mulheres descalças
sentia seus dedos me desenhando ansiosos e atrevidos. num falava nada, apenas bisbilhotava minhas curvas e provava meus gostos. os beijos cada vez mais quentes e molhados. abraços macios e amorosos. seu corpo me procurava cada vez mais duro e confiante
adoro que ele me quer, adoro que ele gosta
afrouxava e apertava o seu rosto no meu, sussurrava para me amar, eu respondia que queria. e ele me comia como o amor deve comer: com os olhos, os cheiros e os gostos enquanto as palavras seguiam cochichando incandescentes indecências. eu respondia que sim, quero mais e mais. ele me amava e descarregava estrelas. elas brilhavam. eu brilhava. uma plêiade de estrelas para bisbilhotar. as águas das estrelas esparramadas dentro de mim desciam dos meus olhos
os pedaços tricotados de meu corpo e os fios das lembranças adormeciam dentro daquele novelo amoroso e cuidadoso. esquecia de mi mesma. num era mais só eu, esse homem acordou todas as mulheres que carrego. ele me entrava sem rancor, sem mágoas, sem medo, me entrava pelos olhos e pelos pés descalços
gostava assim, gosto assim... lá embaixo, a luz e as estrelas acendiam os brilhos na escuridão. os barulhos da villa num subiam o morro, ficava calada e os meus velhos medos podiam ficar em silêncio. um bom tempo de viver antes de morrer. queria que todas as vidas pudessem viver uma boa vida antes de morrer, sem dono e sem castigo de dono
ele num é meu dono
num sou seu gado nem seu campo semeado, apenas me quer. deseja a mulher que eu sou e fica em mim, bem dentro: o homem e a mulher, ele e eu. um colo que num dura para sempre, mas afinal, nada dura para sempre. enquanto durar vou viver esse tempo das águas se derramando do amor, cada vez se despejando até esvaziar sem perder a graça, resistindo sem pessimismo
nos arrastávamos por cima da cama, os barulhos da vida borbulhando sem ensaios ou mentiras fascinantes, os abraços macios, o gosto doce, extenuados e cheios um no outro. acalmados. até que a vontade voltava. um quarto para meia noite. um quarto para uma noite toda. as estrelas. um piquenique de estrelas para sempre. embrulhava os braços na cintura do meu homem e o puxava mais e mais, sempre mais. um homem grande até bem fundo. lá estavam elas, as estrelas me entravam. eu queria mais, sempre agradeci por querer mais, queria o abrigo do frio e o silêncio na escuridão, queria as águas do rio, queria uma infindável noite de estrelas
ele me dava mais dele, sempre mais, e a vida sem fim começava. eu apertava minhas pernas, Quero sentir as coxas de vosmecê, depois abria e sorria. é bom sorrir para as estrelas, ter no amor a vontade de sorrir. é bom fechar os olhos sem sombras, sem medo de se abrir. é bom fechar os olhos para se mostrar, abrir para se descobrir
aprendi piquininina a me esconder atrás dos olhos fechados. os barulhos do silêncio continuam me tocando, num vou jamais esquecer, mas já posso sorrir com outras lembranças. é isso, num posso deslembrar, mas posso querer outras lembranças, Sai da pior das misérias, dizia nas conversas do sonho que se repetia, Eu sei, minha menina, ele respondia. jurava que entendia, mas num podia
encolhia os joelhos até encostar no queixo e o convidava com a janela dos olhos brilhando, as mãos puxavam mais e mais, a língua chamando, Vem... vem... me come, e com as mão trêmulas conversávamos sem falar, chispas acariciando tudo
até que falávamos
Adoro esses seus olhos amêndoados.
