quinta-feira, 4 de maio de 2017

31. O Livro dos Abraços - O tempo - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


31. O Livro dos Abraços




O tempo

Numa dessas noites — me conta Alejandra Adoum — a mãe de Alina estava se preparando para sair. Alina a olhava, enquanto a mãe, sentada na frente do espelho, pintava os lábios, as sobrancelhas e passava pó-de-arroz no rosto. Depois a mãe experimentou um vestido, e outro, e pôs um colar de coral negro, e uma tiara nos cabelos, e irradiava uma luz limpa e perfumada. Alina não desgrudava os olhos.

Como eu gostaria de ter a tua idade — disse Alina.

Eu, em compensação... — sorriu a mãe — daria qualquer coisa para ter quatro anos, como você.

Naquela noite, ao regressar, a mãe encontrou-a acordada. Alina abraçou suas pernas com força.

Morro de pena de você, mamãe — disse, soluçando.



Ressurreições/1

Infarto agudo de miocárdio, garra da morte no centro do peito. Passei duas semanas mergulhado em uma cama de hospital, em Barcelona. Então sacrifiquei minha desmantelada agenda Porky 2, pois a coitada não aguentava mais, e a mudança de caderneta de endereços transformou-se numa visita aos anos transcorridos desde o sacrifício da Porky 1. Enquanto passava a limpo nomes e endereços e telefones para a agenda nova, eu ia passando a limpo também o entrevero dos tempos e das gentes que acabava de viver, um turbilhão de alegrias e feridas, todas muito, sempre muito, e esse foi um longo duelo entre os mortos que mortos ficaram na zona morta do meu coração, e uma enorme, muito mais enorme celebração dos vivos que acendiam meu sangue e aumentavam meu coração sobrevivido. E não tinha nada de mais, nada de mal, que meu coração tivesse se quebrado, de tão usado.



A casa


1984 tinha sido um ano de merda. Antes do infarto, tinham me operado as costas; e Helena tinha perdido um bebê no meio do caminho. Quando Helena perdeu o bebê, a roseira da varanda secou. As outras plantas também morreram, todas, uma atrás da outra, apesar de serem regadas a cada dia.

A casa parecia maldita. E no entanto, Nani e Alfredo Ahuerma tinham passado por lá alguns dias, e ao ir embora tinham escrito no espelho: Nesta casa fomos felizes.

E também nós tínhamos encontrado alegria naquela casa de repente amaldiçoada pelos ventos ruins, e a alegria tinha sabido ser mais poderosa que a dúvida e melhor que a memória, e por isso mesmo aquela casa entristecida, aquela casa barata e feia, num bairro barato e feio, era sagrada. 




A perda


Helena sonhou que estava na infância, e não via nada. Apalpando na escuridão, ela pedia ajuda, pedia aos gritos luz, mas ninguém acendia as luzes. Naquele negror não podia encontrar as suas coisas, que estavam esparramadas pela casa inteira e por toda a cidade, e ela buscava o que era dela às cegas, na cerração, e também buscava algodão ou trapos ou qualquer coisa, porque estava perdendo sangue, rios de sangue, entre as pernas, muito sangue, cada vez mais sangue, e embora não visse nada, sentia aquele rio vermelho e espesso que se soltava de seu corpo e se perdia nas trevas.



O exorcismo


Rosário, a feiticeira andaluza, estava há muitos anos lutando contra os demônios. O pior dos satanazes tinha sido seu sogro. Aquele malvado tinha morrido estendido na cama, na noite em que exclamou: Me cago en Diós!, e o crucifixo de bronze soltou-se da parede e quebrou-lhe o crânio.

Rosário se ofereceu para desendemoniar-nos. Jogou no lixo a nossa bela máscara mexicana de Lúcifer e esparramou uma fumaçarada de arruda, manjerona e louro bendito. Depois pregou na porta uma ferradura com as pontas para fora, pendurou alguns alhos e derramou, aqui e acolá, punhadinhos de sal e montões de fé.

Ao mau tempo, cara boa, e para a fome, viola ― disse.

E disse que dali para a frente era conosco, porque a sorte não ajuda quem não a ajuda a ajudar.

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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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32. O Livro dos Abraços - Os adeuses - Eduardo Galeano

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