Um Conto de Natal
Modesto, apesar de seu vistoso colarinho que quase o enforcava, este pôs-se a soprar o fogo com tanta graça que logo as batatas começaram a dançar na água fervente e vieram tamborilar contra a tampa da panela para anunciar que já estavam cozidas e prontas para serem descascadas.
Charles Dickens
08
TERCEIRA ESTROFE
O segundo dos três espíritos
Ambos se calaram, e, sempre invisíveis, prosseguiram seu caminho pelas ruas da cidade. O espírito era dotado de uma extraordinária faculdade, que Scrooge já havia notado na confeitaria: apesar de seu talhe gigantesco, estava sempre perfeitamente à vontade, onde quer que fosse; mesmo sob o mais baixo teto, andava com a mesma graça e naturalidade como se estivesse no mais luxuoso palácio.
Ou fosse para fazer alarde deste poder, ou fosse levado pelo seu coração generoso, compassivo pelos humildes, o certo é que foi para a casa do seu empregado que o espírito arrastou Scrooge, sempre agarrado ao seu manto. Na soleira da porta o espírito sorriu e deteve-se para abençoar a casa de Bob Cratchit, levantando o seu facho.
Então, apareceu a senhora Cratchit, esposa de Bob, vestida muito modestamente com um vestido já surrado mas que ela havia enfeitado garridamente com umas fitas baratas, que custam apenas alguns centavos e fazem tanta vista.
A senhora Cratchit estendia a mesa ajudada por Belinda, sua segunda filha, também toda garrida, enquanto Pedro Cratchit, enterrado em seu vasto cachecol, herdado de seu pai, espetava um garfo na panela de batatas, contente por se ver tão elegante e suspirando por se mostrar na rua.
No mesmo instante, os dois últimos Cratchits, um menino e uma menina, precipitaram-se na sala, gritando que acabavam de sentir o cheiro do pato, do “seu” pato, quando passaram diante da padaria.
Depois, embriagados com o pensamento do gostoso molho de cebola que estavam preparando, puseram-se a dançar em homenagem à habilidade do cozinheiro Pedro Cratchit.
Ou fosse para fazer alarde deste poder, ou fosse levado pelo seu coração generoso, compassivo pelos humildes, o certo é que foi para a casa do seu empregado que o espírito arrastou Scrooge, sempre agarrado ao seu manto. Na soleira da porta o espírito sorriu e deteve-se para abençoar a casa de Bob Cratchit, levantando o seu facho.
Então, apareceu a senhora Cratchit, esposa de Bob, vestida muito modestamente com um vestido já surrado mas que ela havia enfeitado garridamente com umas fitas baratas, que custam apenas alguns centavos e fazem tanta vista.
A senhora Cratchit estendia a mesa ajudada por Belinda, sua segunda filha, também toda garrida, enquanto Pedro Cratchit, enterrado em seu vasto cachecol, herdado de seu pai, espetava um garfo na panela de batatas, contente por se ver tão elegante e suspirando por se mostrar na rua.
No mesmo instante, os dois últimos Cratchits, um menino e uma menina, precipitaram-se na sala, gritando que acabavam de sentir o cheiro do pato, do “seu” pato, quando passaram diante da padaria.
Depois, embriagados com o pensamento do gostoso molho de cebola que estavam preparando, puseram-se a dançar em homenagem à habilidade do cozinheiro Pedro Cratchit.
Modesto, apesar de seu vistoso colarinho que quase o enforcava, este pôs-se a soprar o fogo com tanta graça que logo as batatas começaram a dançar na água fervente e vieram tamborilar contra a tampa da panela para anunciar que já estavam cozidas e prontas para serem descascadas.
– Que será que está prendendo seu querido papai e seu irmão Tinzinho? – disse a senhora Cratchit. E Marta? No Natal passado, ela chegou meia hora mais cedo.
– Cá está Marta, mamãe! – disse uma garota que vinha entrando naquele instante.
– Cá está Marta! – exclamaram os dois pequeninos Cratchits. Urra! Veja, Marta! Temos pato hoje!
– Louvado seja Deus, minha querida! Como estás atrasada hoje! – observou a senhora Cratchit, abraçando-a repetidas vezes e tomando-lhe solicitamente o chapéu e o xale.
– Tivemos que terminar uma porção de coisas ontem à noite, respondeu a moça, e hoje de manhã tivemos de pôr tudo em ordem.
– Está bem; o essencial é que já estás aqui. Senta-te perto do fogo, querida, e aquece-te um pouco.
– Não, não, aí está papai! – gritaram os pequeninos Cratchits, que estavam sempre em toda parte ao mesmo tempo.
