Gabriel Garcia Márquez
(12.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
Ter-se-ia dito que na cansada mansão dos Buendía havia paz e felicidade rotineira para muito tempo, se a intempestiva morte de Amaranta não tivesse promovido um novo escândalo. Foi um acontecimento inesperado. Embora estivesse velha e afastada de todos, ainda parecia firme e reta e com a saúde de ferro que sempre tivera. Ninguém mais soube do seu pensamento, desde a tarde em que recusou definitivamente o Coronel Gerineldo Márquez e se trancou no quarto chorando. Quando saiu, tinha esgotado todas as suas lágrimas. Não foi vista chorando com a subida ao céu de Remedios, a bela, nem com o extermínio dos Aurelianos, nem com a morte do Coronel Aureliano Buendía, que era a pessoa a quem mais amara neste mundo, embora só o pudesse demonstrar quando encontraram o cadáver debaixo do castanheiro. Ela ajudou a levantar o corpo. Vestiu-o com os seus enfeites de guerreiro, barbeou-o, penteou-o, e engomou-lhe o bigode melhor do que ele mesmo o fazia nos seus anos de glória. Ninguém pensou que houvesse amor naquele ato, porque estavam acostumados com a familiaridade de Amaranta para com os ritos da morte. Fernanda se escandalizava com o fato de ela não entender as relações do catolicismo com a vida, mas unicamente as suas relações com a morte, como se não fosse uma religião mas um prospecto de convencionalismos funerários. Amaranta estava perdida por demais no labirinto das suas lembranças para entender aquelas sutilezas apologéticas. Tinha chegado à velhice com todas as suas saudades vivas. Quando escutava as valsas de Pietro Crespi sentia a mesma vontade de chorar que tivera na adolescência, como se o tempo e as suas punições não tivessem servido para nada. Os rolos de música que ela mesma jogara no lixo, com o pretexto de que estavam apodrecendo com a umidade, continuavam girando e percutindo os marteletes na sua memória. Tinha tentado afogá-los na paixão pantanosa que se permitira com o seu sobrinho Aureliano José e tinha tentado se refugiar na proteção serena e viril do Coronel Gerineldo Márquez, mas não conseguira derrotá-los nem com o ato mais desesperado da sua velhice, quando banhava o pequeno José Arcadio, três anos antes de que o mandassem para o seminário, e o acariciava não como faria uma avó com um neto, mas como teria feito uma mulher com um homem, como se contava que faziam as matronas francesas, e como ela quisera fazer com Pietro Crespi, aos doze, aos quatorze anos, quando o vira com a sua malha de balé e a varinha mágica com que marcava o compasso do metrônomo. Ás vezes lhe doía ter deixado com a sua passagem aquele riacho de miséria e às vezes sentia tanta raiva que espetava os dedos nas agulhas, porém mais lhe doía e com mais raiva ficava e mais lhe amargava o fragrante e bichado goiabal de amor que ia arrastando até a morte [1] . Do mesmo jeito como o Coronel Aureliano Buendía pensava na guerra sem o poder evitar, Amaranta pensava em Rebeca. Mas enquanto seu irmão tinha conseguido esterilizar as lembranças, ela só tinha conseguido avivá-las. A única coisa que rogou a Deus durante muitos anos foi que não lhe impingisse o castigo de morrer antes de Rebeca. Cada vez que passava pela sua casa e notava os progressos da destruição, se satisfazia com a ideia de que Deus a estava ouvindo. Uma tarde, quando costurava na varanda, teve a certeza de que estaria sentada nesse lugar, nessa mesma posição e sob essa mesma luz quando lhe trouxessem a notícia da morte de Rebeca. Sentou-se para esperá-la como quem espera uma carta e a verdade é que em certa época arrancava botões para tornar a pregá-los de modo a que a ociosidade não tornasse mais longa e angustiosa a espera. Ninguém se deu conta em casa de que Amaranta tecera naquela época uma linda mortalha para Rebeca. Mais tarde, quando Aureliano Triste contou que a havia visto transformada numa imagem de assombração, com a pele enrugada e umas poucas fibras amareladas no crânio, Amaranta não se surpreendeu, porque o espectro descrito era igual ao que ela imaginava há