quinta-feira, 29 de maio de 2014

Uma foguista do diabo

Ensaio 3A - 2ª edição

baitasar

Foram cem anos de bajuladores cortesãos, galanteios, baldas e cismas, paixões e caprichos, ordens e contraordens. Uma vida breve, mas intensa. Cumpri meus compromissos com as meninas. Nunca deixei minhas flores do mal murcharem por secura da atenção. É bem do jeito que o General explicava entre os rolos de fumaça do seu charuto cubano e tragos da nossa cachaça
—      Esse é o nosso segredo, certo meninas?
Os amigos e os inimigos nunca souberam do costume do padrinho com a bebida e o fumo. O que era feito e dito não poderia ser quebrado pela indiscrição. E não bastava ter a etiqueta de gostosa, era preciso bom senso e ética. Assustou, neném? A fama se faz para o bem e para o mal, depois de feita não tem desfeita
—      Os segredos do padrinho em confiança na casa, daqui não saem.

O padrinho tinha vez que chegava e se ia direto para o quarto. Com a foguista. Chegava com o sorriso da travessura já pensada e pronta. Checava desimpedido. Outras, ele ficava com a conversa das meninas, saboreando os cubanos, a cachaça pura guardada para ele. Uma encomenda especial guardada para um vigilante especial da casa. E a vigília do padrinho se provou necessária
—      La Piedra não é dona da casa, por acaso. Conhece o dito que serve para os casos de controle, como o seu e o meu. É o olho da dona que engorda o negócio.
—      Não tem coisa mais certa que tenha sido dita, General.
—      Por favor, aqui não tenho posto militar.
—      Desculpe, padrinho. Esqueci.
Os homens podem ficar desapiedados e bestializados querendo as meninas como suas coisinhas. Ficava na decisão de cada menina o que poderia suportar. Costurávamos nossos retalhos de fantasias para suavizar nossas vidas e humanizar homens sem ouvidos para fábulas. As conversas com as meninas foram as melhores partes da vida de trabalho na casa. O padrinho tinha bom gosto com os presentes e jeito no trato com as meninas. Na casa não tinha costume de maldades. Coisas que se ouviam nos cochichos das ruas. Em todo caso, o padrinho foi a segurança das meninas por um longo tempo. Bons tempos foram aqueles. Pena que o tempo já passado não volta, dá uma saudade do padrinho conversando com as meninas, fumando e bebendo.
Madrugadas com chuva
—      Está chovendo, padrinho.
—      A chuva me enche de vontades na cama.
No caso de querer fazer filho, se fosse o caso, escolheria o tempo das chuvas. É quando plantamos maíz en la Montaña. Um ano com chuva boa e as plantações crescem bem. Os homens têm trabajo y la plata. E comida na mesa.
De qualquer jeito, não foram muitas as vezes que desejei fazer algum filho. Houve um tempo que esperava o homem extraordinário, incomum. Desperdicei-me esperando. Deveria ter experimentado mais. Depois que os filhos da casa nasceram essa vontade sumiu. Já tinha os meus filhos.
Vocês
—      E o meu cigarro?
Faz um bom tempo que a casa perdeu o seu comércio habitual e refinado. Depois do sumiço do padrinho, os movimentos na casa não foram mais os mesmos. Sentimos a falta dele. O homem sabia controlar o descontrole. E Olalla sabia desobedecer os desregramentos do padrinho. A casa entrou em decadência. Os bons costumes da casa perderam o jeito exclusivo. As oportunidades deixaram de ser discretas e reservadas. Qualquer puta cansada das ruas consegue abrir sua casa com aparência de seriedade
—      Mamãe, por que o padrinho se afastou da casa?
Perguntas, perguntas e mais perguntas, não quero responder, não preciso responder, me esqueçam. Mas esse moço com esse cabelo vermelho me lembra alguma coisa ou alguém, se parece com um foguista
—      Não sei, moço. Mas deve ter tido suas razões. — pronto, respondi.
