casarão canela preta
Neinho, o preto Josino foi enforquilhado
Ensaio 10cp – 2ª edição 1ª reimpressão
baitasar
nada além do silêncio
eu ali, no banco do cobrador, em pé. todo esticadinho para agarrar o corrimão aéreo, sentindo câimbras nos dedinhos dos pés, um animador de torcidas inoperante. até que a turba me tirou daquele sono a esmo, Enforca!
larguei o corrimão aéreo e levei minhas mãos ao pescoço. não entendia o que havia acontecido. tudo isso porque eu fiz a cantoria do café? jamais houve reação tão contrária aquele cantarejar do café haiti, haiti, haiti, Passa a corda no negro!
sentei no banco e calei minha boca, achei melhor esconder o meu canto. não era tempo de cantar, que pena. sempre deveria ser tempo de cantar, que pena, Safado! Negro desvergonhado, Roubando da Santa!
santa? mas que santa? continuei assustado
queriam uma cova. um buraco. um corpo para pendurar e queimar. carne para malhar o couro. entreter suas vidas empoeiradas pelo senso da justiça vingativa que mói e atormenta. corta os pedaços da carne e mastiga, Vamos nos fartar com o sangue do negro!
queria uma caverna bem escura. um esconderijo daqueles gritos. a vergonha do desdém. o cinismo dos suspiros. a indiferença. a surdez. lágrimas de crocodilo. as balas quebra-queixo, puxa-puxa, as crianças correndo. as árvores da praça e os enforcados. sem nome. sem história. sem memória. a mãe nervosa perdida do filho, enraivecida porque estava perdendo a melhor parte, o barulho horrível do pescoço quebrando. a menina com a fita rosa no cabelo, toda perfumada de anjo. o preto lá no alto. o pescoço quebrado e aquele estalo injusto, desumano. gente decente batendo palmas, gritando, atirando pedras. cuspindo. o preto todo esticado com as calças de linho grosso, áspero e sujo, molhadas. boiando pendurado
nenhum dos passageiros deu qualquer importância às boas-vindas do café haiti. olhei para os dois lados, Davó... chamei uma, duas, três vezes, Davó... outra vez e outra, Calma, neinho.
reconhecia a voz, mas não via o corpo, ou melhor, o espírito. até que subiu na porta da frente, Onde davó andava?
não consegui tirar o nervosismo da voz. depois que o enervamento me desassossega perco o cuidado com as palavras, quase sempre fico arrependido do ponto-de-vista que vou libertando da garganta, Donde ocê acha qui avó andava?
a situação requeria seriedade, mas davó só queria brincadeira, E lá vou eu saber? Na terra dos sem-terra?
ela queria ter mais divertimento que os vivos do 69
No embaciamento nuvioso das altura.
depois de se demorar para atender os meus chamamentos, convoquei avóinha mais vezes que era o meu costume, ela fez pouco das minhas reclamações. resmungava que nem foi tanto assim, Davó escutava?
Claro qui iô escutava.
quase desabei no choro sentado na cadeirinha, meu trono de bebê, enquanto avóinha segurava a colherinha da papinha e brincava de aviãozinho. queria ensinar davó que uma colherinha não poderia ser um aviãozinho, aquilo era apenas uma invencionice dos seus delírios de mãinhavó, Então viu meu papelão?
Iô vi.
inventei cara de brabeza que vinha da vergonha e levantei, E Davó deixou... quando pode e deve meter sua colher de bisbilhotice davó escolhe ficar só olhando, fazendo cara preta de paisagem. isso não é justo.
ela parou no corredor, fez cara séria, pronta para soltar um aconselhamento, Ocê precisa aprendê ri de ocê mesmo, desregulá a seriedade e deixá a alegria ficá contente, deu um pulo do chão de lata até a mesa da trocação das passagens, olhou bem pertinho das vistas, antes de continuar, Neinho, senta aí, já tava sentado, mas parecia que era outra coisa que queria dizer, isso não é jeito de atendê os viajante e vendê os bilhete. E mais não seja, o guri tá escutando ruim, a avó não aconsêiô ocê cantá. Isso foi bobice...
sentei no meu lugar de neto que escuta, Quis ser gentil.
ela balançou a mão direita no ar, parecia nervosa. depois, abaixou a mão até a perna. continuava de cócoras no meu balcão de negócios. senti vontade de aproximar minha mão do seu rosto de espírito, Neinho, mifiuneto amado. Num disse pra ocê cantá, qui bobice essa cantoria do café. Bastava ocê escutá as pessoa sem brabeza, ajudá levá todas pra casa.
