domingo, 25 de maio de 2014

06 - General Calçacurta

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada
Marchando em círculos
baitasar

Estiquei o rabo do olho. Acho que para ser mais educado devo dizer que espiei pelo canto do olho. Espionava o morto sem o morto saber. Uma pequena ação diplomática. Nesse momento, os vermes comunistas avançam de todos os lados em direção do General. Eu sou o último obstáculo para atingirem as carnes do morto. Vermes lobisomens. A agonia do desmanche havia começado. Não há mais vida, só gases.

Nenhuma reação do morto

-          Senhor, me permite sinceridade?

Nada.

Acho que o meu atrevimento deixou o morto calado. Acabaram-se os contatos com o mundo exterior. O rosto parece inchado, os olhos parecem de morto. Fechados. Colados com esparadrapo

-          Desembucha, soldado!

Levei outro susto. Tentou levantar. Suas mãos e uma das pernas tremiam. Estendeu-me uma das mãos tremelicando. Sempre com dificuldades conseguiu sentar-se, mas sua perna direita não parava de tremer
-          Soldado, estou pensando em me matar com um tiro.
-          Mas o senhor já morreu.
-          Isso não é morte de verdade para um soldado. Derrame.
Esse é o momento em que se fala antes de pensar, depois vem o arrependimento; é preciso ser desassombrado
-          Senhor, estou ficando sem jeito por não sentir a sua falta, e perceba que não se passou nenhum dia do seu passamento. Na verdade, tem muita gente achando que o senhor se acabou muito tarde. E já há outros dizendo que o mundo ficou melhor. As pessoas estão festejando.
Pronto, disse. Consegui.
Ele precisava saber.
Tudo ali exalava o cheiro da morte e escombros. A sanha destrutiva contra os desafetos, a agonia sanguinária das torturas, os suspeitos de deserção morriam amordaçados. O medo de ser acusado de deserção e cair nas mãos do tribunal secreto decretava o silêncio.
Não importa o tempo que levei para lhe dizer isso. Não foi por medo, não tenho medo do General. Foi só uma questão de encontrar as melhores palavras e colocá-las na boca, no momento certo. Acho que o senhor pode achar isso tudo um acerto de contas. Dane-se e pense o que quiser. O General nunca se importou em ser querido, acho que sempre se sentiu como um grande pai severo do povo. Um pai que ensina pelo castigo, pelo grito das ameaças. Um pai que mata por medo e cobiça. Um pai que importava mais que continuassem lhe odiando.
Queria ser odiado e temido, nunca fez qualquer esforço para ser amado. Tinha os filhos diletos que foi adotando pelo caminho. Para esses deu tudo que pode e quis. Os filhos odiados experimentaram o seu poder de juiz e algoz. Prendia, torturava e decretava pena de morte.
Acho que o mundo ficou melhor
-          Por quanto tempo, chupa-racha?
Estremeci de medo.
Sabia que ele ainda me mandava. Apertei as mãos com força, estava com raiva. Caminhava ao lado do ataúde, ia dos pés à cabeça e voltava aos pés. Até ficar cansado dessa incontinência. Não podia mudar o trajeto ao meu comando, para circundar a caixa fúnebre com uma volta completa, regressando sobre minhas pegadas, precisava existir uma contraordem as ordens dadas.
Continuei indo e vindo.
A batida da botina no chão, marchando e voltando. Um, dois, feijão com arroz; três, quatro, panela no prato; cinco, seis, tudo outra vez. Sem uma outra ordem não poderia me desobedecer. Nem começar o desfile circular nas redondezas do ataúde.
Continuei indo e vindo
-          Soldado!
Estremeci de novo, acho que jamais vou desacostumar de estremecer.
Acordou.
Já era tempo.
Quase acredito que o General é um morto-vivo. Parei a marcha para lá e cá. Eu me parecia com uma vareta verde tremendo
-          Sim senhor, senhor!
Fiz meia-volta, volver! Parei de tremer. Uma estátua de barro. Sentia orgulho de mim mesmo, minha ignorância, sacrifício e desinteresse pessoal. A melhor missão é cumprir às ordens.
O General parecia me gozando do ataúde
-          Parece que o saldado perdeu o controle da mão...
Não entendi a sua observação
-          O controle da mão, General?
Ele estava se divertindo, o filho-da-puta estava rindo da minha cara, mal conseguia evitar as gargalhadas
-          Abra as mãos.
Obedeci, claro. Abri as mãos.
Olhei uma, depois a outra.
Lá estava o animalzinho. Morto em minhas mãos. Tornei a fechar e abrir as mãos, o corpo continuava na palma de uma das mãos. Era verdade, dei a esmo dois passos
-          Soldado, cuidado com o alinhamento do corpo!
Pensei em me desculpar, afinal a intenção não era matar
-          Errei a mão, General.
-          Eu sei, esse dia chega para todos nessa profissão. Errar é humano.
Continuava com a mão fechada. O animalzinho escondido entre meus dedos encurvados. Uma mortalha nas mãos. Voltei minha atenção para o ataúde
