O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada
Marchando em círculos
baitasar
Estiquei o rabo do olho. Acho que para ser mais educado devo dizer que espiei pelo canto do olho. Espionava o morto sem o morto
saber. Uma pequena ação diplomática. Nesse momento, os vermes comunistas
avançam de todos os lados em direção do General. Eu sou o último obstáculo para
atingirem as carnes do morto. Vermes lobisomens. A agonia do desmanche havia
começado. Não há mais vida, só gases.
Nenhuma reação do morto
- Senhor, me
permite sinceridade?
Nada.
Acho que o meu atrevimento deixou o morto calado. Acabaram-se
os contatos com o mundo exterior. O rosto parece inchado, os olhos parecem de
morto. Fechados. Colados com esparadrapo
- Desembucha,
soldado!
Levei outro susto. Tentou levantar. Suas mãos e uma das
pernas tremiam. Estendeu-me uma das mãos tremelicando. Sempre com dificuldades conseguiu
sentar-se, mas sua perna direita não parava de tremer
- Soldado,
estou pensando em me matar com um tiro.
- Mas o senhor
já morreu.
- Isso não é
morte de verdade para um soldado. Derrame.
Esse é o momento em que se fala antes de pensar, depois vem o
arrependimento; é preciso ser desassombrado
- Senhor, estou
ficando sem jeito por não sentir a sua falta, e perceba que não se passou nenhum
dia do seu passamento. Na verdade, tem muita gente achando que o senhor se
acabou muito tarde. E já há outros dizendo que o mundo ficou melhor. As pessoas
estão festejando.
Pronto, disse. Consegui.
Ele precisava saber.
Tudo ali exalava o cheiro da morte e escombros. A sanha
destrutiva contra os desafetos, a agonia sanguinária das torturas, os suspeitos
de deserção morriam amordaçados. O medo de ser acusado de deserção e cair nas
mãos do tribunal secreto decretava o silêncio.
Não importa o tempo que levei para lhe dizer isso. Não foi
por medo, não tenho medo do General. Foi só uma questão de encontrar as
melhores palavras e colocá-las na boca, no momento certo. Acho que o senhor pode achar isso tudo
um acerto de contas. Dane-se e pense o que quiser. O General nunca se importou
em ser querido, acho que sempre se sentiu como um grande pai severo do povo. Um
pai que ensina pelo castigo, pelo grito das ameaças. Um pai que mata por medo e
cobiça. Um pai que importava mais que continuassem lhe odiando.
Queria ser odiado e temido, nunca fez qualquer esforço para
ser amado. Tinha os filhos diletos que foi adotando pelo caminho. Para esses
deu tudo que pode e quis. Os filhos odiados experimentaram o seu poder de juiz
e algoz. Prendia, torturava e decretava pena de morte.
Acho que o mundo ficou melhor
- Por quanto
tempo, chupa-racha?
Estremeci de medo.
Sabia que ele ainda me mandava. Apertei as mãos com força,
estava com raiva. Caminhava ao lado do ataúde, ia dos pés à cabeça e voltava
aos pés. Até ficar cansado dessa incontinência. Não podia mudar o trajeto ao
meu comando, para circundar a caixa fúnebre com uma volta completa, regressando
sobre minhas pegadas, precisava existir uma contraordem as ordens dadas.
Continuei indo e vindo.
A batida da botina no chão, marchando e voltando. Um, dois,
feijão com arroz; três, quatro, panela no prato; cinco, seis, tudo outra vez.
Sem uma outra ordem não poderia me desobedecer. Nem começar o desfile circular
nas redondezas do ataúde.
Continuei indo e vindo
- Soldado!
Estremeci de novo, acho que jamais vou desacostumar de
estremecer.
Acordou.
Já era tempo.
Quase acredito que o General é um morto-vivo. Parei a marcha
para lá e cá. Eu me parecia com uma vareta verde tremendo
- Sim senhor,
senhor!
Fiz meia-volta, volver! Parei de tremer. Uma estátua de
barro. Sentia orgulho de mim mesmo, minha ignorância, sacrifício e desinteresse
pessoal. A melhor missão é cumprir às ordens.
O General parecia me gozando do ataúde
- Parece que o
saldado perdeu o controle da mão...
Não entendi a sua observação
- O controle da
mão, General?
Ele estava se divertindo, o filho-da-puta estava rindo da
minha cara, mal conseguia evitar as gargalhadas
- Abra as mãos.
Obedeci, claro. Abri as mãos.
Olhei uma, depois a outra.
Lá estava o animalzinho. Morto em minhas mãos. Tornei a
fechar e abrir as mãos, o corpo continuava na palma de uma das mãos. Era
verdade, dei a esmo dois passos
- Soldado,
cuidado com o alinhamento do corpo!
Pensei em me desculpar, afinal a intenção não era matar
- Errei a mão,
General.
- Eu sei, esse
dia chega para todos nessa profissão. Errar é humano.
