sábado, 31 de agosto de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Na noite anterior

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

     Na noite anterior tinham ido ao cinema, cada um por sua conta e em assentos separados, como iam pelo menos duas vezes por mês desde que o imigrante italiano senhor Galileo Daconte instalou um salão a céu aberto nas ruínas de um convento do século XVII. Viram uma fita baseada num livro que tinha estado na moda o ano anterior, e que o doutor Urbino tinha lido com o coração desolado pela barbárie da guerra: Nada de novo na frente ocidental. Reuniram-se depois no laboratório, e ela o achou disperso e nostálgico, e pensou que era por causa das cenas brutais dos feridos moribundos na lama. Tratando de distraí-lo convidou-o a jogar xadrez, e ele tinha aceito para lhe fazer gosto, mas jogava desatento, com as pedras brancas, é claro, até que descobriu antes dela que ia ser derrotado em quatro jogadas mais, e se rendeu sem glória. O médico compreendeu então que o contendor da partida final tinha sido ela e não o general Jerônimo Argote, como havia suposto. Murmurou assombrado:

— Era uma partida magistral!

     Ela insistiu que o mérito não era seu, e sim que Jeremiah de Saint-Amour, já extraviado pelas brumas da morte, movimentava as peças sem amor. Quando interrompeu a partida, por volta das onze e um quarto, pois já tinha acabado a música dos bailes públicos, ele lhe pediu que o deixasse só. Queria escrever uma carta ao doutor Juvenal Urbino, que considerava o homem mais respeitável que havia conhecido, e além disso um amigo da alma, como gostava de dizer, ainda que a única afinidade de ambos fosse o vício do xadrez entendido como um diálogo da razão e não como uma ciência. Então ele soube que Jeremiah de Saint-Amour tinha chegado ao término da agonia, e que só lhe restava o tempo de vida necessário para escrever a carta. O médico não podia acreditar.

 — Mas então você sabia! — exclamou.

      Não só sabia, confirmou ela, como o havia ajudado a carregar o fardo da agonia com o mesmo amor com que o havia ajudado a descobrir a ventura Porque isso tinham sido seus últimos onze meses: uma cruel agonia.

 — Seu dever era revelá-lo — disse o médico.

 — Eu não podia fazer-lhe essa desfeita — disse ela, escandalizada: — eu o queria com todas as forças.

     O doutor Urbino, que acreditava ter ouvido tudo, jamais ouvira nada igual, e dito de forma tão simples. Olhou-a de frente com os cinco sentidos para gravá-la na memória como era naquele instante: parecia um ídolo fluvial, impávida dentro do vestido preto, com os olhos de cobra e a rosa na orelha. Muito tempo atrás, numa praia solitária do Haiti onde ambos jaziam nus depois do amor, Jeremiah de Saint Amour tinha suspirado sem pensar: "Nunca hei de ser velho." Ela o interpretou como um propósito heroico de lutar contra os estragos do tempo, mas ele foi mais explícito: tinha a determinação irrevogável de acabar com a vida aos sessenta anos.
     De fato os havia completado a 23 de janeiro desse ano, e então tinha marcado como prazo último a véspera de Pentecostes, que era a festa maior da cidade consagrada ao culto do Espírito Santo. Não havia nenhum detalhe da noite anterior que ela não tivesse conhecido de antemão, e falavam disso com frequência, descendo juntos a torrente irreparável dos dias que já nem ele nem ela podiam deter. Jeremiah de Saint-Amour amava a vida com uma paixão sem sentido, amava o mar e o amor, amava seu cachorro e ela, e à medida que a data se aproximava ia sucumbindo ao desespero, como se sua morte não tivesse sido uma decisão própria e sim um destino inexorável.

— Ontem à noite, quando o deixei só, já não era deste mundo — disse ela.

     Tinha querido levar consigo o cão, mas ele o contemplou cochilando perto das muletas e o acariciou com a ponta dos dedos. Disse: "Sinto, mas Mister Woodrow Wilson vai comigo." Pediu a ela que o amarrasse pela pata ao catre enquanto ele escrevia, e ela o fez com um nó falso para que pudesse se soltar. Aquele tinha sido seu único ato de deslealdade, e se justificava pelo desejo de continuar recordando o amo nos olhos hibernais do seu cachorro. Mas o doutor Urbino a interrompeu para contar que o cachorro não tinha se soltado. Ela disse: "Então foi porque não quis." E se alegrou, porque preferia continuar evocando o amante morto como ele lhe pedira na noite anterior, quando interrompeu a carta começada e a olhou pela última vez.

— Lembre de mim como uma rosa — lhe disse.