eu respondia com as palavras que tinha na boca, Quero mais, puxava mais e mais. ele escutava meus abraços, me entrava mais e mais
o silêncio acabou, mas o medo da escuridão... esse continua
somos uma mistura colorida da preta e do branco, amalgamados do jeito que a terra gosta. o céu das pessoas boas e brancas continua nos resistindo, num gosta da mistura com os miseráveis que elas inventaram com fome e sangue. preferem continuar derramando castigos e correntes para amansarem os pretus e a indiada. um espantoso desperdício de gentes desfeitas em borboletas empalhadas
estava feliz por ter resistido, sempre vale a pena resistir, Tem muito tempo que o barão num me amava do jeito que se entrega todo... sem pressa que termine, ele sorriu. é bom estar na cama do amor com um homem que sorri
Preciso conhecer essa Liberata. Ela me salvou.
sorri para a lembrança da liberata
é bom estar sorrindo junto com o homem da sua cama do amor. um sorriso cuida do outro. já estava deitado ao meu lado, a cabeça em meu peito, os dedos brincando com meus pelos, respondi para sua lembrança, Ela só deu conta de ajudar com o que sabe. E vosmecê deu conta acreditando.
Confiei em vosmecê.
na cama do amor o silêncio num pode ser desperdiçado. muito menos, pode ser tempo perdido, Vem cá...
Não sei...
Num sabe?
Não sei se consigo...
É?
eu mais ele estávamos afundados na alegria atrevida da cama que zela desavergonhada pelas palavras mais indecentes do fogo, cuida para que sejam soltas e repetidas, girando e girando, subindo como piquininos rolos de fumaça, até que um assopro descarrega as faíscas da ventania
olhávamos o rabo dos olhos um do outro com um sorriso que deseja provocar. num queríamos nenhuma trégua, num estávamos prontos para a paz do sono. num víamos nada além das quatro estrelas piquinininas brilhando, Vosmecê bem que pode me dar as últimas gotas do seu amor, E vosmecê vai me dar o quê, Mais um traquejo mágico, misturamos nossas lágrimas de felicidade enquanto os mistérios do novo dia estalavam os alaridos das outras vidas. eu o assanhei assanhei assanhei e estremeci. depois , fechei os olhos sorrindo
queria esse tempo para sempre
o tempo se acaba até que fecha os olhos e parece dormir. sabia tudo que esse homem perdia para me ter em sua cama de esposa. é como ir para outro lugar que num existe, só você vê. um lugar que vejo quando tenho em mim as últimas gotas do seu corpo suado. a cabeça acalmada com o piquininino que já está em mim, semeado por uma força muito mais grande que as correntes, uma fome muito maior que o medo por qualquer castigo. eu sinto que a vida me brota e as raízes me agarram com mais força enquanto os dois dormem agarrados em meu corpo
abri os olhos assustada
quando ficará farto de mim, me pergunto, quando eu engordar? depois que nascer o piquininino? e se for um muriquinho pretu? e se for uma piquininina? até onde irá o seu amor de pai? nunca falei sobre isso, sinto medo. quando sentirá vontade de se livrar de mim e do fio? fecho os olhos para me esconder
caminho pelo porão do negreiro. um pretu afogado nas águas do seu vômito treme e sacode o barco nú
outro pretu perdeu os sentidos da vida na volta da tina com água, quem tem força para ir num tem para voltar
outro e tantos outros
sempre o mesmo sonho, quantos mistérios sobre o destino de homens e mulheres. caminhos de lutas todos os dias contra a fome que acorrenta os miseráveis nas mãos com anéis: bestas desvastadoras e traiçoeiras da doença e da morte. assassinatos cívicos em nome da civilização hipócrita que se finge consciência da realidade
outro forçava com desespero os dentes até os pés: queria arrancar os pés com dentadas para fugir das correntes e se atirar nas águas da estrada
isso num é bem pensar com alegria e divertimento a vida
num quero lembrar mãinha arrastada do porão até o alçapão sem nenhum grito, mas num posso deslembrar. ela já num tinha grito. passou os gritos e as lembranças dentro da minha boca piquininina e assustada, seu último beijo assoprado. a boca cansada e amarelada apertou a minha e se jogou para dentro de mim. o que sobrou dela foi o que aqueles capetas deformados puxavam pelas canelas pretas: tetas murchas, braços caídos, cabeça quicando no chão. um corpo oco foi arrastado e jogado nas águas porque tudo dela já estava em mim
por que eu vivo? eu vivo porque mãinha vive
resisti porque esqueci de mim mesma. minha obrigação é sobreviver. ainda num acordei daquela escuridão, espero poder acordar para bòwò fún ìyá mi
a dor num parece querer se desaproveitar de mim. o sopro molhado de mãinha ainda está quente, as mãos de ìyá mi pararam de ter vida, mas os olhos num se fecharam. ela partiu me olhando, pedindo que eu resistisse. eu num penso no navio porque quero pensar, penso porque num quero esquecer
ainda num desci do negreiro
Esta cama é mais que uma cama, minha preta.
