sábado, 3 de agosto de 2024

Ensaio - cartão magnético: 02

primeiro dia

baitasar

têm coisas que não mudam, se você não paga o aluguel vai ser despejado, se você é um coitado perdedor e aposta pesado vai acabar engolindo terra, loira ou preta, jovem, bem vestida e gostosa não entra na minha vida, um merda romântico, não tem jeito, nunca vou ter um apartamento de luxo, curto cachorro-quente e muita mostarda apimentada, também não tenho nenhuma robustez carnuda, acho uma chatice ficar levantando aqueles ferros sempre mais pesados, as mangas das minhas camisas são bem largas, as calças também, às vezes parece que não tenho pernas, só as calças

por sorte, ainda não estou trabalhando nem tenho espinhas

tudo para algumas pessoas é serem obedecidas, sentem falta de darem ordens, realmente se excitam, se pudessem chicotear com seus cintos nossas pernas, bunda e coxas, nos deixariam tremendo e chorando; afinal, uma escola sem disciplinador não é respeitada como uma escola que ensina de verdade

um dos disciplinadores – sempre é um homem, pelo menos aqui – fica no portão para nos lembrar que depois que entramos pertencemos às regras da escola, não tem mesa-redonda, polêmica ou contestação, Regras precisam ser obedecidas, é o que nos repetem e repetem e repetem, é isso, aceitamos ou não entramos, ficamos nas ruas – ou pior, seremos aceitos em alguma escola pública da periferia com suas regras militarizadas, como aqui, também controladora das vontades com seus hinos, símbolos da família, deus e pátria, muito cinismo, mas sem os mesmos recursos

com sorte – não gosto muito da ideia de confiar na sorte – encontramos um lugar com aparência agradável, sem gaiolas para nos obrigar a ficar olhando juntos na mesma direção, alguma escola que mais conversa do que manda, acho que elas existem espalhadas por aí, lugares em que parece que a vida é maravilhosa, um milagre de bonita, mágica, pássaros nos galhos verdes, festa e alegria, cantando juntos, tagarelando na sombra das folhas da vida pulsando, sonhando pingos de cores, brincando, acariciando o coração, observando outras caturritas, pombas e pardais pelo pátio, as notas de uma sinfonia barulhenta, e ao entardecer o sol se despedindo, a dança nas árvores cedendo, aguardando a luz plena de outro dia, para mais risos e voos entre suas paredes

por aqui, querem nos ensinar como sermos sensatos, lógicos, responsáveis, práticos, intelectuais e cínicos, nos mostram um mundo clínico, mas pouco confiável, Cuidado ou o mundo engole vocês, estou me lixando para esse mundo estúpido, na maior parte do tempo estamos dormindo, as perguntas não se aprofundam, e o que aprendemos é que não sabemos quem somos, mas logo saberemos, viva o teste vocacional

manos, não sou das bagunça pela bagunça, longe disso, mas confiaria mais – também não é bem assim –, obedeceria sem uma inquietação maior se as regras também fossem discutidas com alunos e alunas, desconfio de qualquer um que se impõe sobre os demais e não aceita conversar sobre suas ideias, suas regras são para serem seguidas sem trocação, sem contestação – a teoria do controle ou descontrole

hoje, o primeiro dia do retorno desta parada selvagem da destruição geral

a catraca não está funcionando

antes dessa fartura de água, existiu o modo seco e quente, conforme íamos chegando, passávamos o cartão magnético na catraca do portão, um cartão magnético comum com foto, nome e código de barras, o registro da nossa presença, tudo muito eficiente e limpo até chegarem as águas

muitos dos que chegavam no carro do papai e da mamãe estão aprendendo a conhecer as ruas do bairro à pé, tudo muito quieto e silencioso

no horário anunciado o portão é fechado – hoje, vamos ter tolerância para atrasos –, os retardatários entram na escola somente pela portaria dos visitantes

o pátio segue cercado por prédios – cheirando à tinta fresca – e árvores tristes e feridas, os reencontros são muitos

lá está o profe Tiago

Ehaaí, Gustavo?

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Ensaio - a dois passos do céu, as pernas tremendo: 03

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