– Vai esconder-te, Marta! Vai esconder-te!
Marta escondeu-se, e Bob, com o cachenê arrastando no chão, com a roupa usada mas bem escovada e em ordem para dar ideia de dia de festa, irrompeu na sala, trazendo o Tinzinho às costas.
Pobre Tinzinho! Trazia umas muletinhas, e suas pernas eram sustentadas por um aparelho de metal.
– Muito bem! Onde está nossa Marta? – exclamou Bob Cratchit, lançando os olhos em torno.
– Ela não pode vir, – disse a senhora Cratchit.
– Não pode vir! – repetiu Bob perdendo subitamente seu primeiro entusiasmo, pois acabava de servir de cavalo ao pequeno Tim, e estava fatigado por ter corrido desde a igreja até à casa dele. – Ela não pode vir! Num dia de Natal!
Marta ficou penalizada por vê-lo decepcionado, mesmo em se tratando de uma brincadeira, e sem mais perder tempo abriu a porta que a escondia e atirou-se aos braços do pai, enquanto os dois pequeninos Cratchits levavam Tinzinho para a cozinha, onde estavam cozinhando o pudim.
– E como se tem portado o Tinzinho? – perguntou a senhora Cratchif, depois de ter gracejado com Bob por motivo de sua credulidade e depois que este abraçou a filha cheio de satisfação.
– Como um anjo, – disse Bob –, e mais ainda. Quando está calmo, torna-se reflexivo, e todos nós ficamos admirados com as idéias que lhe ocorrem. Ainda há pouco me dizia que esperava que todos o tivessem notado na igreja por ser doente, e, acrescentou, especialmente no , dia de Natal os cristãos devem sentir-se felizes ao pensarem naquele que fazia andar os coxos e restituía a vista aos cegos.
Repetindo estas palavras, a voz de Bob tremia, e tremeu mais ainda quando observou que Tinzinho se tornava cada dia mais forte e mais vigoroso.
As batidas da muletinha fizeram-se ouvir sobre o soalho, e antes que tivessem dito qualquer outra palavra, Tinzinho apareceu em companhia dos irmãos e da irmã, que o ajudaram a subir ao seu banquinho, no canto do fogo.
Então, arregaçando as mangas, como se receasse que elas se estragassem mais, as pobres mangas, Bob preparou numa vasilha uma mistura revigorante com gim e limão, agitou-a fortemente e a pôs para esquentar perto do fogo. Pedro e os dois pequenos Cratchits, que se viam em toda parte ao mesmo tempo, correram buscar o pato, que trouxeram logo a seguir, em triunfal procissão.
A celeuma que se seguiu, poder-se-ia acreditar que o pato era, naquele instante, a mais rara das aves, um fenômeno emplumado, e que perto dele um cisne negro não passava de uma insignificante curiosidade. Realmente, era este o caso naquela modesta residência.
A senhora Cratchit fervia o molho depositado numa caçarola, enquanto Pedro Cratchit esmagava as batatas com incrível vigor, Belinda preparava a calda de maçãs, Marta enxugava os pratos, Bob colocava Tinzinho à mesa, ao lado dele, e os pequeninos Cratchits punham as cadeiras para todos, inclusive para si mesmos; uma vez bem instalados, puseram uma colher na boca, para que não fossem tentados a pedir seu pedaço de pato antes de chegar-lhes a vez de serem servidos.
Finalmente, colocados todos em seus respectivos lugares, recitou-se a oração de antes das refeições.
Seguiu-se, então, um silêncio impressionante, enquanto a senhora Cratchit, tomando lentamente a faca de trinchar, se preparava para cortar a ave.
Mal, porém, a senhora Cratchit enterrou a faca nas laterais do pato, após tão mal contida ansiedade, um “hurra” de contentamento estrugiu por toda a sala. O próprio Tinzinho, excitado pelos dois pequeninos Cratchits, bateu na mesa com o cabo da faca e repetiu um “hurra”.
Nunca, em tempo algum, se tinha visto um pato semelhante. Bob declarou que jamais se fizera um pato assado igual àquele; foram objeto de comentários o seu preço, a qualidade, o tamanho e o delicioso gosto. Ainda mais, com o molho de maçãs e o pirão de batatas, este pato representava um lauto almoço para toda a família, “e até mesmo sobrou”, observou a senhora Cratchit com satisfação, olhando alguns ossos relegados no prato.
Entretanto, todos comeram à vontade, inclusive os pequenos Cratchits, que tinham a cara lambuzada de pato e de molho até aos olhos. E agora, enquanto Belinda muda os pratos, a senhora Cratchit sai sozinha da sala, para esconder sua grande emoção, e vai buscar o pudim.