Mas o moço não ficou satisfeito. Não sei não é resposta. Eu sei. Estou tão cansada. Não sei as horas nem os dias. O meu tempo não tem mais futuro. Acabei, aqui. Eu sabia as razões dos desvios no caminho. Nunca esqueci o padrinho. Mas tem importância que fica desimportada na poeira do chão. E quando chega o tempo de manter conversa com os espíritos antigos é sem importância a belezoca do corpo.
Os sete filhos criados.
Sete.
E não é conta de mentirosa. Nenhum a menos ou a mais.
Cumprida da vida na hora de partir.
—      Trabalhem, meninas. La Piedra cuida de tudo. — cada filho um pai, uma mãe. Mães diferentes. Pais desconhecidos. Eu, a mãe de todos. Imaginando vidas. Sempre cuidei das minhas meninas. Nunca deixei de cuidar o interesse das interessadas sobre a solução do embaraço — O que a menina quer fazer?
Não achava justo tomar decisão que não era minha, nem fazer fingimento que o embaraço de barriga não tinha influência nos ânimos da freguesia
—      Quero tirar... — sentia o aperto do molestamento, mas a decisão não requeria consideração. Cuidava do negócio como meu negócio. As meninas cuidavam do corpo como seu corpo.
Cada menina com a sua valentia
—      O que a menina quer fazer?
—      Quero deixar... — os olhos me alegravam. Oferecia a criação da casa.
A mocinha sementeira Olalla não disse que sim nem que não. Tinha tempo para muitas conversas até decidir os cuidados que ia ter. O tempo tinha futuro – Tudo bem, minha filha. Enquanto a sementeira não arredonda, o feitio é o mesmo.
Tem tempo
—      E quando crescer? — a maior belezura do tempo é o futuro. Dá ânimo e cria à vontade. Parece que tem tempo para todo futuro e tem futuro para todo tempo. Até que chega o dia que o tempo tem mais passado que futuro. E a inquietação, antes um ligeiro desconforto, apressa as urgências. Não haveria mais disfarces para esconder a menina cheia de vida.
Depois da brotação, outro dia, outra escolha, partir com o filho ou deixar na criação da casa
—      Vai doer? — dei um passo na direção da menina Olalla, tantas meninas assustadas. Peguei suas mãos entre as minhas, podia sentir sua respiração cismada.
La Piedra envelhecia
—      Para sempre, menina... para siempre.
Cuidava dos preparativos, não descuidava dos cuidados. El tiempo passa de um jeito ou de outro, era preciso se aprontar. Isso não é ensinado, vem do nascimento de cada dia. A urgência vem de saber da vontade do tempo em passar, seguir em frente. Nunca vi desânimo no tempo nem percebi diminuir sua vontade em devorar a atualidade. Não para. Não cansa. Devasta as putas mais e antes que as esposas. Desgraçadas das putas e das esposas que envelhecem, descarregam do corpo o futuro, ficam carregadas com as cicatrizes do tempo no passado
—      Coitadas das mulheres.
—      Por que, General?
—      O tempo esfria tudo.
Os tempos do General foram quentes, mas também esfriaram. As quenturas não eram do ar mormacento, afinal os trabalhos já quase chegavam às horas da friagem na alvorada
—      A menina está pronta? — a menina Olalla fez respiro profundo, um sorriso tristonho e saiu calada.
O ventilador quebrado.
Outros tempos e não ficaria quebrado.
No quarto, a foguista aproveitava a ventoinha parada, fazia escapar do padrinho o suor grosso e quente dos eu corpo de macho. Preparava o padrinho para o futuro. Adubava. Adiava. Amanhava. E manipulava. Fazia também trabalhos da educação e provocação do padrinho. Tudo premeditado.
Até que chegava o futuro e o padrinho suplicava
—      Me come... me come...

Ela comia.

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Leia também:
Ensaio 02A - 2ªed / O que não é ensinado

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