sexta-feira, 9 de maio de 2014

O que não é ensinado

Ensaio 02A - 2ªed
baitasar
O padrinho tinha um cacoete siempre que deixava o quarto da menina Olalla, coçar o saco e cheirar os dedos. Hábitos são hábitos, assim como, homens são homens. E o que são os torna mais homens e mais iguais. Deixei de me surpreender com eles. Agarrava a cintura da calça com as duas mãos, dava um puxão para cima, enfiava a mão dentro da calça e se demorava nas acomodações. E, com os dedos polegar e indicador das duas mãos, abotoava os botões da abertura dianteira da calça. Depois, alisava o bigode com a mão esquerda. O homem era destro para tudo, menos no alisamento
—        Minha querida, a esquerda tem melhor uso nas escaramuças de esgravatar e bulir as meninas... é mais sensível. — não atinava que o assunto era delicado e assuntava a indelicadeza, mas o instinto do hábito lhe convocava para remexer nos fios do bigode, sempre do mesmo jeito, delicadamente do meio para as pontas. — Os rolos do aroma de Olalla me sobem os furos do nariz, o fumacê da combustão enche os dutos do fogão das lenhas com os cheiros da ovelha deliciosa. E cachorro comedor de ovelhas não tem jeito, só matando!
Encolhia a barriga com um puxão de ar e apertava a cinta. Estava pronto para suas tarefas. Parava na porta para um breve cumprimento e uma pequena recomendação. As meninas silenciavam as conversas que tinham à toa, eu aparecia nas despedidas
—        Até breve... não me perca a foguista. — a menina Olalla tinha os cabelos vermelhos como o fogo longo e ondulado das labaredas. Lábios carnudos e úmidos. Não maquiava os olhos, eles eram a sua alma, o seu feitio de mulher. Pintava a boca com o mesmo fogo dos cabelos. Mas era o couro eriçado em veludo avermelhado que fez o padrinho perder o juízo.
Ele inclinava o rosto levemente e estendia a mão direita. A esquerda não lhe descia dos fios do bigode, mas não desmostrava seu riso de contentamento
—        A sua casa oferece influentes incentivos para um homem não se esquecer de retornar. — agradecia, mas não soltava minha mão da sua direita até levá-la aos lábios macios e suaves. Um brutamontes macio e suave, quanta incoerência da natureza nos homens. Sentia um arrepio, parecia que o homem iria me morder. Os olhos tomavam o jeito de dentes afiados. Mas minhas lembranças do padrinho são de um homem educado e fino. Nunca imaginei o padrinho como um morto, parecia invencível
—        Moço... o que foi?
—        Mãe, ele morreu...
—        Quem morreu?
—        O Calçacurta.
—        Quem?
Abri minha própria casa de cura e perdição nas terras dos capões e dos corvos. Gente boa e hospitaleira. Não foi difícil encontrar meninas prontas para uma vida melhor. Todas lindas. Uma terra de fartura com a beleza, mas sem regras decentes. Precisei ensinar o que mostrar e o que esconder; como fazer o preço na quantidade adequada, sem provocar o encarecimento nem ter assombro com os pedidos do desconto. Gostava do título de empresária, mas sei que jamais me darão alguma escritura de finalidade com letreiro e reputação, é uma cidade pequena
—        Meninas, são apenas negócios!
Acho que por isso me chamavam mulher que é homem. Pensava como os homens e tinha a autoridade dos homens. Aprendi. Tudo se aprende quando se quer, emendando um retalho daqui, outro dali, ajeitando o que temos nas mãos ou na cama.
Contava histórias como um homem, obscenas e estúpidas.
Gostava dos homens e seus palavrões.
Gostava das mulheres e sua agudeza.
Adorava domesticar gatos selvagens, deixá-los gostosões. Animais de luxo e recreação. Angorá. Siamês. Cruzar até encontrar a mutação doméstica. Um vira-latas que ronronava satisfeito. Adornado com laços de fita. Lavado com xampu, penteado e escovado. Amava escorregar os dedos no pelo enquanto me sugeria fazer o que eu queria fazer. Mas sabia que o meu jeito não era o único jeito, podia ter o jeito dele
—        Moço...
—        Sim, mamãe.
—        Preciso de um cigarro.
—        Cigarro não, mamãe.
—        Vai à merda! Quero um cigarro!
—        O doutor...
—        O tal doutor que vá se foder! O que querem comigo? Acabou! — meus filhos e minhas filhas perderam de me conhecer no melhor da minha beleza e alegria. Os filhos nunca conhecem a glória da imprudência e inocência, o verdor da mocidade com a invencionice da tal liberdade das mães antes das mães.