Entretanto, todos comeram à vontade, inclusive os pequenos Cratchits, que tinham a cara lambuzada de pato e de molho até aos olhos. E agora, enquanto Belinda muda os pratos, a senhora Cratchit sai sozinha da sala, para esconder sua grande emoção, e vai buscar o pudim.
Oh, e se o pudim não estiver bem cozido! E se ele se desmoronar quando for desenformado! E imaginem se alguém se introduziu na despensa e o roubou, enquanto todo mundo se regalava com o pato!
A estes dolorosos pensamentos, os dois Cratchits fizeram-se lívidos. Os mais horríveis receios assaltavam-nos.
Ah, uma nuvem de vapor! É o pudim que sai do forno... Agora, um cheiro de lixívia... É do pano que está envolvendo o pudim. Um aroma que parece vir de uma pastelaria, situada entre um restaurante e uma lavanderia! Pois é o próprio pudim!...
Meio minuto mais tarde, a senhora Cratchit, com o rosto afogueado mas com um sorriso de triunfo nos lábios, reaparece com o pudim: um pudim semelhante a uma bala de canhão, todo, mosqueado, duro e compacto, tendo em cima um galho de azevinho, mergulhado na base em um quarto de pinta de brandy inflamado.
Oh, que maravilhoso pudim!
Bob Cratchit declarou, solenemente, que era a mais perfeita obra-prima que a senhora Cratchit executou desde que casaram. A senhora Cratchit, agora com o espírito liberto do receio de errar, confessava ter tido alguma dúvida sobre a quantidade de farinha empregada.
Cada um teve alguma coisa a dizer sobre o pudim; mas o que ninguém disse, e talvez nem mesmo se atrevesse a pensar, é que o referido pudim era demasiado pequeno para tão grande família.
Em verdade, isso teria sido uma espécie de blasfêmia, e quaisquer dos Cratchits teria corado de vergonha à simples idéia de fazer tal alusão.
Finalmente, o almoço terminou. A mesa foi levantada, o chão varrido e a lareira reabastecida.
Em seguida, após o elogio feito à bebida que fora distribuída entre todos os presentes, foram servidas, à mesa, maçãs e laranjas, ao mesmo tempo que se atiravam à cinza punhados de castanhas.
Depois, toda a família Cratchit se reuniu diante do fogo – ao que Bob Cratchit chamava “fazer roda” em torno do fogo.
Ao lado de Bob tinha-se juntado tudo o que havia na casa de finos cristais, isto é, dois copos de pé e uma xícara sem asa. Mas, pouco importava: não continham tais vasos o licor saboroso, do mesmo modo como se estivesse em finos vasos de ouro?
Bob distribuiu licor a todos, com ar radioso, enquanto as castanhas pulavam na cinza e rachavam com estalos intermitentes. Em seguida, Bob Cratchit levantou este brinde:
– A todos vocês, meus amigos, um felicíssimo Natal! Que Deus nos abençoe a todos!
Toda a família respondeu alegremente.
– Que Deus abençoe a cada um de nós! – disse Tinzinho, o último de todos.
Tinzinho estava sentado ao lado do pai, em seu banquinho, e Bob tinha entre as suas as magras mãozinhas do filho querido, estreitando-o contra si, amorosamente, como se receasse que alguém lhe viesse arrebatá-lo.
– Espírito, – falou Scrooge com um interesse que jamais sentira, – dizei-me se Tinzinho viverá muito tempo.
– Vejo uma cadeira vazia neste pobre lar, e umas muletinhas sem dono, conservadas como uma dolorosa lembrança. Se estas sombras não forem modificadas no futuro, esta criança morrerá.
– Não, não, meu bom espírito! – exclamou Scrooge, – dizei-me que o pequeno será poupado.
– Se os destinos permanecerem estáveis nestas imagens, – respondeu o espírito, nenhum membro de minha raça o tornará a encontrar aqui. E por que deplorá-lo? Se é seu destino morrer, que morra já! Isso virá diminuir o excesso de população...
Ouvindo o espírito repetir suas próprias palavras, Scrooge baixou a cabeça, tomado de sentimento e de remorso.
– Homem, – disse o espírito –, – se possuis um coração humano e não um coração de pedra, deixa de dizer tolices até que tenhas descoberto o que é excesso de população e onde existe. A ti é que cabe decidir quais são, entre os homens, aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer? Pode muito bem ser que aos olhos de Deus sejas tu muito menos digno de viver do que milhares de seres semelhantes ao filho deste pobre homem. Justos céus! Ouvir o inseto pousado sobre a folha dizer que acha muito numerosos os seus irmãos famintos que se debatem na poeira!