não consegui abrir a boca e retrucar avóinha. ela fez sinal com os olhos para sossegar o pinto, Fica sentado e óia lá fora.
obedeci, virei a cabeça que continuava agarrada no pescoço. desvirei para o outro lado, E daí?
ela pulou do balcão e ficou pendurada na janela, atrás do meu banco, por fora, agarrada em nada, Uqui ocê vê?
pulou de volta no balcão das passagens, Nada de mais... a rua, as pessoas, as casas... avóinha voando como um anjo preto sem asas.
o anjo da avóinha sorriu, Neinho, ocê precisa esforçá as vista e mostrá prusóio uqui ocê vê... carece fornicá com curiosidade.
desgrudei da davó. o gado subindo no rocinante, organizado em fila. agonizando. o joão torto alargado sobre a sua janela, toda aberta, conversando animado com o chico baiana, O que foi isso, Chico?
o baiana ergueu os ombros, repuxou um dos lados da boca, subiu as duas mãos espantadas num aviso de desistência, A caixa quebrô, Torto. Caminhão velho é assim mesmo. A quebradeira não é maior, graças aos cuidados do Seu Cristóvão, mais a boa vontade do Nosso Sinhozinho Cristinho com a ajuda do dono dos caminhos, Ogum. O senhor do ferro.
Tá certo, Baiana... te cuida.
o joão enfiou o braço pra fora da janela, espichou até cumprimentar o chico num aperto de mão. depois que acomodou o corpo no seu assento, virou-se para o meu lado, reuniu o ar dos pulmões no gargalo do pescoço e deixou escapar um ar tristonho que veio batendo a esmo nos vidros e paredes, Tudo certo, Batatinha?
não respondi de imediato, esperei que a tosse seca, daquela conversa de palavras descontinuadas, ficasse no controle da sua vontade. tossiu uma, duas, três vezes, estilhaçando a esmo a sua incontinência. levou a mão à boca. tossiu mais e mais, até que um dos viajantes gritou do fundo do caminhão, O homê precisa de um copo com água.
Obrigado, não precisa. Já vai passar.
viajo sentado de frente para a roleta, as costas na janela, um dos lados para a frente do 69, o da direita; o lado da esquerda para o fundo do carro, Abre atrás, João!
um homem grandão estava parado na calçada, em frente a porta do fundo. o joão abriu a porta e grandão subiu. o rocinante continuava parado, esperava o carregamento de toda aquela gente
Psiu... — me fiz de embaçado, psiu...
como é que se faz de conta que um espírito não existe? avóinha parece com jeito de quem reclama da solidão gelada e pede as meias de lã, O que foi, davó?
Óia pra cá.
Não posso.
não ia poder resistir muito mais, sentia o coração fraquejar pela vontade de olhar com avóinha, Davó precisa entender que eu tô de trabalho, não posso ficar de conversinha.
Num qué oiá, tá bem, num óia. Mais vai escutá e num vê.
Não vou ver o quê, avóinha?
As árvore... daqui fora.
eu tava sendo deseducado com avóinha, se dava mais atenção ia perceber que ela queria deixar recado de ensinamento. tem vez que não adianta receber mensagem do esclarecimento. eu tinha escolhido não escutar, mas ela tava decidida me dizer o que já tinha decidido contar, Essa não é hora de colocar as vistas da paisagem, se avóinha não caducou, vai saber que o seu neinho tá no trabalho.
continuava pendurada na janela, Bestice, é só querê e fazê a hora.
Avóinha vai pegar resfriado, aí fora.
escutei o assopro da avóinha que me fez frio. depois, um arrepio me deu estremecimento. a cabeça da avóinha tava flutuando fora do lugar certo. o corpo da avóinha ficou lá fora, a cabeça foi que entrou e tava no lado a lado com a minha, Miúdo, não perde o jeito de oiá e sabê o qui vê.
virei a cabeça pro outro lado. não podia ver avóinha só com a cabeça nem queria avistar o corpo sem a parte da cabeça. tem coisa que os olhos não deviam olhar para não guardar a memória, Avóinha pode fazer o favor de fincar a cabeça de volta no corpo?
Psiu...
virei no rumo que avóinha chamava, não podia continuar embaçando a teimosia da avó morta, Uqui ocê vê?
