quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (VIIb)

A parasita azul

Machado de Assis

Conto

A parasita azul

Capítulo VII(fim)
Precipitam-se os acontecimentos

     Nenhum déspota sonhou nunca mais terríveis suplícios do que os que Leandro Soares engendrou na sua escaldada imaginação. Dois dias e duas noites passou o pobre namorado em conjecturas estéreis. No terceiro dia resolveu ir simplesmente procurar o venturoso rival, lançar-lhe em rosto a sua vilania e assassiná-lo depois.  
     Muniu-se de uma faca e partiu.
     Saía da fazenda o feliz noivo, descuidado da sorte que o esperava. Sua imaginação ideava agora uma vida cheia de bem-aventurança e deleites celestes; a imagem da moça dava a tudo o que o rodeava uma cor poética. Ia todo engolfado nestes devaneios quando viu em frente de si o preterido rival. Esquecera-se dele no meio da sua felicidade; compreendeu o perigo e preparou-se para ele.
     Leandro Soares, fiel ao programa que se havia imposto desfiou um rosário de impropérios que o médico ouviu calado. Quando Soares acabou e ia dar à prática o ponto final sanguinolento, Camilo respondeu:

— Atendi a tudo o que me disse; peço-lhe agora que me ouça. É verdade que vou casar com essa moça; mas também é verdade que ela o não ama. Qual é o nosso crime neste caso? Ora, ao passo que o senhor nutre a meu respeito sentimentos de ódio, eu pensava na sua felicidade.

— Ah! disse Soares com ironia. 

— É verdade. Disse comigo que um homem das suas aptidões não devia estar eternamente dedicado a servir de degrau aos outros; e então, como meu pai quer à força fazer-me deputado provincial, disse-lhe que aceitava o lugar para o dar ao senhor. Meu pai concordou; mas eu tive de vencer resistências políticas e ainda agora trato de quebrar algumas. Um homem que assim procede creio que lhe merece alguma estima, — pelo menos não lhe merece tanto ódio.

     Não creio que a língua humana possua palavras assaz enérgicas para pintar a indignação que se manifestou no rosto de Leandro Soares. O sangue subiu-lhe todo às faces, enquanto os olhos pareciam despedir chispas de fogo. Os lábios trêmulos como que ensaiavam baixinho uma imprecação eloquente contra o feliz rival. Enfim, o pretendente infeliz rompeu nestes termos: 

— A ação que o senhor praticou era já bastante infame; não precisava juntar-lhe o escárnio...  

— O escárnio! interrompeu Camilo.

— Que outro nome darei eu ao que me acaba de dizer? Grande estima, na verdade, é a sua, que depois de me roubar a maior, a única felicidade que eu podia ter, vem oferecer-me uma compensação política!

     Camilo conseguiu explicar que não lhe oferecia nenhuma compensação; pensara naquilo por conhecer as tendências políticas de Soares e julgar que deste modo lhe seria agradável.

— Ao mesmo tempo, concluiu gravemente o noivo, fui levado pela ideia de prestar um serviço à província. Creia que em nenhum caso, ainda que me devesse custar a vida, proporia coisa desvantajosa à província e ao país. Eu cuidava servir a ambos apresentando a sua candidatura, e pode crer que a minha opinião será a de todos. 

— Mas o senhor falou de resistências... disse Soares cravando no adversário um olhar inquisitorial.

— Resistências, não por oposição pessoal, mas por conveniências políticas, explicou Camilo. Que vale isso? Tudo se desfaz com a razão e os verdadeiros princípios do partido que tem a honra de o possuir entre seus membros.  

     Leandro Soares não tirava os olhos de Camilo; nos lábios pairava-lhe agora um sorriso irônico e cheio de ameaças. Contemplou-o ainda alguns instantes sem dizer palavra, até que de novo rompeu o silêncio.

— Que faria o senhor no meu caso? perguntou ele dando ao seu irônico sorriso um ar verdadeiramente lúgubre.

