sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Charles Dickens: Um Conto de Natal 07

Um Conto de Natal


Charles Dickens

07



TERCEIRA ESTROFE  
O segundo dos três espíritos 


Despertado em meio de um barulhento ressonar, Scrooge sentou-se na cama para coordenar as idéias, sem precisar ser avisado de que o relógio ia bater uma hora. Tinha consciência de que a lucidez de espírito lhe voltava justamente no instante em que devia travar conhecimento com o segundo mensageiro anunciado por Jacob Marley. Mas quando começava a perguntar a si mesmo qual seria a cortina do leito que ia ser movida desta vez pelo novo espírito, sentiu um arrepio tão desagradável, que resolveu puxar todas as cortinas com as próprias mãos. 

Feito isto, deitou-se de novo, mas sem cessar a rigorosa vigilância em redor do leito, pois queria fazer frente ao espírito desde o momento de sua aparição, e não ser tomado de surpresa, o que lhe inutilizaria todos os seus recursos. 

Aqueles que pretendem estar sempre à altura das circunstâncias e não se perturbar com coisa alguma costumam afirmar, para darem uma ideia de seu sangue-frio, que podem permanecer tão calmos diante de um sangrento duelo como diante de uma partida de cartas. Entre estes dois extremos, há evidentemente lugar para os mais diversos acontecimentos. 

Sem me atrever a pôr a mão no fogo por Scrooge, posso declarar-vos, entretanto, que ele estava disposto a afrontar todas as aparições, as mais variadas ou mais estranhas, e que nada, absolutamente nada lhe causaria surpresa, desde uma simples criança até um descomunal rinoceronte. 

Mas, se Scrooge estava preparado para ver o que quer que fosse, não estava absolutamente preparado para não ver coisa alguma. Assim pois, quando o relógio bateu uma hora e nenhum fantasma apareceu, um violento tremor apossou-se de todo o seu ser. 

Cinco... Dez... Quinze minutos transcorreram, e nada aparecia. Durante todo esse tempo, Scrooge permaneceu estendido no leito, onde se concentravam os raios de uma luz avermelhada, que começara a brilhar no momento em que o relógio soava uma hora. 

Esta simples claridade parecia a Scrooge mais inquietante que uma dúzia de fantasmas, pois não podia compreender o que aquilo podia significar. Por vezes, era levado a imaginar que o fenômeno não passasse de um caso de combustão espontânea, embora não tivesse a consolação de o saber ao certo. 

Finalmente, Scrooge explicou-se a si mesmo – como qualquer pessoa o faria – que o segredo desta misteriosa luz estava sem dúvida na sala vizinha, de onde, bem observado, ela parecia vir. 

Estribado nesta ideia, levantou-se da cama vagarosamente, calçou as chinelas e dirigiu-se para a porta. No momento em que punha a mão na maçaneta, uma voz desconhecida o chamou de dentro, convidando-o a entrar. 

Scrooge obedeceu. 

O quarto era exatamente o seu, isso lá era, sem a menor dúvida, mas havia passado por uma incrível transformação. As paredes e o teto estavam tão bem enfeitados de vegetação, que se haviam tornado um verdadeiro bosque, onde brilhavam esparsos lagos espelhantes. As folhas verticais de azevinho, do agárico e da hera refletiam as luzes como outros tantos minúsculos espelhos. No fogão, crepitava um esplêndido fogo, como jamais crepitara neste desajeitado fogão em nenhum outro inverno, nem no tempo de Marley. 

Empilhados no chão, de modo a formar uma espécie de trono, encantavam a vista inumeráveis vitualhas, como perus, patos, caça, aves, presuntos, pernas de porco, leitoas, verdadeiras guirlandas de salsichas, ostras, castanhas ainda quentes, rubras maçãs, laranjas apetitosas, suculentas peras, imensos bolos reais, taças de vinho espumante, cujo delicioso aroma enchia todo o ambiente. 

Sobre este incrível estrado estava confortavelmente instalado um belo e jovial gigante, em cuja mão sustentava um facho aceso em forma de cornucópia. 