— Avóinha sem a cabeça, as árvores, as pessoas...
E uqui mais?
balançava a cabeça enfiada e desfiada do corpo, não podia ter atenção lá fora com tanto movimento da avóinha. fiz mais reclamação que de nada adiantou, E o que mais?
balançava a cabeça enfiada e desfiada do corpo, não podia dar atenção lá fora com tanto movimento de exibição da avóinha. fiz outra reclamação que de nada adiantou, E o que mais?
mais nada mais nada, tinha vontade de dizer. as pessoas, as árvores, as crianças, o vendedor das doçuras, a igreja das dores da villa, a polícia, tudo do mesmo jeito, como sempre foi, E uqui mais, levou nos olhos a mão que segurava a cabeça desfiada do corpo, e pediu, Fecha as vista pra podê oiá, mostrá uqui ocê num vê e qui tá escondido. Libertá usóio duqui ocê tá costumado divê.
a manhã iluminada, os pais, as mães, os filhos ensolarados, a praça. as sombras das árvores. o vendedor de doces, O campanário anunciando. Chamando. As sombra fechando o céu. As treva do ódio. O medo. O negro caminhando acorrentado, As pulícia marchando lado e lado. Elegantes. Bonitos. Os namorados beijando as bocas, comendo as línguas. Escondidos na árvore dos enforcados, E uqui mais?
fiz o sinal da cruz. não resisti à tentação de dizer a cruz e o credo. esconjuro, A árvore dos enforcado é dutempo qui existiu lei qui mandava matá o pescoço dos preto. O escravizado ficava pendurado té cansá de respirá.
Não acredito, avóinha! Nunca ouvi falar.
Num era bão tê toduspretu esticado pra modo de não perdê dinheiro nem ficá sem braço pretu pra trabaiá. Mais um qui otro balanceando era um bão aviso propagandista. Dá pra vê uspretu boiando no vento. Nascê preto na Villa num era coisa boa pru pretu, mais num tinha uqui fazê, upretu já nasce pretu. E morre nas lei dusbranco. Branco num gosta de mudá as lei antiga, elas ajuda arredá uspretu pra mais longe qui lugá perdido. É feita pra limpá tudo qui incomoda branco. Dá pra vê ouspretu balançando. O vento reclamando.
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sempre chega a vez de sentá pra conversá
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baitasar
nada além do silêncio
eu ali, no banco do cobrador, em pé. todo esticadinho para agarrar o corrimão aéreo, sentindo câimbras nos dedinhos dos pés, um animador de torcidas inoperante. até que a turba me tirou daquele sono a esmo, Enforca!
larguei o corrimão aéreo e levei minhas mãos ao pescoço. não entendia o que havia acontecido. tudo isso porque eu fiz a cantoria do café? jamais houve reação tão contrária aquele cantarejar do café haiti, haiti, haiti, Passa a corda no negro!
sentei no banco e calei minha boca, achei melhor esconder o meu canto. não era tempo de cantar, que pena. sempre deveria ser tempo de cantar, que pena, Safado! Negro desvergonhado, Roubando da Santa!
santa? mas que santa? continuei assustado
queriam uma cova. um buraco. um corpo para pendurar e queimar. carne para malhar o couro. entreter suas vidas empoeiradas pelo senso da justiça vingativa que mói e atormenta. corta os pedaços da carne e mastiga, Vamos nos fartar com o sangue do negro!
queria uma caverna bem escura. um esconderijo daqueles gritos. a vergonha do desdém. o cinismo dos suspiros. a indiferença. a surdez. lágrimas de crocodilo. as balas quebra-queixo, puxa-puxa, as crianças correndo. as árvores da praça e os enforcados. sem nome. sem história. sem memória. a mãe nervosa perdida do filho, enraivecida porque estava perdendo a melhor parte, o barulho horrível do pescoço quebrando. a menina com a fita rosa no cabelo, toda perfumada de anjo. o preto lá no alto. o pescoço quebrado e aquele estalo injusto, desumano. gente decente batendo palmas, gritando, atirando pedras. cuspindo. o preto todo esticado com as calças de linho grosso, áspero e sujo, molhadas. boiando pendurado
nenhum dos passageiros deu qualquer importância às boas-vindas do café haiti. olhei para os dois lados, Davó... chamei uma, duas, três vezes, Davó... outra vez e outra, Calma, neinho.
reconhecia a voz, mas não via o corpo, ou melhor, o espírito. até que subiu na porta da frente, Onde davó andava?