-          Por que o senhor não me avisou?
-          Avisar do quê? Por quê? Somos um time que só joga para vencer, noventa milhões em ação, pra frente...
-          Por que, General? Era uma vida!
-          Isso mesmo, filho. Apenas uma vida; as outras, noventa milhões, estão salvas.
Não sabia o que fazer, nem os delírios do General ajudavam. Respirava rápido e cortado. Comecei a chorar
-          Soldado se recomponha! Aqui, não tem lugar para maricas!
-          Errei a mão, senhor...
-          Porra, chega dessa merda! Morreu... morreu. Paciência.
-          E agora?
O morto saiu do ataúde e parou ao meu lado. O hálito parecia com o chorume  insuportável do lixo. Passou o braço em meus ombros
-          Acontece, filho. Essas coisas acontecem. O que importa é o que você vai fazer.
Fazer isso ou aquilo é uma questão que a etiqueta das conveniências resolve. Têm coisas que são o que são. Posição de sentido. Continência. Descansar. Rezar. Gosto tanto destas aparências, elas cativam. Depois de um tempo passamos a sentir falta da tropa
-          O senhor é um homem de sorte, teve a vida na tropa. Nunca teve doença...
-          Que história é essa de doença, soldado?
As respostas levavam a outras respostas, o fim não era só o fim era o começo. Ele sabia que os fios desencapados podiam chegar em outras histórias que só a conversa não alcançava, mas as conversas podiam mostrar desvios e incoerências para os fios desencapados
-          Dessas que se pega no mato.
Deu um passo à frente e me levou junto
-          Era preciso intimidade com a natureza, mas já fui mordido por bicho.
-          Escapou da malária?
Começamos andar ao redor do ataúde, me conduzia como se eu só pudesse ser como eu era um cumpridor de ordens
-          Essa febre atacava os velhos e os novos. Não adiantava fumaça nem mosquiteiros. Fiz a tarefa de muito soldado caído pela febre. Tem um cigarro, filho?
Olho o morto espantado. Nunca vi o General de cigarro na boca. Perguntei se ia começar essa cisma depois de morto
-          Agora não importa mais. Não se morre duas vezes, né chupa-racha?
Não queria dividir os meus cigarros com um morto que anda. Um fantasma
-          E as suas ordens proibindo o cigarro?
Paramos de andar em círculos. Ficamos frente a frente. O chorume continuava insuportável
-          Não eram ordens, filho.
Todos sabiam dos riscos por desobedecerem suas vontades e não vontades. Até mesmo as ordens que jamais existiram precisavam ser cumpridas.
Ordens são ordens.
A linha de comando não podia ser quebrada. Soldados não são bonecos, somos homens que cumprimos ordens, homens que não fazem perguntas. Soldado obedecendo ordens deve se sentir como um peixe na intimidade das águas, ágil e decidido. Um soldado determinado.
Fazer o certo ou o errado é uma ordem que você recebe de si mesmo. E a ordem mais importante que um soldado aprende obedecer é obedecer suas ordens. Sentido. Continência. Descansar. Jurar. Gosto destas ordens. As aparências. Conheço pessoas boas que jamais farão coisas ruins, pelo menos, que se possa descobrir. Lutam o tempo todo consigo mesmas, não são pervertidas como esses comunistas.
Não gosto do assunto comunista. É conversa perigosa. As paredes têm ouvidos e olhos. Mas de tudo que escutei, um pouco ali, outro tanto aqui, o General rosnava que era o mato o único impedimento de arrancar todos os comunistas da face da terra. Não tinham firmeza, eram desorganizados, sem preparação nas armas. O armamento dos comunistas não tinha munição. Essa gente tinha sinais de fanatismo. Ficavam com os dentes estragados para se misturarem com os nativos da floresta.
Foi preciso enfrentar esses fanáticos
-          Faltou para esses filhos-da-puta o filho-da-puta argentino. Esse morreu e não deixou saudade, soldado. Logo, logo, cai no esquecimento.
Na mata os dentes estragados não podiam mais morder. Contam que a história do Curupira vermelho foi a mais complicada
-          Nem tanto, nem tanto.
Mas até o General descobrir que o danado usava os chinelos ao contrário para despistar, o senhor ia para um lado e o danado ia para o outro
-          O vermelho Curupira deu trabalho, mas o serviço da limpeza foi feito. Hoje, os dentes estragados são o que são: relaxamento.
-          Tudo passa, General.
-          Filho, isso ainda não acabou... não acaba nunca. O preço é a eterna vigilância.
-          Eu sei, General.
Deu uns passos atrás e retornou na sua acomodação. Eu segui minha vigília ao redor do ataúde. Agora, marchava em círculos.

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Leia também:
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