muito tempo. Tinha decidido restaurar o cadáver de Rebeca, dissimular com parafina os estragos do rosto e fazer-lhe uma peruca com o cabelo dos santos. Fabricaria um cadáver formoso com a mortalha de linho e um ataúde forrado de veludo com camadas de púrpura e o poria à disposição dos vermes em funerais esplêndidos. Elaborou o plano com tanto ódio que estremeceu com a ideia de que agiria da mesma maneira se fosse por amor, mas não se deixou aturdir pela confusão, e sim continuou aperfeiçoando os detalhes tão minuciosamente que chegou a ser mais do que uma especialista, uma virtuose nos ritos da morte. A única coisa que não levou em conta no seu plano macabro foi que, apesar das súplicas a Deus, ela podia morrer primeiro que Rebeca. E assim aconteceu, realmente. No instante final, porém, Amaranta não se sentiu frustrada, mas pelo contrário libertada de toda a amargura, porque a morte lhe concedera o privilégio de se anunciar com vários anos de antecedência. Viu-a num meio-dia ardente, costurando com ela na varanda, pouco depois de Meme ir para o colégio. Reconheceu-a imediatamente e não havia nada de pavoroso na morte porque era uma mulher vestida de azul, com o cabelo comprido, de aspecto um pouco antiquado e uma certa semelhança com Pilar Ternera na época em que ajudava nos serviços de cozinha. Várias vezes Fernanda esteve presente e não a viu, apesar de ser tão real, tão humana, que numa ocasião pediu a Amaranta o favor de enfiar-lhe a linha na agulha. A morte não lhe disse quando ela ia morrer nem se a sua hora estava marcada para antes da de Rebeca, mas sim lhe ordenou que começasse a tecer a sua própria mortalha no próximo seis de abril. Autorizou-a a fazê-la tão complicada e primorosa quanto quisesse, mas tão honradamente como fizera a de Rebeca, e lhe avisou que haveria de morrer sem dor nem medo nem amargura, ao anoitecer do dia em que a terminasse. Tentando perder a maior quantidade de tempo possível, Amaranta encomendou as meadas de linho e ela mesma teceu a fazenda. Fê-lo com tanto cuidado que somente este trabalho levou quatro anos. Em seguida, iniciou o bordado. À medida que se aproximava o fim irremediável, ia compreendendo que só um milagre permitiria que prolongasse o trabalho para além da morte de Rebeca; mas a própria concentração lhe proporcionou a calma que lhe faltava para aceitar a ideia de uma frustração. Foi então que entendeu o círculo vicioso dos peixinhos de ouro do Coronel Aureliano Buendía.
O mundo se reduziu à superfície da sua pele e o interior ficou a salvo
de toda a amargura. Doeu-lhe não ter tido aquela revelação muitos anos
antes, quando ainda seria possível purificar as lembranças e reconstruir o
Universo sob uma luz nova e evocar sem estremecer o cheiro de alfazema de
Pietro Crespi ao entardecer e resgatar Rebeca do seu ambiente de miséria,
não por ódio nem por amor, mas pela compreensão sem limite da solidão. O
ódio que percebeu certa noite nas palavras de Meme não a comoveu porque
a ofendesse, mas porque se sentiu repetida em outra adolescência que
parecia tão limpa como devia ter parecido a sua e que, entretanto, já estava
viciada pelo rancor. Mas na época já era tão profunda a conformidade com o
seu destino que nem sequer a inquietou a certeza de que estavam fechadas
todas as possibilidades de retificação. O seu único objetivo foi terminar a
mortalha. Em vez de retardá-la com preciosismos inúteis, como fizera a
princípio, apressou o trabalho. Uma semana antes, calculou que daria o
último ponto na noite de quatro de fevereiro e, sem revelar o motivo, sugeriu
a Meme que antecipasse um concerto de clavicórdio que tinha previsto para
o dia seguinte, mas ela não lhe fez caso. Amaranta procurou então uma
maneira de se atrasar quarenta e oito horas e até pensou que a morte a
estava satisfazendo, porque na noite de quatro de fevereiro uma tempestade
desarranjou a rede elétrica. Mas no dia seguinte, às oito da manhã, deu o
último ponto no trabalho mais primoroso que mulher alguma terminara
jamais e anunciou sem o menor dramatismo que morreria ao entardecer.