Num tempo antes de ser mãe, caminhava flutuando, nunca fiz barulhos com meus passos nem deixei pegadas por onde passei. Aprendi en la Montaña esse efeito de ir e vir sem levantar poeira. Escondendo os pés no chão. Aparecendo e desaparecendo.
Criei os sete como se fossem minhas entranhas reveladas para aventuras e invencionices. Todos quando nasciam ganhavam um versinho, como se fosse o nome, um breviário do futuro. Esqueci quase todos, mas lembro do versinho do foguista
—        O meu versinho!
—        Quem é o senhor, moço?
—        O foguista...
—        Ah, o versinho do foguista... Olha só essa carinha, pra beijar foi feitinha, imaginem quando espichar, o trabalho que vai dar... O meu cigarro! — não se assustem com essa tosse... ela me acompanha fazem quase cem anos, me pertence com o milho pertence a la Montaña. Em dezembro plantávamos ervilha, na época das chuvas. Tudo vem com as chuvas.
Nunca quis que meus filhos fossem como mi papá y my hermana, sofreram muito en la Montaña, que as crianças cresçam como eu. Não, como eu... não. Sou bêbada e puta. Dona da prostituição na Vila. Não, minhas filhas, não.
Esse ano as chuvas foram boas. As plantações cresceram bem, mas muita chuva trás minhocas. É preciso colher logo. Como em tudo na vida, se esperar muito a colheita se perde. Foi um bom ano de chuvas, tivemos o suficiente para comer e pôr à venda. É preciso fazer uma pequena oração, conversar com os espíritos mais velhos, eles são de muita ajuda
—        Moço, quando chove e o plantio é bom, fico feliz... em paz. A freguesia aumenta com sua alegria barulhenta. — decidi ficar assim até as crianças crescerem. O tempo foi se passando, as crianças cresceram. Decidi continuar assim. Afinal, quem pensava que enganava? Não foi por causa das crianças. Gostava do meu jeito de mandar nas pessoas. Gosto de ser o chefe. E na minha casa, mando eu. Mas podia ser convencida. Adorava quando um homem me convencia e pensava que me acalmava. Saiam de um assunto e entravam em outro sem compreenderem nada. Só entendem o que veem.
Espero que tudo dê certo e as crianças sejam melhores do que eu fui.
Às vezes, me cansava dos turistas e pensava em me livrar da carga que mal aguentava. Mas o tempo que nos faz envelhecida, frouxa e feia, nos aconselha a continuação das coisas como estão, mansas e obedientes. Foi quando a trilha das doenças começou seu ataque. Hoje, me sinto subindo la Montaña con una bolsa de maíz en la espalda, e outro saco de milho nas mãos
—        Mi niños y niñas são meus tesouros.
—        Eu sei, mamãe.
Peço que se calem, minhas lembranças estão se misturando com todas as memórias da minha gente, camponeses de maíz en la Montaña. Elas se embaralham, me atrapalho com tantos rostos esquecidos reaparecidos
—        E você, moço?
—        A senhora me conhece?
Esse guri está siempre querendo me agradar, mas não larga a vontade de conhecer a mãe da sua natureza. Eu dei comida, colo, carinho e molhava sua sede, mas não descansa até descobrir quem lhe deu os olhos azulados, os cabelos vermelhos e o apelido de foguista. Até hoje, não respondo nem a metade da verdade
—        Não sei onde vive sua mãe. — por prudência nunca procurei saber. Fiz promessa à menina de cuidar do seu segredo. Quem não sabe não tem o que mentir.
Existe uma magia estranha quando se está morrendo, já tão perto da morte. Em seu leito, sentindo a brisa do seu hálito, tudo que a morrente diz da boca para fora, fica com ar de verdade confessional. Ninguém mente às portas do Paraíso sentindo o calor do Inferno no rabo!
Será?
Pedi que as crianças sentassem no chão, como faziam antes de crescerem e se afastarem da minha má influência
—        Vou lhes contar como vivi la vida.
Não contei. Estava moribunda, isso não tinha mais importância, nada tinha mais importância, nem o tempo me importava, mas gostaria de carregar comigo às memórias e os cheiros
—        O meu cigarro...
—        Mamãe! — olhei em seus olhos azuis, enfiei meus dedos em sua cabeleira vermelha, não havia o que fazer, apenas colocou o cigarro em meus lábios. Queria as despedidas com a intimidade que me restou no fim. Puxei a fumaça com as forças que não tinha mais, fechei os olhos e parei de respirar.
Começou assim, depois que parei de imaginar paisagens... a lenda.
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Leia também:
Ensaio 1A - 2ªed / O sinal da cruz e o pecado

Ensaio 3A – 2ª ed / Uma foguista do diabo

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