quarta-feira, 10 de maio de 2017

12.O Estrangeiro: De resto, antes de me perguntar - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 3


12. De resto, antes de me perguntar




De resto, antes de me perguntar, queria saber o que eu pensava desta história toda. Respondi que não pensava nada, mas que era muito interessante. Perguntou-me se eu achava que ela o tinha enganado. A mim, parecia-me bem que sim. Se achava que ele a devia castigar e o que faria eu, se estivesse no seu lugar. Disse-lhe que nunca se podia saber, mas compreendia que ele a quisesse castigar. Bebi ainda um pouco de vinho. Ele acendeu um cigarro e contou-me a ideia que tinha em mente. Queria escrever-lhe uma carta "dando uma no cravo e outra na ferradura". Depois, quando ela voltasse, teria relações com ela, como habitualmente e, "mesmo no fim", cuspir-lhe-ia na cara, e pô-la-ia na rua. Achei que, efetivamente, seria um bom castigo. Em seguida disse-me que não se sentia capaz de escrever a carta e que pensara em mim para a redigir. Como eu não dizia nada, perguntou-me se me importava de o fazer agora mesmo e eu respondi que não. 

Depois de beber um copo de vinho, Raimundo levantou-se. Afastou os pratos e os restos de chouriço frio que tínhamos deixado. Limpou cuidadosamente a toalha encerada da mesa. Tirou de uma gaveta da mesa de cabeceira uma folha de papel quadriculado, um sobrescrito amarelo, uma pequena caneta vermelha e um tinteiro quadrado de tinta roxa. Quando me disse o nome da mulher, percebi que era Moura. Escrevi a carta.

Escrevi-a um pouco ao acaso, mas apliquei-me o mais possível para contentar Raimundo, pois não tinha razão nenhuma para não o contentar. Depois li a carta em voz alta. 

Escutou-me a fumar, acenando com a cabeça, e em seguida pediu-me para a reler. Disse: "Já calculava que tu conhecias bem a vida". Não percebi a princípio que me estava a tratar por tu. Só dei por isso, quando me declarou: "Agora, ficas meu amigo". Repetiu a frase e eu respondi: "Está bem". 

Era-me indiferente ser ou não amigo dele e, como isso parecia dar-lhe gosto... Fechou o sobrescrito e acabamos o vinho que ainda havia. Depois ficamos uns momentos a fumar, sem dizer uma palavra. Lá fora tudo estava calmo e ouvimos o ruído de um automóvel que passava. Eu disse: "É tarde". 

Raimundo era da mesma opinião. Observou que o tempo passava depressa e, em certo sentido, era verdade. Estava com sono, mas custava-me levantar-me. Devia estar com um ar cansado, porque o Raimundo me disse que devia ter mão em mim.

Ao princípio, não compreendi. Explicou-me então que soubera da morte da minha mãe, mas que era uma coisa que, mais dia menos dia, tinha que acontecer. Era essa, também, a minha opinião. 


Levantei-me e Raimundo deu-me um forte aperto de mão, dizendo que entre homens, compreendíamo-nos sempre. Ao sair de casa dele fechei a porta e fiquei uns instantes às escuras, no patamar. A casa estava calma e das profundezas da gaiola das escadas, subia um sopro úmido e obscuro. Ouvia apenas o sangue latejando-me nos ouvidos e deixei-me ali ficar, imóvel. Mas no quarto do velho Salamano, o cão gemeu surdamente. No coração desta casa cheia de sonos, o queixume subiu lentamente, como uma flor nascida do silêncio.



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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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