Preveniu não só a família como toda a população, porque Amaranta se
metera na cabeça que poderia reparar toda uma vida de mesquinharia com
um último favor ao mundo, e pensou que nenhum era melhor do que levar
cartas aos mortos.
A notícia de que Amaranta Buendía zarpava ao crepúsculo, levando o
correio da morte, foi divulgada em Macondo antes do meio-dia e, às três da
tarde, já havia na sala um caixote cheio de cartas. Os que não quiseram
escrever deram a Amaranta recados verbais que ela anotou numa caderneta,
com o nome e a data de morte do destinatário.
“Não se preocupe”, tranquilizava os remetentes. “A primeira coisa que
farei ao chegar será perguntar por ele, e então darei o seu recado.” Parecia
uma farsa. Amaranta não revelava nenhuma perturbação, nem o mais leve
sinal de dor e até parecia um pouco rejuvenescida pelo dever cumprido.
Estava tão ereta e esbelta como sempre. Não fossem as maçãs do rosto
endurecidas e a falta de alguns dentes, pareceria muito menos velha do que
era na realidade. Ela mesma ordenou que se pusessem as cartas numa caixa
lacrada e indicou a maneira como deveria ser colocada no túmulo para
preservá-la melhor da umidade. De manhã tinha chamado um carpinteiro
que lhe tomou as medidas para o ataúde, de pé, na sala, como se fossem
para um vestido. Despertou-se-lhe um tal dinamismo nas últimas horas, que
Fernanda pensou que estivesse zombando de todos. Úrsula, com a
experiência de que os Buendía morriam sem doença, não pôs em dúvida que
Amaranta tivesse tido o presságio da morte, mas em todo caso atormentou-a
o temor de que na azáfama das cartas e na ansiedade de que chegassem
logo, os ofuscados remetentes não a fossem enterrar viva. De modo que se
empenhou em esvaziar a casa, brigando aos gritos com os intrusos e, às
quatro da tarde, tinha conseguido. A essa hora, Amaranta acabava de
repartir as suas coisas entre os pobres e só tinha deixado sobre o severo
ataúde de tábuas sem lixar a muda de roupa e os chinelos simples de pelúcia
que haveria de calçar na morte. Não passou por alto essa precaução, ao
recordar que quando o Coronel Aureliano Buendía morreu tinham tido que
comprar um par de sapatos novos, porque só lhe restavam as pantufas que
usava na oficina. Pouco antes das cinco, Aureliano Segundo veio buscar
Meme para o concerto e se surpreendeu de que a casa estivesse preparada
para o funeral. Se alguém parecia vivo a essa hora era a serena Amaranta, a
quem o tempo chegara até para tirar os calos. Aureliano Segundo e Meme se
despediram dela com adeuses de brincadeira e lhe prometeram que no
sábado seguinte dariam uma festa de ressurreição. Atraído pelas vozes
públicas de que Amaranta Buendía estava recebendo cartas para os mortos,
o Padre Antonio Isabel chegou às cinco com o viático e teve que esperar mais
de quinze minutos para que a moribunda saísse do banho. Quando a viu
aparecer com uma camisola de morim e o cabelo solto nas costas, o decrépito
pároco pensou que fosse uma brincadeira e despachou o coroinha. Pensou,
entretanto, em aproveitar a ocasião para confessar Amaranta depois de
quase vinte anos de reticência. Amaranta respondeu, simplesmente, que não
precisava de assistência espiritual de nenhuma espécie porque tinha a
consciência limpa. Fernanda se escandalizou. Sem se importar que a
ouvissem, perguntou em voz alta que pecado terrível teria cometido
Amaranta para preferir uma morte sacrílega à vergonha de uma confissão.
