sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Histórias da Meia-Noite: As bodas de Luís Duarte (II)

As bodas de Luís Duarte

Machado de Assis

Conto

As bodas de Luís Duarte

(II)

     Os primeiros foram os Vilelas, família composta de Justiniano Vilela, chefe de seção aposentado, D. Margarida, sua esposa, e D. Augusta, sobrinha de ambos.
     A cabeça de Justiniano Vilela, — se se pode chamar cabeça a uma jaca metida numa gravata de cinco voltas, — era um exemplo da prodigalidade da natureza quando quer fazer cabeças grandes. Afirmavam, porém, algumas pessoas que o talento não correspondia ao tamanho, posto que tivesse corrido algum tempo o boato contrário. Não sei de que talento falavam essas pessoas; e a palavra pode ter várias aplicações. O certo é que um talento teve Justiniano Vilela, foi a escolha da mulher, senhora que, apesar dos seus quarenta e seis anos bem puxados, ainda merecia, no entender de José Lemos, dez minutos de atenção.
     Trajava Justiniano Vilela como é de uso em tais reuniões; e a única coisa verdadeiramente digna de nota eram os seus sapatos ingleses de apertar no peito do pé por meio de cordões. Ora, como o marido de D. Margarida, tinha horror às calças compridas, aconteceu que apenas se sentou deixou patente a alvura de um fino e imaculado par de meias.
     Além do ordenado com que foi aposentado, tinha Justiniano Vilela uma casa e dois molecotes, e com isso ia vivendo menos mal. Não gostava de política; mas tinha opiniões assentadas a respeito dos negócios públicos. Jogava o solo e o gamão todos os dias, alternadamente; gabava as coisas do seu tempo; e tomava rapé com o dedo polegar e o dedo médio.
     Outros convidados foram chegando, mas em pequena quantidade, porque à cerimônia e ao jantar só devia assistir um pequeno número de pessoas íntimas.
     Às quatro horas e meia chegou o padrinho, Dr. Valença, e a madrinha, sua irmã viúva D. Virgínia. José Lemos correu a abraçar o Dr. Valença; mas este que era homem formalista e cerimonioso, repeliu brandamente o amigo, dizendo-lhe ao ouvido que naquele dia toda a gravidade era pouca. Depois, com uma serenidade que só ele possuía, entrou o Dr. Valença e foi cumprimentar a dona da casa e as outras senhoras.
     Era ele homem de seus cinquenta anos, nem gordo nem magro, mas dotado de um largo peito e um largo abdômen que lhe davam maior gravidade ao rosto e às maneiras. O abdome é a expressão mais positiva da gravidade humana; um homem magro tem necessariamente os movimentos rápidos; ao passo que para ser completamente grave precisa ter os movimentos tardos e medidos. Um homem verdadeiramente grave não pode gastar menos de dois minutos em tirar o lenço e assoar-se. O Dr. Valença gastava três quando estava com defluxo e quatro no estado normal. Era um homem gravíssimo.
     Insisto neste ponto porque é a maior prova da inteligência do Dr. Valença. Compreendeu este advogado, logo que saiu da academia, que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser grave; e indagando o que era gravidade pareceu-lhe que não era nem o peso da reflexão, nem a seriedade do espírito, mas unicamente certo mistério do corpo, como lhe chama La Rochefoucauld; o qual mistério, acrescentará o leitor, é como a bandeira dos neutros em tempo de guerra: salva do exame a carga que cobre.
     Podia-se dar uma boa gratificação a quem descobrisse uma ruga na casaca do Dr. Valença. O colete tinha apenas três botões e abria-se até ao pescoço em forma de coração. Um elegante claque completava a toilette do Dr. Valença. Não era ele bonito de feições no sentido afeminado que alguns dão à beleza masculina; mas não deixava de ter certa correção nas linhas do rosto, o qual se cobria de um véu de serenidade que lhe ficava a matar.
     Depois da entrada dos padrinhos, José Lemos perguntou pelo noivo, e o Dr. Valença respondeu que não sabia dele. Eram já cinco horas. Os convidados, que cuidavam ter chegado tarde para a cerimônia, ficaram desagradavelmente surpreendidos com a demora, e Justiniano Vilela confessou ao ouvido da mulher que estava arrependido de não ter comido alguma coisa antes. Era justamente o que estava fazendo o jovem Rodrigo Lemos, desde que percebeu que o jantar viria lá para as sete horas.
     A irmã do Dr. Valença de quem não falei detidamente por ser uma das figuras insignificantes que jamais produziu a raça de Eva, apenas entrou manifestou logo o desejo de ir ver a noiva, e D. Beatriz saiu com ela da sala, deixando plena liberdade ao marido que encetava uma conversação com a interessante esposa do Sr. Vilela.