Quando Scrooge entreabriu a porta para passar, o gigante ergueu o facho bem alto para projetar a luz sobre o rosto do recém-chegado. 

– Entra! – gritou o espírito. Entra, meu amigo, e façamos as nossas apresentações. 

Scrooge entrou timidamente e baixou a cabeça diante deste novo espírito. Já não era o Scrooge rabugento da véspera, mas, embora os olhos claros da aparição tivessem uma expressão de bondade, Scrooge não podia enfrentar a sua irradiação. 

– Eu sou o fantasma do Natal presente, – disse o espírito. Olha-me. 

Scrooge obedeceu respeitosamente. 

O espírito vestia um simples manto verde-escuro guarnecido de branco. Este manto era tão simples e tão folgado, que deixava descoberto o peito largo. Também estavam descalços seus pés, que apareciam sob as pregas da estranha indumentária. 

Como coroa, tinha um ramo de azevinho ornado com uns enfeites cintilantes imitando pedaços de gelo. 

Longas e escuras madeixas brincavam-lhe livremente sobre o rosto generoso e franco, franqueza esta que também se refletia em seu olhar cintilante, em sua voz sonora, em sua mão aberta, em sua expressão alegre e em suas maneiras cativantes. Pendia-lhe da cintura uma velha bainha, já bastante enferrujada e sem a respectiva espada. 

– Já viste, em toda a tua vida, alguma pessoa parecida comigo? – perguntou o espírito. 

– Não, nunca, – respondeu Scrooge. 

– Nunca viajaste com os mais jovens membros de minha família, ou melhor, com os meus irmãos mais velhos vindos ao mundo no decorrer destes últimos anos? 

– Não creio, – disse Scrooge. Parece-me que não. Tendes muitos irmãos, Espírito? 

– Mais de mil e oitocentos. 

– Que família para manter! – murmurou Scrooge. 

O fantasma do Natal presente levantou-se. 

– Espírito, – disse Scrooge com voz humilde, levai-me aonde vos aprouver. Ontem à noite saí contra a vontade e recebi uma lição que começa a produzir seus frutos. Esta noite, se tiverdes alguma coisa a ensinar-me, estou pronto para tirar dela todo o proveito. 

– Toca em meu manto, – disse o fantasma. 

Scrooge obedeceu e segurou a roupa do gigante. No mesmo instante, desapareceram azevinhos, agáricos, heras, lagos brilhantes, perus, patos, caças, frangos, assados, presuntos, ostras e salsichas. Do mesmo modo, desapareceram repentinamente o quarto, o fogo, a luz avermelhada, a própria hora noturna, e Scrooge achou-se em uma das ruas de Londres perto de seu companheiro, por uma manhã de Natal. 

Fazia um tempo chuvoso, e as pessoas produziam uma espécie de música, que não era desagradável, ao raspar a neve que se acumulava nos seus portais e nos rebordos dos telhados. As crianças regalavam-se ao ver a neve, que rolava em grandes porções, despedaçando-se na calçada em pequenas avalanchas. 

As fachadas das casas pareciam ainda mais negras em contraste com a alva e lisa camada de neve, que cobria os telhados e até mesmo com a neve da rua; esta não tinha a mesma alvura, pois as pesadas rodas das viaturas haviam cavado ali profundos sulcos, que se cruzavam e se entrecortavam nas encruzilhadas, formando um intricado de pequenos canais que se perdiam numa espessa mistura de lama amarelada e de água gelada. 

O céu era triste, as ruas tomadas por uma opaca neblina, que era meio chuvisco, meio gelo, cujas partículas mais densas recaíam em gotículas fuliginosas, como se todas as chaminés da Grã-Bretanha tivessem sido acesas ao mesmo tempo e estivessem passando por uma limpeza em regra. 

Nada havia de muito agradável neste aspecto hibernal de Londres. Entretanto sentia-se por toda parte uma atmosfera de alegria, que nem mesmo o mais belo sol de verão, nem o mais límpido ar seriam capazes de criar. Assim, os varredores de neve demonstravam o mais jovial bom-humor, interpelando-se de cima dos telhados, atirando-se de quando em quando mútuas bolas de neve – projéteis menos perigosos que certos gracejos –, rindo alegremente, quando atingiam o alvo e rindo do mesmo modo, quando falhavam.

