava
o lugar para o dar ao senhor. Meu pai concordou; mas eu tive de vencer
resistências políticas e ainda agora trato de quebrar algumas. Um homem
que assim procede creio que lhe merece alguma estima, — pelo menos
não lhe merece tanto ódio.
Não creio que a língua humana possua palavras assaz enérgicas para
pintar a indignação que se manifestou no rosto de Leandro Soares. O
sangue subiu-lhe todo às faces, enquanto os olhos pareciam despedir
chispas de fogo. Os lábios trêmulos como que ensaiavam baixinho uma
imprecação eloquente contra o feliz rival. Enfim, o pretendente infeliz
rompeu nestes termos:
— A ação que o senhor praticou era já bastante infame; não precisava
juntar-lhe o escárnio...
— O escárnio! interrompeu Camilo.
— Que outro nome darei eu ao que me acaba de dizer? Grande estima, na
verdade, é a sua, que depois de me roubar a maior, a única felicidade que
eu podia ter, vem oferecer-me uma compensação política!
Camilo conseguiu explicar que não lhe oferecia nenhuma compensação;
pensara naquilo por conhecer as tendências políticas de Soares e julgar
que deste modo lhe seria agradável.
— Ao mesmo tempo, concluiu gravemente o noivo, fui levado pela ideia
de prestar um serviço à província. Creia que em nenhum caso, ainda que
me devesse custar a vida, proporia coisa desvantajosa à província e ao
país. Eu cuidava servir a ambos apresentando a sua candidatura, e pode
crer que a minha opinião será a de todos.
— Mas o senhor falou de resistências... disse Soares cravando no
adversário um olhar inquisitorial.
— Resistências, não por oposição pessoal, mas por conveniências
políticas, explicou Camilo. Que vale isso? Tudo se desfaz com a razão e os
verdadeiros princípios do partido que tem a honra de o possuir entre seus
membros.
— Que faria o senhor no meu caso? perguntou ele dando ao seu irônico
sorriso um ar verdadeiramente lúgubre.
— Eu recusava, respondeu afoitamente Camilo.
— Ah!
— Sim, recusava, porque não tenho vocação política. Não acontece o
mesmo com o senhor, que a tem, e é por assim dizer o apoio do partido
em toda esta comarca.
— Tenho essa convicção, disse Soares com orgulho.
— Tenho essa convicção, disse Soares com orgulho.
— Não é o único: todos lhe fazem justiça.
Soares entrou a passear de um lado para outro. Esvoaçavam-lhe na
mente terríveis inspirações, ou a humanidade reclamava alguma
moderação no gênero de morte que daria ao rival? Decorreram cinco
minutos. Ao cabo deles, Soares parou em frente de Camilo e ex abrupto
lhe perguntou:
— Jura-me uma coisa?
— O quê?
— Que a fará feliz?
— Já o jurei a mim mesmo; é o meu mais doce dever.
— Já o jurei a mim mesmo; é o meu mais doce dever.
— Seria meu esse dever se a sorte se não houvesse pronunciado contra
mim; não importa; estou disposto a tudo.
— Creia que eu sei avaliar o seu grande coração, disse Camilo
estendendo-lhe a mão.
— Talvez. O que não sabe, o que não conhece, é a tempestade que me
fica na alma, a dor imensa que me há de acompanhar até a morte.
Amores destes vão até a sepultura.
Parou e sacudiu a cabeça, como para expelir uma ideia sinistra.
— Que pensamento é o seu? perguntou Camilo vendo o gesto de Soares.
— Descanse, respondeu este; não tenho projeto nenhum. Resignar-me-ei
à sorte: e se aceito essa candidatura política que me oferece é
unicamente para afogar nela a dor que me abafa o coração.
Não sei se este remédio eleitoral servirá para todos os casos de doença
amorosa. No coração de Soares produziu uma crise salutar, que se
resolveu em favor do doente.
Os leitores adivinham bem que Camilo nada havia dito em favor de
Soares; mas empenhou-se logo nesse sentido, e o pai com ele, e afinal
conseguiu-se que Leandro Soares fosse incluído numa chapa e
apresentado aos eleitores na próxima campanha. Os adversários do
rapaz, sabedores das circunstâncias em que lhe foi oferecida a
candidatura, não deixaram de dizer em todos os tons que ele vendera o
direito de primogenitura por um prato de lentilhas.
Havia já um ano que o filho do comendador estava casado, quando
apareceu na sua fazenda um viajante francês. Levava cartas de
recomendação de um dos seus professores de Paris. Camilo recebeu-o
alegremente e pediu-lhe notícias da França, que ele ainda amava, dizia,
como a sua pátria intelectual. O viajante disse-lhe muitas coisas, e sacou
por fim da mala um maço de jornais.
Era o Figaro.
— O Figaro! exclamou Camilo, lançando-se aos jornais.
Eram atrasados, mas eram parisienses. Lembravam-lhe a vida que ele
tivera durante longos anos, e posto nenhum desejo sentisse de trocar por
ela a vida atual, havia sempre uma natural curiosidade em despertar
recordações de outro tempo.
No quarto ou quinto número que abriu deparou-se-lhe uma notícia que
ele leu com espanto.
Dizia assim:
Uma célebre Leontina Caveau, que se dizia viúva de um tal príncipe
Alexis, súdito do tzar, foi ontem recolhida à prisão. A bela dama (era
bela!) não contente de iludir alguns moços incautos, alapardou-se com
todas as joias de uma sua vizinha, Mlle. B... A roubada queixou-se a
tempo de impedir a fuga da pretendida princesa.
Camilo acabava de ler pela quarta vez esta notícia, quando Isabel entrou
na sala.
— Estás com saudades de Paris? perguntou ela vendo-o tão atento a ler o
jornal francês.
— Não, disse o marido, passando-lhe o braço à roda da cintura; estava
com saudades de ti.
fim
continua na página 36...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (VIIb)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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