acordei do sono quando alguém me estendia a mão e o olhar. olhei de retorno procurando liberata, sem dureza ou medo, resolvi arriscar e descer do negreiro
A cama... o que ela é?
Uma declaração de amor.
fechei os olhos. enfiei os dedos em seus cabelos, eles num me resistiam. quem estava mentindo? como saber? num sei saber antes de saber. abri os olhos. estava a meio caminho de acreditar e num acreditar. é assim comigo, o anúncio do amor à vida ou a confissão que tudo isso é apenas um desmaio da vida, é tudo ou nada
Te amo, minha preta. Te amo. Não tenho outras palavras para dizer o que sinto. É assim que eu quero, todas as noites vosmecê colada em mim. Te amo, Catita.
num queria fechar os olhos. poderia num ser sempre assim e se num existisse esse homem, Eu quero lhe falar.
ergueu a cabeça do jeito mais sério que já tinha visto ele fazer, respondeu cuidadoso, acho até que a voz lhe tremeu as mãos, Fale, então...
é isso, pedi a palavra e precisava fazer uso das palavras. gostava de ter esse morro todo só para nós. juntos, nesta casa. isso me agradava, mas ainda havia o passado querendo abrir a porta. podia ouvir as conversas, U qui tu qué com esse branquela, e o futuro sem nenhuma garantia
Vosmecê está em mim sem me entender. Eu tenho tantas vidas em mim quantos nomes me chamam: ìyá mi ayomide catita carolina augusta. Choro só de lembrar as vidas de cada nome e me pergunto se terei mais nomes, é tanta saudade destas vidas. Tenho saudade das vidas que num vou viver.
o jeito do amor é doce e amargo. num queria experimentar mais nada amargo, mas o que é alegria ou tristeza? o que é de verdade se a mentira também é verdade? num sei o que vou sentir se tudo isso é mentira
Se for chorar lembra que eu te amo, minha preta.
Esse é o meu nome. Vosmecê acertou o meu nome. Um nome que num pode mudar, num quer mudar. Essa cama num é mais que uma cama, um nome num é só um jeito de chamar, é mais que um jeito de anunciar...
É uma declaração de amor.
Até quando?
Até quando?
Sim... até quando?
Não sei... quem sabe até quando tem amor? Eu quero ter o amor de vosmecê até quando morrer.
E se vosmecê ficar farto desse amor antes de morrer?
Então, estarei morto...
cada um escuta só a si mesmo
... esse amor não pode acabar. Será como ficar com a cabeça, mas sem um coração. O coração nos aparta da vida sem sentido.
olhei para baixo, ele se desamarrou de mim
Tenho medo. Nunca lhe falei, mas tenho medo. Quando sentirá vontade de se livrar de mim e do seu fio pretu? Um fio misturado de pretu num é cinza... é pretu.
num disse nada. levantou do lugar que estava e me escutava. caminhou até a janela, num dava para saber se o dia acordava ou a noite se deitava, num dava para saber o que ele pensava. voltou
deitou do mesmo lado que gosta de dormir e olhou em mim, como eu quero ser olhada, E quem, nesta Villa, não é misturado do negro ou do índio, meu amor? E quem não é... vai ficar. Só tem um jeito de vosmecê se livrar de mim...