As churrascarias ainda não estavam de todo abertas, mas as casas de frutas ostentavam todo o seu esplendor. Ali, grandes cestas de castanhas, repletas até aos bordos, ostentavam-se nas portas, ameaçando rolar para a rua, vítimas de seu próprio volume. Havia maçãs e peras amontoadas em vistosas pirâmides, cachos de uvas que o negociante tivera o cuidado de pendurar bem à vista, para que, aos transeuntes, lhes viesse água à boca, sem que isso lhes custasse nada. 

Havia pêssegos dourados e veludosos, cujo aroma lembrava passeios de inverno nos bosques, maçãs de Norfolk, cuja tonalidade morena fazia ressaltar o amarelo-claro dos limões e laranjas. Até os peixes, prateados e dourados, expostos em aquários no meio destas frutas selecionadas, pareciam adivinhar que se passava qualquer coisa de anormal, e, de boca aberta, faziam evoluções no seu pequenino mundo, tomados de grande agitação. 

E as mercearias! Oh! as mercearias! Estavam quase fechadas, mas, pelos pequenos espaços entreabertos, que espetáculo esplêndido! O que tornava encantadora a atmosfera não era apenas o alegre ruído das balanças, o barulho das caixas, que ora se abriam, ora se fechavam, o esquisito aroma que se evolva a um tempo do chá e do café, a grossura e a abundância das passas, a extrema alvura das amêndoas, a beleza dos paus de canela, tão compridos e retos, ou o perfume penetrante das outras especiarias; não era somente a presença apetitosa dos figos moles e carnosos, das ameixas agridoces, dos confeitos açucarados, capazes de fazer morrer de vontade os menos gulosos, ou ainda os enfeites de Natal, constituídos por todas estas lindas coisas; era também a alegria dos fregueses, tão possuídos da grandeza daquele esperançoso dia, que se apertavam a ponto de achatarem os seus cestos, se esqueciam de suas compras sobre o balcão e voltavam correndo para buscá-las, tudo isto com a maior alegria possível; era a presteza dos caixeiros risonhos e agradáveis, que corriam solícitos atendendo a todos e patenteando, na paciência com que serviam a sua jovial freguesia, a satisfação que lhes ia na alma. 

Com o badalar dos sinos chamando o povo para as igrejas e as capelas, as ruas encheram-se de uma multidão de pessoas, ostentando os seus mais belos trajes, bem como as suas mais joviais fisionomias. Ao mesmo tempo, de uma quantidade de estreitas ruas, de vielas e passagens ignoradas, surgiu uma multidão de homens e mulheres trazendo seus respectivos manjares ao padeiro, para mandá-los esquentar. 

A vista desta humilde gente e de suas ingênuas festas pareceu interessar ao Espírito no mais alto grau. 

Postando-se, em companhia de Scrooge, à porta de uma padaria, descobria e incensava com o seu facho todos os pratos, à medida que iam passando. 

 Era de fato um facho extraordinário. Uma ou duas vezes, quando alguns portadores de viandas trocavam mútuos insultos por se terem chocado na fila, bastou que o espírito erguesse sobre eles o seu facho para que imediatamente lhes voltasse o bom-humor. “Efetivamente, é bastante vergonhoso, diziam eles próprios, levantar questões num dia de Natal”. E era a pura realidade. 

Depois, os sinos silenciaram e as padarias fecharam-se. Nos subsolos, porém, as carnes assavam, e, sobre o fornos, na rua, as próprias calçadas fumegavam, como se as pedras do passeio estivessem igualmente a cozer. 

– Será que têm algum sabor particular estas gotículas que caem do vosso facho? – perguntou Scrooge. 

– Sim, naturalmente. Têm o sabor do Natal. 

– E este sabor pode transmitir-se no dia de hoje a qualquer prato? 

– A qualquer prato dado de bom coração, especialmente aos mais pobres. 

– Por que aos mais pobres? 

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