Então Amaranta se deitou e obrigou Úrsula a dar testemunho público da sua
virgindade.
— Que ninguém tenha ilusões — gritou, para que a ouvisse Fernanda.
— Amaranta Buendía se vai desde mundo como veio.
Não voltou a se levantar. Recostada em almofadões, como se na
verdade estivesse doente, teceu as suas longas tranças e enrolou-as sobre as
orelhas, exatamente como a morte lhe dissera que deveria estar no ataúde.
Em seguida pediu a Úrsula um espelho e pela primeira vez em mais de
quarenta anos viu o seu rosto devastado pela idade e pelo martírio e se
surpreendeu do quanto se parecia com a imagem mental que tinha de si
mesma. Úrsula compreendeu pelo silêncio da alcova que tinha começado a
escurecer.
— Despeça-se de Fernanda — suplicou a ela. — Um minuto de
reconciliação tem mais mérito do que toda uma vida de amizade.
— Já não vale a pena — respondeu Amaranta.
Meme não pôde deixar de pensar nela quando acenderam as luzes do
improvisado cenário e começou a segunda parte do programa. Na metade
da peça alguém lhe deu a notícia no ouvido e o ato foi suspenso. Quando
chegou em casa, Aureliano Segundo teve que abrir caminho aos empurrões
por entre a multidão para ver o cadáver da velha donzela, feia e de má cor,
com a venda negra na mão e envolta na mortalha primorosa. Estava exposto
na sala junto ao caixote do correio. Úrsula não voltou a se levantar depois das
nove noites de Amaranta. Santa Sofía de la Piedad tomou conta dela.
Levava-lhe a comida no quarto e a água da bilha para que se lavasse e a
mantinha a par de quanto se passava em Macondo. Aureliano Segundo a
visitava com frequência e lhe levava roupas que ela punha perto da cama,
junto com as coisas mais indispensáveis para o viver diário, de modo que em
pouco tempo tinha construído para si um mundo ao alcance da mão.
Conseguiu despertar um grande afeto na pequena Amaranta Úrsula, que era
idêntica a ela, e a quem ensinou a ler. A sua lucidez, a habilidade para se
bastar a si mesma faziam pensar que estava naturalmente vencida pelo peso
dos cem anos mas, embora fosse evidente que andava mal da vista, ninguém
suspeitou que estivesse completamente cega. Dispunha então de tanto
tempo e de tanto silêncio interior para vigiar a vida da casa que foi ela a
primeira a perceber a calada angústia de Meme.
— Venha cá — disse a ela. — Agora que estamos sozinhas, confesse a
esta pobre velha o que há contigo.
continua página 175...
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Cem Anos de Solidão (12.2) - Ter-se-ia dito
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[1] Tendo sido impossível encontrar uma expressão equivalente em
português ao excelente “achado” literário de Gabriel García Márquez, feito
sobre um emprego regional (Antilhas, Colômbia e El Salvador) do guayaba,
preferimos manter a imagem, acrescida desta nota: a goiaba é uma fruta que
bicha com muita frequência e sem apresentar marcas externas que sirvam
de aviso à pessoa que come. A partir dai, da conotação afetiva de frustração
que se desenvolveu no seu significado, a palavra passou a ser empregada em
sentido figurado, nas regiões da América Hispânica que assinalamos, com a
denotação de mentira, embuste. Gabriel García Márquez vai aproveitar a
expressividade do uso linguístico popular recriando-o analiticamente,
através, principalmente, da adjetivação contrastante fragante y
agusanado — não só o desequilíbrio entre a caracterização eticamente
positiva fragante e a eticamente negativa agusanado entra na conta da
expressividade; também a própria escolha das palavras na série sinonímica
vem a intensificar o desequilíbrio, já que fragrante é um termo que
pertence à tradição do clichê literário (“nobre”, portanto), enquanto que
agusanado é o termo normal da linguagem agrícola sem idealização
estética. A hipérbole guayabal intensifica grotescamente a ironia da
adjetivação. (N. T.)
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