— Os noivos de hoje não se apressam, disse filosoficamente Justiniano; quando eu me casei fui o primeiro que apareceu em casa da noiva.

     A esta observação, toda filha do estômago implacável do ex-chefe de seção, o Dr. Valença respondeu dizendo:

— Compreendo a demora e a comoção de aparecer diante da noiva. 

     Todos sorriram ouvindo esta defesa do noivo ausente e a conversa tomou certa animação.
     Justamente, no momento em que Vilela discutia com o Dr. Valença as vantagens do tempo antigo sobre o tempo atual, e as moças conversavam entre si do último corte dos vestidos, entrou na sala a noiva, escoltada pela mãe e pela madrinha, vindo logo na retaguarda a interessante Luísa, acompanhada do jovem Antonico.
     Eu não seria narrador exato nem de bom gosto se não dissesse que houve na sala um murmúrio de admiração.
     Carlota estava efetivamente deslumbrante com o seu vestido branco, e a sua grinalda de flores de laranjeira, e o seu finíssimo véu, sem outra joia mais que os seus olhos negros, verdadeiros diamantes da melhor água.
     José Lemos interrompeu a conversa em que estava com a esposa de Justiniano, e contemplou a filha. Foi a noiva apresentada aos convidados, e conduzida para o sofá, onde se sentou entre a madrinha e o padrinho. Este, pondo o claque em pé sobre a perna, e sobre o claque a mão apertada numa luva de três mil e quinhentos, disse à afilhada palavras de louvor que a moça ouviu corando e sorrindo, aliança amável de vaidade e modéstia.
     Ouviram-se passos na escada, e já o Sr. José Lemos esperava ver entrar o futuro genro, quando assomou à porta o grupo dos irmãos Valadares.
     Destes dois irmãos, o mais velho, que se chamava Calisto, era um homem amarelo, nariz aquilino, cabelos castanhos e olhos redondos. Chamava-se o mais moço Eduardo, e só diferençava do irmão na cor, que era vermelha. Eram ambos empregados numa Companhia, e estavam na flor dos quarenta para cima. Outra diferença havia: era que Eduardo cultivava a poesia quando as cifras lho permitiam, ao passo que o irmão era inimigo de tudo o que cheirava a literatura.
     Passava o tempo, e nem o noivo, nem o tenente Porfírio davam sinais de si. O noivo era essencial para o casamento, e o tenente para o jantar. Eram cinco e meia quando apareceu finalmente Luís Duarte. Houve um Gloria in excelsis Deo no interior de todos os convidados.
     Luís Duarte apareceu à porta da sala, e daí mesmo fez uma cortesia geral, cheia de graça e tão cerimoniosa que o padrinho lha invejou. Era um rapaz de vinte e cinco anos, tez mui alva, bigode louro e sem barba nenhuma. Trazia o cabelo apartado no centro da cabeça. Os lábios eram tão rubros que um dos Valadares disse ao ouvido do outro: parece que os tingiu. Em suma, Luís Duarte era uma figura capaz de agradar a uma moça de vinte anos, e eu não teria grande repugnância em chamar-lhe um Adônis, se ele realmente o fosse. Mas não era. Dada a hora, saíram os noivos, os pais e os padrinhos, e foram à igreja, que ficava perto; os outros convidados ficaram em casa, fazendo as honras dela a menina Luísa e o jovem Rodrigo, a quem o pai foi chamar, e que apareceu logo trajado no rigor da moda.

— É um par de pombos, disse a Sra. D. Margarida Vilela, apenas saiu a comitiva.

— É verdade! disseram em coro os dois irmãos Valadares e Justiniano Vilela. 

continua na página 41...
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873

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