Continuava com a mão fechada. O animalzinho escondido entre
meus dedos encurvados. Uma mortalha nas mãos. Voltei minha atenção para o
ataúde
- Por que o
senhor não me avisou?
- Avisar do
quê? Por quê? Somos um time que só joga para vencer, noventa milhões em ação,
pra frente...
- Por que,
General? Era uma vida!
- Isso mesmo,
filho. Apenas uma vida; as outras, noventa milhões, estão salvas.
Não sabia o que fazer, nem os delírios do General ajudavam.
Respirava rápido e cortado. Comecei a chorar
- Soldado se
recomponha! Aqui, não tem lugar para maricas!
- Errei a mão,
senhor...
- Porra, chega
dessa merda! Morreu... morreu. Paciência.
- E agora?
O morto saiu do ataúde e parou ao meu lado. O hálito parecia
com o chorume insuportável do lixo. Passou o braço em meus ombros
- Acontece,
filho. Essas coisas acontecem. O que importa é o que você vai fazer.
Fazer isso ou aquilo é uma questão que a etiqueta das
conveniências resolve. Têm coisas que são o que são. Posição de sentido.
Continência. Descansar. Rezar. Gosto tanto destas aparências, elas cativam.
Depois de um tempo passamos a sentir falta da tropa
- O senhor é um
homem de sorte, teve a vida na tropa. Nunca teve doença...
- Que história
é essa de doença, soldado?
As respostas levavam a outras respostas, o fim não era só o
fim era o começo. Ele sabia que os fios desencapados podiam chegar em outras
histórias que só a conversa não alcançava, mas as conversas podiam mostrar
desvios e incoerências para os fios desencapados
- Dessas que se
pega no mato.
Deu um passo à frente e me levou junto
- Era preciso
intimidade com a natureza, mas já fui mordido por bicho.
- Escapou da
malária?
Começamos andar ao redor do ataúde, me conduzia como se eu só
pudesse ser como eu era um cumpridor de ordens
- Essa febre
atacava os velhos e os novos. Não adiantava fumaça nem mosquiteiros. Fiz a
tarefa de muito soldado caído pela febre. Tem um cigarro, filho?
Olho o morto espantado. Nunca vi o General de cigarro na
boca. Perguntei se ia começar essa cisma depois de morto
- Agora não
importa mais. Não se morre duas vezes, né chupa-racha?
Não queria dividir os meus cigarros com um morto que anda. Um
fantasma
- E as suas
ordens proibindo o cigarro?
Paramos de andar em círculos. Ficamos frente a frente. O
chorume continuava insuportável
- Não eram
ordens, filho.
Todos sabiam dos riscos por desobedecerem suas vontades e não
vontades. Até mesmo as ordens que jamais existiram precisavam ser cumpridas.
Ordens são ordens.
A linha de comando não podia ser quebrada. Soldados não são
bonecos, somos homens que cumprimos ordens, homens que não fazem perguntas.
Soldado obedecendo ordens deve se sentir como um peixe na intimidade das águas,
ágil e decidido. Um soldado determinado.
Fazer o certo ou o errado é uma ordem que você recebe de si
mesmo. E a ordem mais importante que um soldado aprende obedecer é obedecer
suas ordens. Sentido. Continência. Descansar. Jurar. Gosto destas ordens. As aparências.
Conheço pessoas boas que jamais farão coisas ruins, pelo menos, que se possa
descobrir. Lutam o tempo todo consigo mesmas, não são pervertidas como esses
comunistas.
Não gosto do assunto comunista. É conversa perigosa. As
paredes têm ouvidos e olhos. Mas de tudo que escutei, um pouco ali, outro tanto
aqui, o General rosnava que era o mato o único impedimento de arrancar todos os comunistas da
face da terra. Não tinham firmeza, eram desorganizados, sem preparação nas
armas. O armamento dos comunistas não tinha munição. Essa gente tinha sinais de
fanatismo. Ficavam com os dentes estragados para se misturarem com os nativos
da floresta.
Foi preciso enfrentar esses fanáticos
- Faltou para
esses filhos-da-puta o filho-da-puta argentino. Esse morreu e não deixou
saudade, soldado. Logo, logo, cai no esquecimento.
Na mata os dentes estragados não podiam mais morder. Contam
que a história do Curupira vermelho foi a mais complicada
- Nem tanto,
nem tanto.
Mas até o General descobrir que o danado usava os chinelos ao
contrário para despistar, o senhor ia para um lado e o danado ia para o outro
- O vermelho
Curupira deu trabalho, mas o serviço da limpeza foi feito. Hoje, os dentes
estragados são o que são: relaxamento.
- Tudo passa,
General.
- Filho, isso
ainda não acabou... não acaba nunca. O preço é a eterna vigilância.
- Eu sei,
General.
Deu uns passos atrás e retornou na sua acomodação. Eu segui
minha vigília ao redor do ataúde. Agora, marchava em círculos.
O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 05 - Sal grosso
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