num inventei esse medo. eu precisava saber como ele iria embora e quando se iria. num sei se ele vai se ir, acho que vai. num queria, mas fazer o quê? um dia desses ele se vai embora, mas eu disse o que precisava dizer, Num quero perder esse seu paladar doce até a perfeição do sabor nem vou lhe mandar embora, mas preciso lhe avisar que se vosmecê me faltar num vou morrer. Vou continuar resistindo. A solidão me acompanha desde muito piquininina, gosto do colo de vosmecê. Vou chorar muito, mas num vou morrer.
Vosmecê é a ventania, Catita.
Mas, então... vosmecê ainda num disse: Como me livro de vosmecê?
foi a vez dele sentir o medo da solidão da vida na cama, uma cama cheia pode estar vazia
Basta falar...
Falar o quê?
Eu não quero mais.
escutei mais atenta que pude ficar. queria saber se num estava fingindo, mas num tem como saber
o beijei
e num consegui saber do beijo
o abracei
e num consegui saber do abraço se era mentira ou verdade. o amor finge melhor que o ódio. é mais fácil desapegar do amor que do ódio
Simples assim?
Sim.
E vosmecê num vai querer saber por que eu num quero mais vosmecê?
Sim... não... não sei...
Então num vai perguntar?
O quê?
Num vai perguntar por que eu estou indo embora?
Vosmecê está indo embora?
Não, mas se estivesse...
Chega, Carolina Augusta. Eu prometo que vou perguntar.
E vosmecê quer que eu vá embora?
Não, Catita Augusta. Vamos dormir.
Isso num é brincadeira. Vosmecê promete?
Prometo.
a mentira finge melhor que a verdade
_____________________
Ensaio 97B – 2ª edição 1ª reimpressão
histórias de avoinha: o convencimento pela força é a morte da vida
a mentira finge melhor que a verdade
Ensaio 98B – 2ª edição 1ª reimpressão
Ensaio 98B – 2ª edição 1ª reimpressão
baitasar
sentia seus dedos me desenhando ansiosos e atrevidos. num falava nada, apenas bisbilhotava minhas curvas e provava meus gostos. os beijos cada vez mais quentes e molhados. abraços macios e amorosos. seu corpo me procurava cada vez mais duro e confiante
adoro que ele me quer, adoro que ele gosta
afrouxava e apertava o seu rosto no meu, sussurrava para me amar, eu respondia que queria. e ele me comia como o amor deve comer: com os olhos, os cheiros e os gostos enquanto as palavras seguiam cochichando incandescentes indecências. eu respondia que sim, quero mais e mais. ele me amava e descarregava estrelas. elas brilhavam. eu brilhava. uma plêiade de estrelas para bisbilhotar. as águas das estrelas esparramadas dentro de mim desciam dos meus olhos
os pedaços tricotados de meu corpo e os fios das lembranças adormeciam dentro daquele novelo amoroso e cuidadoso. esquecia de mi mesma. num era mais só eu, esse homem acordou todas as mulheres que carrego. ele me entrava sem rancor, sem mágoas, sem medo, me entrava pelos olhos e pelos pés descalços
gostava assim, gosto assim... lá embaixo, a luz e as estrelas acendiam os brilhos na escuridão. os barulhos da villa num subiam o morro, ficava calada e os meus velhos medos podiam ficar em silêncio. um bom tempo de viver antes de morrer. queria que todas as vidas pudessem viver uma boa vida antes de morrer, sem dono e sem castigo de dono
ele num é meu dono