não consegui tirar o nervosismo da voz. depois que o enervamento me desassossega perco o cuidado com as palavras, quase sempre fico arrependido do ponto-de-vista que vou libertando da garganta, Donde ocê acha qui avó andava?
a situação requeria seriedade, mas davó só queria brincadeira, E lá vou eu saber? Na terra dos sem-terra?
ela queria ter mais divertimento que os vivos do 69
No embaciamento nuvioso das altura.
depois de se demorar para atender os meus chamamentos, convoquei avóinha mais vezes que era o meu costume, ela fez pouco das minhas reclamações. resmungava que nem foi tanto assim, Davó escutava?
Claro qui iô escutava.
quase desabei no choro sentado na cadeirinha, meu trono de bebê, enquanto avóinha segurava a colherinha da papinha e brincava de aviãozinho. queria ensinar davó que uma colherinha não poderia ser um aviãozinho, aquilo era apenas uma invencionice dos seus delírios de mãinhavó, Então viu meu papelão?
Iô vi.
inventei cara de brabeza que vinha da vergonha e levantei, E Davó deixou... quando pode e deve meter sua colher de bisbilhotice davó escolhe ficar só olhando, fazendo cara preta de paisagem. isso não é justo.
ela parou no corredor, fez cara séria, pronta para soltar um aconselhamento, Ocê precisa aprendê ri de ocê mesmo, desregulá a seriedade e deixá a alegria ficá contente, deu um pulo do chão de lata até a mesa da trocação das passagens, olhou bem pertinho das vistas, antes de continuar, Neinho, senta aí, já tava sentado, mas parecia que era outra coisa que queria dizer, isso não é jeito de atendê os viajante e vendê os bilhete. E mais não seja, o guri tá escutando ruim, a avó não aconsêiô ocê cantá. Isso foi bobice...
sentei no meu lugar de neto que escuta, Quis ser gentil.
ela balançou a mão direita no ar, parecia nervosa. depois, abaixou a mão até a perna. continuava de cócoras no meu balcão de negócios. senti vontade de aproximar minha mão do seu rosto de espírito, Neinho, mifiuneto amado. Num disse pra ocê cantá, qui bobice essa cantoria do café. Bastava ocê escutá as pessoa sem brabeza, ajudá levá todas pra casa.
não consegui abrir a boca e retrucar avóinha. ela fez sinal com os olhos para sossegar o pinto, Fica sentado e óia lá fora.
obedeci, virei a cabeça que continuava agarrada no pescoço. desvirei para o outro lado, E daí?
ela pulou do balcão e ficou pendurada na janela, atrás do meu banco, por fora, agarrada em nada, Uqui ocê vê?
pulou de volta no balcão das passagens, Nada de mais... a rua, as pessoas, as casas... avóinha voando como um anjo preto sem asas.
o anjo da avóinha sorriu, Neinho, ocê precisa esforçá as vista e mostrá prusóio uqui ocê vê... carece fornicá com curiosidade.
desgrudei da davó. o gado subindo no rocinante, organizado em fila. agonizando. o joão torto alargado sobre a sua janela, toda aberta, conversando animado com o chico baiana, O que foi isso, Chico?
o baiana ergueu os ombros, repuxou um dos lados da boca, subiu as duas mãos espantadas num aviso de desistência, A caixa quebrô, Torto. Caminhão velho é assim mesmo. A quebradeira não é maior, graças aos cuidados do Seu Cristóvão, mais a boa vontade do Nosso Sinhozinho Cristinho com a ajuda do dono dos caminhos, Ogum. O senhor do ferro.
Tá certo, Baiana... te cuida.
o joão enfiou o braço pra fora da janela, espichou até cumprimentar o chico num aperto de mão. depois que acomodou o corpo no seu assento, virou-se para o meu lado, reuniu o ar dos pulmões no gargalo do pescoço e deixou escapar um ar tristonho que veio batendo a esmo nos vidros e paredes, Tudo certo, Batatinha?
não respondi de imediato, esperei que a tosse seca, daquela conversa de palavras descontinuadas, ficasse no controle da sua vontade. tossiu uma, duas, três vezes, estilhaçando a esmo a sua incontinência. levou a mão à boca. tossiu mais e mais, até que um dos viajantes gritou do fundo do caminhão, O homê precisa de um copo com água.
