O Cadáver
do Calçacurta – 3ª edição
revisada
Sal grosso
baitasar
Não
sei quem estou enganando, mas não são os mortos daqui. Uma cidade de jazidos e
esquecidos. Acho mais banal e descomplicado manejar com esses mortos do que
suportar os mortos da cidade dos vivos. Para esses mortos-vivos é preciso se mostrar
como um pavão. As aparências que atraem lábios sorridentes e falsos. Na sua cerimônia de
despedidas quero que os seus amigos vejam minha dedicação. Lastimem minha
perda. Elogiem meu devotamento e empenho.
Ainda
não vieram, mas virão.
Tudo
flui.
Tudo
que pertence ao mundo dos mortos está formado por uma matéria que se consome, ao mesmo tempo, está feita com um molde inacabável e imutável, conceitos
imaginários dos espíritos que não podemos tocar. Só sentir. Anjos e demônios
que flutuam em nossas pupilas.
Montar
prontidão e guarda de honra sem receber ordens para essa missão, é um
atrevimento mágico, lembranças românticas dos arquivos secretos da camaradagem.
Ordens cumpridas sem perguntas. Ordens são ordens, o nosso lado é o lado dos
mocinhos. Será que do outro lado sabem quem são os bandidos? Ou só cumprem
ordens? Sem perguntas, em segredo, até que sobre as asas das balas voará o
espírito do soldado rumo à verdadeira morada da alma. E se livrará do cárcere
do corpo, satisfeito com sua vida entre as sombras. Aprendemos que as sombras
são tudo, não vivemos as sombras como sombras
— Nem tudo são sombras, soldado.
Não
me virei, achei um tanto atrasada essa declaração. Continuei olhando pela porta
aberta à escuridão. A morada das sombras, a segurança nacional, tiros, alvos,
comunistas, honra, sacrifícios. O preço da paz é a eterna vigilância nas
sombras. As coisas reais têm medo da escuridão e do desconhecido, não querem
ver a imagem imperfeita dos monstros sombrios sem a maquiagem que pintam nossa
forma e aparição. O criador nega a sua criatura com medo do preço que precisa
pagar
— É isso, senhor... mas o destino de todos
é o armário, nem toda algazarra é indício de claridade.
Os
soldados habitam uma caverna subterrânea, sentados de costas para a entrada da
caverna. Pés e mãos amarrados, só podem olhar em direção à parede da caverna.
Atrás deles, um muro alto e por trás do muro caminham seres que se parecem com
comunistas. Uma fogueira faz com que se desenhe um teatro de sombras. Os
soldados sentados em silêncio, na mesma posição, desde que nasceram, acreditam
que as sombras são o inimigo
— Não esqueça que os soldados
comunistas têm a sua caverna...
Um
dos soldados começa a perguntar-se de onde vêm todas as sombras da parede,
enquanto tenta libertar-se. Finalmente, consegue soltar-se. Sai da caverna.
Depois de esfregar os olhos, se dá conta da beleza de tudo. Pela primeira vez,
vê que as sombras não são tudo. Vê o sol e compreende que é o sol que dá vida a
todas as flores e animais da natureza, da mesma forma que podia ver as sombras
na caverna através da fogueira. E volta à caverna, quer convencer os soldados
que as imagens na parede não são reais, são sombras
— A missão de qualquer soldado no mundo é
localizar, identificar e neutralizar o inimigo.
O
sono eterno. Observando o inimigo. Agentes secretos. Metralhadoras leves.
Operação Peixe I. Arrependimentos arquivados. Nenhum sentido, nenhum destino.
Indícios. Suspeitos. A Cigana escapou. A Transamazônica. Raimundos e Marias
— O senhor conseguia dormir, General?
Voltei
meus olhos de atenção para o defunto executor.
O sujeito atracava e prendia os elementos indicados. Insatisfeitos.
Subversivos
— Quase sempre. Principalmente, depois de
comer piranha com refogado de feijão. — pensei que o jazido no ataúde tinha
abaixado sua prontidão de ataque, tinha melhorado o humor, então continuei o
meu pequeno atrevimento
— E quando o senhor não dormia?
Gente
ruim não dorme esperando oportunidades. Eu não durmo, o senhor não dormiu. Quem
mais não dorme? Os arrependidos dormem? Acho que os perdoados conseguem dormir.
E os fantasmas da Operação Papagaio
— Soldado!
– Sim senhor, General!
— É como bater com a lâmina em ângulo reto
na madeira, a planta devolve o golpe. Na véspera de alguma missão de
aniquilamento dos esquerdistas, o sono sumia assombrado. Batia e voltava. Grandes
filhos de putas! Gente perigosa, chupa-racha. São capazes das coisas mais
terríveis.