num sou seu gado nem seu campo semeado, apenas me quer. deseja a mulher que eu sou e fica em mim, bem dentro: o homem e a mulher, ele e eu. um colo que num dura para sempre, mas afinal, nada dura para sempre. enquanto durar vou viver esse tempo das águas se derramando do amor, cada vez se despejando até esvaziar sem perder a graça, resistindo sem pessimismo
nos arrastávamos por cima da cama, os barulhos da vida borbulhando sem ensaios ou mentiras fascinantes, os abraços macios, o gosto doce, extenuados e cheios um no outro. acalmados. até que a vontade voltava. um quarto para meia noite. um quarto para uma noite toda. as estrelas. um piquenique de estrelas para sempre. embrulhava os braços na cintura do meu homem e o puxava mais e mais, sempre mais. um homem grande até bem fundo. lá estavam elas, as estrelas me entravam. eu queria mais, sempre agradeci por querer mais, queria o abrigo do frio e o silêncio na escuridão, queria as águas do rio, queria uma infindável noite de estrelas
ele me dava mais dele, sempre mais, e a vida sem fim começava. eu apertava minhas pernas, Quero sentir as coxas de vosmecê, depois abria e sorria. é bom sorrir para as estrelas, ter no amor a vontade de sorrir. é bom fechar os olhos sem sombras, sem medo de se abrir. é bom fechar os olhos para se mostrar, abrir para se descobrir
aprendi piquininina a me esconder atrás dos olhos fechados. os barulhos do silêncio continuam me tocando, num vou jamais esquecer, mas já posso sorrir com outras lembranças. é isso, num posso deslembrar, mas posso querer outras lembranças, Sai da pior das misérias, dizia nas conversas do sonho que se repetia, Eu sei, minha menina, ele respondia. jurava que entendia, mas num podia
encolhia os joelhos até encostar no queixo e o convidava com a janela dos olhos brilhando, as mãos puxavam mais e mais, a língua chamando, Vem... vem... me come, e com as mão trêmulas conversávamos sem falar, chispas acariciando tudo
até que falávamos
Adoro esses seus olhos amêndoados.
eu respondia com as palavras que tinha na boca, Quero mais, puxava mais e mais. ele escutava meus abraços, me entrava mais e mais
o silêncio acabou, mas o medo da escuridão... esse continua
somos uma mistura colorida da preta e do branco, amalgamados do jeito que a terra gosta. o céu das pessoas boas e brancas continua nos resistindo, num gosta da mistura com os miseráveis que elas inventaram com fome e sangue. preferem continuar derramando castigos e correntes para amansarem os pretus e a indiada. um espantoso desperdício de gentes desfeitas em borboletas empalhadas
estava feliz por ter resistido, sempre vale a pena resistir, Tem muito tempo que o barão num me amava do jeito que se entrega todo... sem pressa que termine, ele sorriu. é bom estar na cama do amor com um homem que sorri
Preciso conhecer essa Liberata. Ela me salvou.
sorri para a lembrança da liberata
é bom estar sorrindo junto com o homem da sua cama do amor. um sorriso cuida do outro. já estava deitado ao meu lado, a cabeça em meu peito, os dedos brincando com meus pelos, respondi para sua lembrança, Ela só deu conta de ajudar com o que sabe. E vosmecê deu conta acreditando.
Confiei em vosmecê.
na cama do amor o silêncio num pode ser desperdiçado. muito menos, pode ser tempo perdido, Vem cá...
Não sei...
Num sabe?
Não sei se consigo...
É?
