Albert Camus
6. Por cima das colinas
Por cima das colinas que separam Marengo do mar, o céu estava cheio de tonalidades de vermelho. E o vento, que passava por cima delas, trazia um cheiro de sal. Era um bonito dia que se estava a preparar. Há muito tempo que não vinha ao campo e teria tido imenso prazer em passear, se não fosse a mãe. Mas pus-me à espera no pátio, debaixo de uma árvore. Respirava o odor da terra fresca e já não tinha sono. Pensei nos colegas do escritório. A esta hora levantavam-se para ir para o trabalho: para mim, era sempre a hora mais difícil. Pensei um pouco mais nestas coisas, mas um sino que tocava no interior dos edifícios distraiu-me.
Houve uma confusão de movimentos por detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um pouco mais alto: principiava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio e veio dizer que o director estava à minha espera. Fui ao escritório deste.
Mandou-me assinar vários documentos. Reparei que estava vestido de preto, com calças de fantasia. Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: "Os empregados da agência funerária já cá estão. Vou lhes dizer para fecharem o caixão. Quer ver a sua mãe pela última vez?" Disse que não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone:
"Bigeac, diga aos homens que podem ir".
Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro..
Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as pernas. Informou-me que estaríamos sós, eu e ele, apenas com a presença da enfermeira de serviço. Em princípio, os pensionistas não deviam assistir aos enterros. Deixava-os apenas velar: "uma questão de humanidade", observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um velho amigo da minha mãe: "Tomás Perez". Aqui, o director sorriu. Disse-me: "Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas ele e sua mãe andavam sempre juntos.
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A Constatação do Absurdo
Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.
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Camus, Albert, 1913-1960.
O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:
5.O Estrangeiro: Ficamos assim durante longos instantes - Albert Camus
7.O Estrangeiro: No asilo - Albert Camus
Capítulo 1
6. Por cima das colinas
Por cima das colinas que separam Marengo do mar, o céu estava cheio de tonalidades de vermelho. E o vento, que passava por cima delas, trazia um cheiro de sal. Era um bonito dia que se estava a preparar. Há muito tempo que não vinha ao campo e teria tido imenso prazer em passear, se não fosse a mãe. Mas pus-me à espera no pátio, debaixo de uma árvore. Respirava o odor da terra fresca e já não tinha sono. Pensei nos colegas do escritório. A esta hora levantavam-se para ir para o trabalho: para mim, era sempre a hora mais difícil. Pensei um pouco mais nestas coisas, mas um sino que tocava no interior dos edifícios distraiu-me.
Houve uma confusão de movimentos por detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um pouco mais alto: principiava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio e veio dizer que o director estava à minha espera. Fui ao escritório deste.
Mandou-me assinar vários documentos. Reparei que estava vestido de preto, com calças de fantasia. Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: "Os empregados da agência funerária já cá estão. Vou lhes dizer para fecharem o caixão. Quer ver a sua mãe pela última vez?" Disse que não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone:
"Bigeac, diga aos homens que podem ir".
Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro..
Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as pernas. Informou-me que estaríamos sós, eu e ele, apenas com a presença da enfermeira de serviço. Em princípio, os pensionistas não deviam assistir aos enterros. Deixava-os apenas velar: "uma questão de humanidade", observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um velho amigo da minha mãe: "Tomás Perez". Aqui, o director sorriu. Disse-me: "Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas ele e sua mãe andavam sempre juntos.
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A Constatação do Absurdo
Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.
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Camus, Albert, 1913-1960.
O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:
5.O Estrangeiro: Ficamos assim durante longos instantes - Albert Camus
7.O Estrangeiro: No asilo - Albert Camus
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