Obrigado, não precisa. Já vai passar.
viajo sentado de frente para a roleta, as costas na janela, um dos lados para a frente do 69, o da direita; o lado da esquerda para o fundo do carro, Abre atrás, João!
um homem grandão estava parado na calçada, em frente a porta do fundo. o joão abriu a porta e grandão subiu. o rocinante continuava parado, esperava o carregamento de toda aquela gente
Psiu... — me fiz de embaçado, psiu...
como é que se faz de conta que um espírito não existe? avóinha parece com jeito de quem reclama da solidão gelada e pede as meias de lã, O que foi, davó?
Óia pra cá.
Não posso.
não ia poder resistir muito mais, sentia o coração fraquejar pela vontade de olhar com avóinha, Davó precisa entender que eu tô de trabalho, não posso ficar de conversinha.
Num qué oiá, tá bem, num óia. Mais vai escutá e num vê.
Não vou ver o quê, avóinha?
As árvore... daqui fora.
eu tava sendo deseducado com avóinha, se dava mais atenção ia perceber que ela queria deixar recado de ensinamento. tem vez que não adianta receber mensagem do esclarecimento. eu tinha escolhido não escutar, mas ela tava decidida me dizer o que já tinha decidido contar, Essa não é hora de colocar as vistas da paisagem, se avóinha não caducou, vai saber que o seu neinho tá no trabalho.
continuava pendurada na janela, Bestice, é só querê e fazê a hora.
Avóinha vai pegar resfriado, aí fora.
escutei o assopro da avóinha que me fez frio. depois, um arrepio me deu estremecimento. a cabeça da avóinha tava flutuando fora do lugar certo. o corpo da avóinha ficou lá fora, a cabeça foi que entrou e tava no lado a lado com a minha, Miúdo, não perde o jeito de oiá e sabê o qui vê.
virei a cabeça pro outro lado. não podia ver avóinha só com a cabeça nem queria avistar o corpo sem a parte da cabeça. tem coisa que os olhos não deviam olhar para não guardar a memória, Avóinha pode fazer o favor de fincar a cabeça de volta no corpo?
Psiu...
virei no rumo que avóinha chamava, não podia continuar embaçando a teimosia da avó morta, Uqui ocê vê?
— Avóinha sem a cabeça, as árvores, as pessoas...
E uqui mais?
balançava a cabeça enfiada e desfiada do corpo, não podia ter atenção lá fora com tanto movimento da avóinha. fiz mais reclamação que de nada adiantou, E o que mais?
balançava a cabeça enfiada e desfiada do corpo, não podia dar atenção lá fora com tanto movimento de exibição da avóinha. fiz outra reclamação que de nada adiantou, E o que mais?
mais nada mais nada, tinha vontade de dizer. as pessoas, as árvores, as crianças, o vendedor das doçuras, a igreja das dores da villa, a polícia, tudo do mesmo jeito, como sempre foi, E uqui mais, levou nos olhos a mão que segurava a cabeça desfiada do corpo, e pediu, Fecha as vista pra podê oiá, mostrá uqui ocê num vê e qui tá escondido. Libertá usóio duqui ocê tá costumado divê.
a manhã iluminada, os pais, as mães, os filhos ensolarados, a praça. as sombras das árvores. o vendedor de doces, O campanário anunciando. Chamando. As sombra fechando o céu. As treva do ódio. O medo. O negro caminhando acorrentado, As pulícia marchando lado e lado. Elegantes. Bonitos. Os namorados beijando as bocas, comendo as línguas. Escondidos na árvore dos enforcados, E uqui mais?
fiz o sinal da cruz. não resisti à tentação de dizer a cruz e o credo. esconjuro, A árvore dos enforcado é dutempo qui existiu lei qui mandava matá o pescoço dos preto. O escravizado ficava pendurado té cansá de respirá.
Não acredito, avóinha! Nunca ouvi falar.
Num era bão tê toduspretu esticado pra modo de não perdê dinheiro nem ficá sem braço pretu pra trabaiá. Mais um qui otro balanceando era um bão aviso propagandista. Dá pra vê uspretu boiando no vento. Nascê preto na Villa num era coisa boa pru pretu, mais num tinha uqui fazê, upretu já nasce pretu. E morre nas lei dusbranco. Branco num gosta de mudá as lei antiga, elas ajuda arredá uspretu pra mais longe qui lugá perdido. É feita pra limpá tudo qui incomoda branco. Dá pra vê ouspretu balançando. O vento reclamando.
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