eu mais ele estávamos afundados na alegria atrevida da cama que zela desavergonhada pelas palavras mais indecentes do fogo, cuida para que sejam soltas e repetidas, girando e girando, subindo como piquininos rolos de fumaça, até que um assopro descarrega as faíscas da ventania
olhávamos o rabo dos olhos um do outro com um sorriso que deseja provocar. num queríamos nenhuma trégua, num estávamos prontos para a paz do sono. num víamos nada além das quatro estrelas piquinininas brilhando, Vosmecê bem que pode me dar as últimas gotas do seu amor, E vosmecê vai me dar o quê, Mais um traquejo mágico, misturamos nossas lágrimas de felicidade enquanto os mistérios do novo dia estalavam os alaridos das outras vidas. eu o assanhei assanhei assanhei e estremeci. depois , fechei os olhos sorrindo
queria esse tempo para sempre
o tempo se acaba até que fecha os olhos e parece dormir. sabia tudo que esse homem perdia para me ter em sua cama de esposa. é como ir para outro lugar que num existe, só você vê. um lugar que vejo quando tenho em mim as últimas gotas do seu corpo suado. a cabeça acalmada com o piquininino que já está em mim, semeado por uma força muito mais grande que as correntes, uma fome muito maior que o medo por qualquer castigo. eu sinto que a vida me brota e as raízes me agarram com mais força enquanto os dois dormem agarrados em meu corpo
abri os olhos assustada
quando ficará farto de mim, me pergunto, quando eu engordar? depois que nascer o piquininino? e se for um muriquinho pretu? e se for uma piquininina? até onde irá o seu amor de pai? nunca falei sobre isso, sinto medo. quando sentirá vontade de se livrar de mim e do fio? fecho os olhos para me esconder
caminho pelo porão do negreiro. um pretu afogado nas águas do seu vômito treme e sacode o barco nú
outro pretu perdeu os sentidos da vida na volta da tina com água, quem tem força para ir num tem para voltar
outro e tantos outros
sempre o mesmo sonho, quantos mistérios sobre o destino de homens e mulheres. caminhos de lutas todos os dias contra a fome que acorrenta os miseráveis nas mãos com anéis: bestas desvastadoras e traiçoeiras da doença e da morte. assassinatos cívicos em nome da civilização hipócrita que se finge consciência da realidade
outro forçava com desespero os dentes até os pés: queria arrancar os pés com dentadas para fugir das correntes e se atirar nas águas da estrada
isso num é bem pensar com alegria e divertimento a vida
num quero lembrar mãinha arrastada do porão até o alçapão sem nenhum grito, mas num posso deslembrar. ela já num tinha grito. passou os gritos e as lembranças dentro da minha boca piquininina e assustada, seu último beijo assoprado. a boca cansada e amarelada apertou a minha e se jogou para dentro de mim. o que sobrou dela foi o que aqueles capetas deformados puxavam pelas canelas pretas: tetas murchas, braços caídos, cabeça quicando no chão. um corpo oco foi arrastado e jogado nas águas porque tudo dela já estava em mim
por que eu vivo? eu vivo porque mãinha vive
resisti porque esqueci de mim mesma. minha obrigação é sobreviver. ainda num acordei daquela escuridão, espero poder acordar para bòwò fún ìyá mi
a dor num parece querer se desaproveitar de mim. o sopro molhado de mãinha ainda está quente, as mãos de ìyá mi pararam de ter vida, mas os olhos num se fecharam. ela partiu me olhando, pedindo que eu resistisse. eu num penso no navio porque quero pensar, penso porque num quero esquecer
ainda num desci do negreiro
Esta cama é mais que uma cama, minha preta.
acordei do sono quando alguém me estendia a mão e o olhar. olhei de retorno procurando liberata, sem dureza ou medo, resolvi arriscar e descer do negreiro
A cama... o que ela é?
Uma declaração de amor.
fechei os olhos. enfiei os dedos em seus cabelos, eles num me resistiam. quem estava mentindo? como saber? num sei saber antes de saber. abri os olhos. estava a meio caminho de acreditar e num acreditar. é assim comigo, o anúncio do amor à vida ou a confissão que tudo isso é apenas um desmaio da vida, é tudo ou nada
Te amo, minha preta. Te amo. Não tenho outras palavras para dizer o que sinto. É assim que eu quero, todas as noites vosmecê colada em mim. Te amo, Catita.
num queria fechar os olhos. poderia num ser sempre assim e se num existisse esse homem, Eu quero lhe falar.
ergueu a cabeça do jeito mais sério que já tinha visto ele fazer, respondeu cuidadoso, acho até que a voz lhe tremeu as mãos, Fale, então...