— Eu recusava, respondeu afoitamente Camilo.  

— Ah!

— Sim, recusava, porque não tenho vocação política. Não acontece o mesmo com o senhor, que a tem, e é por assim dizer o apoio do partido em toda esta comarca. 

— Tenho essa convicção, disse Soares com orgulho.

— Não é o único: todos lhe fazem justiça.   

     Soares entrou a passear de um lado para outro. Esvoaçavam-lhe na mente terríveis inspirações, ou a humanidade reclamava alguma moderação no gênero de morte que daria ao rival? Decorreram cinco minutos. Ao cabo deles, Soares parou em frente de Camilo e ex abrupto lhe perguntou:

— Jura-me uma coisa?

— O quê?  

— Que a fará feliz? 

— Já o jurei a mim mesmo; é o meu mais doce dever.

— Seria meu esse dever se a sorte se não houvesse pronunciado contra mim; não importa; estou disposto a tudo.

— Creia que eu sei avaliar o seu grande coração, disse Camilo estendendo-lhe a mão. 

— Talvez. O que não sabe, o que não conhece, é a tempestade que me fica na alma, a dor imensa que me há de acompanhar até a morte. Amores destes vão até a sepultura. 

     Parou e sacudiu a cabeça, como para expelir uma ideia sinistra. 

— Que pensamento é o seu? perguntou Camilo vendo o gesto de Soares. 

— Descanse, respondeu este; não tenho projeto nenhum. Resignar-me-ei à sorte: e se aceito essa candidatura política que me oferece é unicamente para afogar nela a dor que me abafa o coração.

     Não sei se este remédio eleitoral servirá para todos os casos de doença amorosa. No coração de Soares produziu uma crise salutar, que se resolveu em favor do doente.
     Os leitores adivinham bem que Camilo nada havia dito em favor de Soares; mas empenhou-se logo nesse sentido, e o pai com ele, e afinal conseguiu-se que Leandro Soares fosse incluído numa chapa e apresentado aos eleitores na próxima campanha. Os adversários do rapaz, sabedores das circunstâncias em que lhe foi oferecida a candidatura, não deixaram de dizer em todos os tons que ele vendera o direito de primogenitura por um prato de lentilhas.
     Havia já um ano que o filho do comendador estava casado, quando apareceu na sua fazenda um viajante francês. Levava cartas de recomendação de um dos seus professores de Paris. Camilo recebeu-o alegremente e pediu-lhe notícias da França, que ele ainda amava, dizia, como a sua pátria intelectual. O viajante disse-lhe muitas coisas, e sacou por fim da mala um maço de jornais.
     Era o Figaro.

— O Figaro! exclamou Camilo, lançando-se aos jornais.

     Eram atrasados, mas eram parisienses. Lembravam-lhe a vida que ele tivera durante longos anos, e posto nenhum desejo sentisse de trocar por ela a vida atual, havia sempre uma natural curiosidade em despertar recordações de outro tempo.
     No quarto ou quinto número que abriu deparou-se-lhe uma notícia que ele leu com espanto.
     Dizia assim:

Uma célebre Leontina Caveau, que se dizia viúva de um tal príncipe Alexis, súdito do tzar, foi ontem recolhida à prisão. A bela dama (era bela!) não contente de iludir alguns moços incautos, alapardou-se com todas as joias de uma sua vizinha, Mlle. B... A roubada queixou-se a tempo de impedir a fuga da pretendida princesa. 

     Camilo acabava de ler pela quarta vez esta notícia, quando Isabel entrou na sala.

— Estás com saudades de Paris? perguntou ela vendo-o tão atento a ler o jornal francês. 

— Não, disse o marido, passando-lhe o braço à roda da cintura; estava com saudades de ti. 

fim
continua na página 36...
__________________

Leia também:
Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (VIIb)

__________________

Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873

Nenhum comentário:

Postar um comentário