      Tinha chegado a sua casa pouco depois da meia-noite. Estendeu-se na cama fumando, vestida, acendendo um cigarro na guimba do outro para lhe dar tempo de acabar a carta que ela sabia longa e difícil, e pouco antes das três, quando os cães começaram a uivar, pôs no fogão a água para o café, vestiu-se de luto fechado e cortou no pátio a primeira rosa da madrugada. O doutor Urbino já tinha percebido há algum tempo quanto ia repudiar a lembrança daquela mulher sem redenção, e acreditava conhecer o motivo: só uma pessoa sem princípios podia ser tão indulgente com a dor.
     Ela lhe deu mais argumentos até o final da visita. Não iria ao enterro, pois assim o prometera ao amante, embora o doutor Urbino julgasse entender o contrário num trecho da carta. Não ia derramar uma lágrima, não ia esbanjar o resto de seus anos se cozinhando em fogo lento no caldo de larvas da memória, não ia sepultar-se em vida a costurar sua mortalha dentro de quatro paredes, como era tão bem visto que o fizessem as viúvas nativas. Pensava vender a casa de Jeremiah de Saint-Amour, que desde agora era sua com tudo que continha, tal como disposto na carta, e continuaria vivendo como sempre e sem se queixar de nada neste morredouro de pobres onde tinha sido feliz.
     Aquela frase perseguiu o doutor Juvenal Urbino no caminho de regresso a sua casa: "Este morredouro de pobres." Não era uma qualificação gratuita. Pois a cidade, a sua, continuava a mesma à margem do tempo: a mesma cidade ardente e árida de seus terrores noturnos e dos prazeres solitários da puberdade, onde se oxidavam as flores e se corrompia o sal, e à qual não acontecera nada em quatro séculos, exceto o envelhecer devagar entre louros murchos e pântanos podres. No inverno, uns aguaceiros instantâneos e arrasadores faziam transbordar as latrinas e convertiam as ruas em lodaçais nauseabundos. No verão, um pó invisível, áspero como greda de giz, se enfiava até pelas frinchas mais protegidas da imaginação, alvoroçado por uns ventos loucos que destelhavam casas e carregavam as crianças pelos ares. Aos sábados, o pobrerio mulato abandonava em tumulto os barracos de papelão e latão das margens dos pântanos, com seus bichos de casa e seus pertences de comer e beber, e se apoderava num assalto de júbilo das praias pedregosas do setor colonial. Alguns, entre os mais velhos, ostentavam até poucos anos atrás a marca real dos escravos, gravada a ferro em brasa no peito. Durante o fim da semana dançavam sem clemência, se embebedavam à morte com álcoois de alambiques caseiros, faziam livres amores pelas moitas de icaqueiro, e à meia-noite do domingo desbaratavam seus próprios fandangos com rixas sangrentas de todos contra todos. Era a mesma multidão impetuosa que o resto da semana se infiltrava nas praças e ruelas dos bairros antigos, com tendinhas de tudo que fosse possível comprar e vender, e infundiam à cidade morta um frenesi de feira humana cheirando a peixe frito: uma vida nova.
      A independência do domínio espanhol, e a seguir a abolição da escravatura, precipitaram o estado de decadência honrada em que nasceu e cresceu o doutor Juvenal Urbino. As grandes famílias de outrora afundavam em silêncio dentro de suas fortalezas desguarnecidas. Nos altos e baixos das ruas empedradas que tão eficazes tinham sido em guerras e desembarques de bucaneiros, as ervas se despenhavam dos balcões e abriam gretas mesmo nos muros de cal e cantaria das mansões mais bem conservadas, e o único sinal de vida às duas da tarde eram os lânguidos exercícios de piano na penumbra da sesta. Por dentro, nos frescos quartos de dormir saturados de incenso, as mulheres se guardavam do sol como de um contágio indigno, e mesmo nas missas de madrugada tapavam a cara com a mantilha. Seus amores eram lentos e difíceis, perturbados amiúde por presságios sinistros, e a vida lhes parecia interminável. Ao anoitecer, no instante opressivo da passagem para as sombras, subia dos pântanos um turbilhão de pernilongos carniceiros, e uma branda exalação de merda humana, cálida e triste, revolvia no fundo da alma a certeza da morte.
     Pois a vida própria da cidade colonial, que o jovem Juvenal Urbino costumava idealizar em suas melancolias de Paris, era então uma ilusão da memória. Seu comércio tinha sido o mais próspero do Caribe no século XVIII, sobretudo graças ao privilégio ingrato de ser o maior mercado de escravos africanos nas Américas. Era além disso a residência habitual dos vice-reis do Novo Reino de Granada, que preferiam governar daqui, frente ao oceano do mundo, e não na capital distante e gelada cujo chuvisco de séculos lhes transtornava o sentido da realidade. Várias vezes por ano se concentravam na baía as frotas de galeões carregados com as riquezas de Potosí, de Quito, de Vera-cruz, e a cidade vivia então aqueles que foram seus anos de glória. Na sexta-feira 8 de junho de 1708 às quatro da tarde, o galeão San José, que acabava de zarpar para Cádiz com um carregamento de pedras e metais preciosos avaliados em quinhentos bilhões de pesos da época, foi afundado por uma esquadra inglesa diante da entrada do porto, e dois longos séculos depois ainda não tinha sido resgatado. Aquela fortuna jacente em fundos de corais, com o cadáver do comandante flutuando adernado no posto de mando, costumava ser evocada pelos historiadores como o emblema da cidade afogada nas recordações.