é isso, pedi a palavra e precisava fazer uso das palavras. gostava de ter esse morro todo só para nós. juntos, nesta casa. isso me agradava, mas ainda havia o passado querendo abrir a porta. podia ouvir as conversas, U qui tu qué com esse branquela, e o futuro sem nenhuma garantia
Vosmecê está em mim sem me entender. Eu tenho tantas vidas em mim quantos nomes me chamam: ìyá mi ayomide catita carolina augusta. Choro só de lembrar as vidas de cada nome e me pergunto se terei mais nomes, é tanta saudade destas vidas. Tenho saudade das vidas que num vou viver.
o jeito do amor é doce e amargo. num queria experimentar mais nada amargo, mas o que é alegria ou tristeza? o que é de verdade se a mentira também é verdade? num sei o que vou sentir se tudo isso é mentira
Se for chorar lembra que eu te amo, minha preta.
Esse é o meu nome. Vosmecê acertou o meu nome. Um nome que num pode mudar, num quer mudar. Essa cama num é mais que uma cama, um nome num é só um jeito de chamar, é mais que um jeito de anunciar...
É uma declaração de amor.
Até quando?
Até quando?
Sim... até quando?
Não sei... quem sabe até quando tem amor? Eu quero ter o amor de vosmecê até quando morrer.
E se vosmecê ficar farto desse amor antes de morrer?
Então, estarei morto...
cada um escuta só a si mesmo
... esse amor não pode acabar. Será como ficar com a cabeça, mas sem um coração. O coração nos aparta da vida sem sentido.
olhei para baixo, ele se desamarrou de mim
Tenho medo. Nunca lhe falei, mas tenho medo. Quando sentirá vontade de se livrar de mim e do seu fio pretu? Um fio misturado de pretu num é cinza... é pretu.
num disse nada. levantou do lugar que estava e me escutava. caminhou até a janela, num dava para saber se o dia acordava ou a noite se deitava, num dava para saber o que ele pensava. voltou
deitou do mesmo lado que gosta de dormir e olhou em mim, como eu quero ser olhada, E quem, nesta Villa, não é misturado do negro ou do índio, meu amor? E quem não é... vai ficar. Só tem um jeito de vosmecê se livrar de mim...
num inventei esse medo. eu precisava saber como ele iria embora e quando se iria. num sei se ele vai se ir, acho que vai. num queria, mas fazer o quê? um dia desses ele se vai embora, mas eu disse o que precisava dizer, Num quero perder esse seu paladar doce até a perfeição do sabor nem vou lhe mandar embora, mas preciso lhe avisar que se vosmecê me faltar num vou morrer. Vou continuar resistindo. A solidão me acompanha desde muito piquininina, gosto do colo de vosmecê. Vou chorar muito, mas num vou morrer.
Vosmecê é a ventania, Catita.
Mas, então... vosmecê ainda num disse: Como me livro de vosmecê?
foi a vez dele sentir o medo da solidão da vida na cama, uma cama cheia pode estar vazia
Basta falar...
Falar o quê?
Eu não quero mais.
escutei mais atenta que pude ficar. queria saber se num estava fingindo, mas num tem como saber
o beijei
e num consegui saber do beijo
o abracei
e num consegui saber do abraço se era mentira ou verdade. o amor finge melhor que o ódio. é mais fácil desapegar do amor que do ódio
Simples assim?
Sim.
E vosmecê num vai querer saber por que eu num quero mais vosmecê?
Sim... não... não sei...
Então num vai perguntar?
O quê?
Num vai perguntar por que eu estou indo embora?
Vosmecê está indo embora?
Não, mas se estivesse...
Chega, Carolina Augusta. Eu prometo que vou perguntar.
E vosmecê quer que eu vá embora?
Não, Catita Augusta. Vamos dormir.
Isso num é brincadeira. Vosmecê promete?
Prometo.
a mentira finge melhor que a verdade
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