Scrooge ouvia, de cabeça baixa, a invectiva do fantasma e olhava para o chão a tremer.
Subitamente, ergueu os olhos ao ouvir pronunciar seu nome.
– À saúde do senhor Scrooge! – dizia Bob. À saúde de meu patrão, graças ao qual estamos hoje em festa.
– Bonito patrão, realmente, – exclamou a senhora Cratchit corando. Eu gostaria que estivesse aqui! Eu lhe faria uma bela saudação a meu modo...
– Minha querida amiga... – disse Bob. As crianças... o dia de Natal...
– É preciso, de fato, que seja dia de Natal, – replicou a mulher, para que se beba à saúde de um homem tão detestável, ladrão, cruel e sem coração como o senhor Scrooge. Você bem sabe quem ele é, Bob! Você o sabe melhor que ninguém, meu pobre amigo!
– Querida... protestou Bob com doçura. É dia de Natal! . . .
– Se eu beber à saúde dele; será só por você e por ser dia de Natal, mas não por ele mesmo. Assim pois, longa vida ao senhor Scrooge! Bom Natal e feliz Ano Novo! É isso, segundo penso, que o fará feliz e alegre!...
– Se eu beber à saúde dele; será só por você e por ser dia de Natal, mas não por ele mesmo. Assim pois, longa vida ao senhor Scrooge! Bom Natal e feliz Ano Novo! É isso, segundo penso, que o fará feliz e alegre!...
As crianças brindaram, depois dela, à saúde de Scrooge; era a primeira coisa, naquela noite, que faziam de má vontade. O último que bebeu foi Tinzinho, mas sem entusiasmo. Scrooge era o pavor da família Cratchit. A simples menção de seu nome lançou sobre a reunião familiar uma sombra que durou vários minutos.
Quando o terror se dissipou, todos, aliviados por terem liquidado o assunto antipático de Scrooge, ficaram dez vezes mais alegres que antes. Bob Cratchit falou de um emprego que tinha em vista para Pedro, onde poderia ganhar meia libra por semana. Os pequenos Cratchits deram gostosas gargalhadas à idéia de verem Pedro “trabalhar”.
Quanto a Pedro, olhava para o fogo com ar pensativo, entre as duas pontas do seu colarinho, como se perguntasse a si mesmo onde iria colocar seu dinheiro, quando estivesse de posse de tal fortuna. Marta, simples aprendiz na oficina de uma modista, contava o que fazia no atelier, quantas horas tinha de trabalho e falou da satisfação do dia seguinte, tirando uma manhã por sua conta e indo passear em casa da família. Falou, também, de um lorde e de uma condessa que tinham vindo à loja alguns dias antes. Este lorde era mais ou menos da estatura de Pedro. A estas palavras, Pedro ergueu tão alto o colarinho, que este quase lhe escondeu completamente o rosto.
Durante este tempo, as castanhas e o bule passavam e repassavam entre todos os que formavam a roda. Para terminar, Tinzinho cantou, com voz sumida, a canção de um menininho perdido na neve, e saiu-se perfeitamente bem.
Em tudo isso, não havia nada de notável. Os Cratchits não eram nem belos nem elegantes, seus sapatos não eram à prova d`água, suas roupas não estavam na moda, e Pedro, posso afirmar, teria se valido, por vezes, da loja de algum adelo. Todos, porém, eram felizes, reconhecidos para com Deus, cheios de afeição uns pelos outros e sabiam gozar da hora presente.
Quando suas imagens empalideceram, ainda mais alegres sob as gotículas brilhantes do facho com que o espírito os espargia, à guisa de despedida, Scrooge continuava com os olhos pousados sobre elas, especialmente sobre Tinzinho, até que se evanescessem de todo.
_____________________
Charles Dickens: Um Conto de Natal 01
Charles Dickens: Um Conto de Natal 02
Charles Dickens: Um Conto de Natal 03
Charles Dickens: Um Conto de Natal 04
Charles Dickens: Um Conto de Natal 05
Charles Dickens: Um Conto de Natal 06
Charles Dickens: Um Conto de Natal 07
Charles Dickens: Um Conto de Natal 09
_____________________
Leia também:
Charles Dickens: Um Conto de Natal 01
Charles Dickens: Um Conto de Natal 02
Charles Dickens: Um Conto de Natal 03
Charles Dickens: Um Conto de Natal 04
Charles Dickens: Um Conto de Natal 05
Charles Dickens: Um Conto de Natal 06
Charles Dickens: Um Conto de Natal 07
Charles Dickens: Um Conto de Natal 09
Nenhum comentário:
Postar um comentário