      Do outro lado da baía, no bairro residencial de Mangueira, a casa do doutor Juvenal Urbino se situava em outro tempo. Era grande e fresca, de um andar só, e com um pórtico de colunas dóricas na varanda da frente, da qual se dominava a água parada de miasmas e escombros de naufrágios da baía. O chão estava forrado de pedras axadrezadas, brancas e pretas, da porta de entrada até a cozinha, e isto se atribuíra mais de uma vez à paixão dominante do doutor Urbino, sem lembrar que se tratava de uma fraqueza comum aos mestres-de-obras catalães que tinham construído no princípio deste século aquele bairro de ricos de fresca data. A sala era ampla, de tetos muito altos como a casa inteira, com seis janelas de sacada sobre a rua, e se separava da sala de jantar por uma porta envidraçada, enorme e historiada, com ramagens de vides e cachos de uva e donzelas seduzidas por flautas de faunos numa floresta de bronze. Os móveis de recepção, até o relógio de pêndulo da sala, que mais parecia uma sentinela viva, eram todos originais ingleses de fins do século XIX, e os lustres eram de pingentes de cristal de rocha, e havia em todos os cantos jarrões e floreiros de Sèvres e estatuetas de idílios pagãos em alabastro. Mas aquela coerência europeia se acabava no resto da casa, onde as cadeiras de braços de vime se confundiam com cadeiras de balanço vienenses e tamboretes de couro de artesãos locais. Nos quartos de dormir havia, além das camas, esplêndidas redes de São Jacinto com o nome do dono bordado em letras góticas com fios de seda e franjas coloridas nas varandas. O espaço concebido em suas origens para as ceias de cerimônia, ao lado da sala de jantar, foi aproveitado para uma pequena sala de música onde se realizavam concertos íntimos quando vinham intérpretes notáveis. Os ladrilhos tinham sido cobertos com os tapetes turcos comprados na Exposição Universal de Paris para apurar o silêncio do ambiente, havia uma ortofônica de modelo recente junto a uma estante com discos bem arrumados, e num canto, coberto com um pano de Manila, ficava o piano que o doutor Urbino não tocava há muitos anos. Toda a casa refletia o bom senso e as preocupações de uma mulher com os pés bem plantados na terra.
     No entanto, nenhum outro lugar revelava a solenidade meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor Urbino antes que a velhice o derrubasse. Ali, em redor da escrivaninha de nogueira do pai, e das poltronas de couro almofadado, fez forrar as paredes e até as janelas com estantes envidraçadas, e colocou numa ordem quase demente três mil livros idênticos encadernados em pele de bezerro e com suas iniciais douradas na lombada. Ao contrário dos outros aposentos, que estavam à mercê das comoções e dos maus cheiros provenientes do porto, a biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma abadia. Nascidos e criados debaixo da superstição caribe de abrir portas e janelas para convocar uma fresca que não existia na realidade, o doutor Urbino e sua esposa sentiram a princípio o coração oprimido pela clausura. Mas acabaram convencidos das vantagens do método romano contra o calor, que consistia em manter as casas fechadas no torpor de agosto para que não entrasse o sopro ardente da rua, e abri-las de par em par aos ventos da noite. A sua foi desde então a mais fresca no sol bravo da Mangueira, e era uma ventura fazer a sesta na penumbra dos quartos, e sentar à tarde no pórtico para ver passar os cargueiros de Nova Orleans, pesados e cinzentos, e os navios fluviais de roda de madeira com as luzes acesas ao entardecer, que iam purificando com uma esteira de música o monturo estanque da baía. Era também a mais protegida de dezembro a março, quando os alíseos do norte destroçavam telhados e passavam a noite dando voltas como lobos famintos ao redor da casa em busca de uma fresta para se introduzirem. Ninguém jamais imaginou que um casamento fincado sobre tais alicerces pudesse ter algum motivo para não ser feliz.

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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Na noite anterior
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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