O
General foi um homem de abusos, isso está claro, mas exagerou e manchou o
fardamento quando escolheu o lado do golpe, da porrada e dos desaparecimentos
— Chupa-racha! Isso é traição! O pau ia
cantar no seu lombo inconfidente se eu não estivesse no desconforto lastimável
da imobilidade.
Não
digo nada, sei que estou caminhando na beirada do precipício da insubordinação.
Soldado não fala, só escuta. E obedece. É assim, e pronto. Do contrário vira
sacanagem. Anarquia armada. É preciso ter intimidade com a nossa natureza
— Não se luta contra a natureza. Soldado não
obedece por conveniência, é um dever.
— Eu sei, General.
Perco
atenção naquela apostasia da humanidade, olho desconfiado para o imenso jardim
à frente da câmara mortuária. Fixo as vistas, o corpo em prontidão. Afasto-me
alguns passos e lembro-me do comandante, viro-me
— Com licença, General.
— Cuidado, soldado.
Vou
até a porta, às vezes, rastejando, outras, esquivando das cadeiras. Chego
ofegante e suando, a mão na cintura, o dedo retesado no gatilho. Nada. Apenas
sombras nadam no pequeno lago como peixes fora d’água. Os cisnes da madrugada
seguem se perdendo no berço do amanhecimento. Um pio da coruja. Lembro-me do
homem morcego. Os sapos coaxando. As estrelas desmanchando no brilho da antemanhã.
Sumindo. As aranhas e suas teias. Morro de medo das aranhas. Olho para trás,
imagino o General levantando do sono eterno para me repreender
— Chupa-racha, nosso trabalho é arrancar
confissões, mas não confessamos nada. Jamais! Essa história de abrir o bico,
dar com a língua nos dentes, não é para soldado de carreira treinado para
resistir.
Volto
para meu posto, em silêncio, como alguém que não perdeu o controle sobre o manejo da
situação
— O que foi soldado?
— Exagero da vigilância.
Sentei.
Esse capricho da concentração com o cuidado de guarda junto com a solidão do
posto me deixou os nervos na flor da pele. A prudência do vigiamento e o dedo
no gatilho. Precisava relaxar.
Fui
até minha mochila e peguei uma vareta do incenso sal grosso. Sempre tenho o sal
grosso. Com a chama do fósforo comecei a queimar aquela mistura de resina e
bálsamos. Fiquei segurando a vareta, esqueci de colocar na mochila o suporte da
vareta. Procurava uma escora, um sustentáculo. Enfiei a vareta entre os dedos
entrelaçados do General, o arrimo daquela vida de ordens e contraordens
— O chupa-racha tem medo da morte?
Pensei
que aquela não era uma pergunta justa, afinal, entre nós era ele quem conhecia
a obra-prima ignorada da vida, mesmo definhando da glória até a mentira, mas
ainda pleno de audácia e frustração. Da morte, obra capital da vida, fora seu
executor e executado. Um labrador que farejava comunistas de longe, jamais teve
dúvidas
— Não tenho medo, General. Mas não gosto
do cheiro.
Recuei
da minha curiosidade, reconhecia aquele cheiro da carne fria que se desmancha,
perdida da energia que reunia aderência e intensidade
— E você tem certeza que estou morto?
Respirei
fundo o bálsamo que misturava com os cheiros da morte os prazeres da vida. Ele
continuava acreditando no seu futuro depois da morte
— Tenho, senhor. Uma infelicidade do
destino, mas aconteceu.
A
mirra continuava esparramando o bálsamo do alívio. Os cantos da sala dos mortos
respiravam aliviados
— Pois eu não tenho tanta certeza.
Continuo na espreita. Será que morri, mesmo?
Assoprei
as cinzas quentes da resina que caia sobre as mãos do General, ele tinha um
caráter prestativo com a vida, como só aqueles que amam a morte podem ter
— Claro, claro... o senhor morreu. O
General é um morto encaixotado.
Não é bem como o senhor imaginou que seria, mas, diabos o levem, a vida precisa continuar. Outro tempo, menos medo. Talvez um dia, aqueles que habitam a caverna subterrânea descubram que as sombras não são a vida, nem a única coisa que existe. E descubram que as sombras são apenas cópias das coisas reais. E afinal, não matem o soldado que voltou.
Não é bem como o senhor imaginou que seria, mas, diabos o levem, a vida precisa continuar. Outro tempo, menos medo. Talvez um dia, aqueles que habitam a caverna subterrânea descubram que as sombras não são a vida, nem a única coisa que existe. E descubram que as sombras são apenas cópias das coisas reais. E afinal, não matem o soldado que voltou.
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