terça-feira, 23 de maio de 2017

13.O Estrangeiro: Trabalhei muito, durante toda a semana - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 4


13. Trabalhei muito, durante toda a semana




TRABALHEI muito, durante toda a semana. Raimundo veio visitar-me, dizendo que mandara a carta. Fui duas vezes ao cinema com o Manuel, que nem sempre compreende lá muito bem o que se passa na tela. Preciso de lhe ir explicando o filme. Ontem foi sábado e, como ficara combinado, a Maria veio a minha casa. Desejei-a intensamente, porque trazia um vestido às riscas brancas e encarnadas e sandálias de couro. Adivinhavam-se-lhe os seios duros e o queimado do sol dava-lhe uma cara de flor. 

Tomamos um autocarro e fomos para uma praia cercada de rochedos e com canteiros de rosas do lado da terra, a alguns quilômetros de Argel. O sol às quatro horas não estava quente demais, mas a água estava morna, com pequenas ondas longas e preguiçosas. Maria ensinou-me um jogo. Era preciso, nadando, beber à cresta das ondas, acumular toda a espuma na boca e, pondo-nos em seguida de costas, projetá-la para o céu. Isto fazia uma espécie de renda espumosa que desaparecia no ar ou, como uma chuva quente, nos caía na cara. Mas ao fim de algum tempo, tinha a boca a arder devido ao sal. Maria veio então ter comigo e colou-se a mim, na água. Beijamo-nos. A língua dela refrescava-me os beiços e rolamos durante alguns momentos nas vagas. 


Quando nos vestimos na praia, Maria olhava-me com olhos brilhantes. Voltei a beijá-la. A partir daí, não falamos mais. Apertei-a contra mim e só queríamos apanhar depressa um autocarro, ir para minha casa e deitarmo-nos na minha cama. Deixei a janela aberta, e era bom, sentir aquela noite de verão escorregar ao longo dos nossos corpos morenos. 

Esta manhã, Maria ficou comigo e combinamos almoçar juntos. Desci à rua para ir comprar carne. Ao voltar, ouvi uma voz de mulher no quarto de Raimundo. Pouco depois, o velho Salamano ralhou com o cão, ouvimos um barulho de botas e de patas nos degraus de madeira da escada e depois: "Bandido, cão nojento", saíram para a rua. Contei-lhe a história do velho e ela riu-se. Vestira um dos meus pijamas e estava de mangas arregaçadas. Quando se riu, voltei a sentir desejo por ela. Instantes depois, perguntou-me se eu a amava. Respondi-Lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não: Ficou com um ar triste. Mas, ao preparar o almoço, e sem que viesse a propósito, voltou a rir-se de tal forma, que a beijei outra vez. Foi neste momento que rebentou a discussão em casa do Raimundo. 

Ouviu-se primeiro uma voz estridente de mulher e depois a de Raimundo, dizendo: "Enganaste-me, enganaste-me. Agora é que eu te vou ensinar..." 

Uns ruídos surdos e a mulher pôs-se a berrar, mas de uma maneira tão horrível, que o átrio se encheu de gente. A mulher continuava a gritar e Raimundo continuava a bater-lhe. Maria disse-me que era terrível e eu não respondi.

Pediu-me para ir chamar um polícia, mas eu respondi-lhe que não gostava dos polícias. Mas o meu vizinho do segundo andar, que é canalizador, encarregou-se de ir buscar um. Este bateu à porta de Raimundo e não se ouviu mais nada. Bateu com mais força e, ao fim de alguns instantes, a mulher chorou e Raimundo abriu. Tinha um cigarro na boca e um ar melífluo. A mulher precipitou-se para a porta e declarou ao polícia que Raimundo lhe tinha batido. "O teu nome", disse o polícia. Raimundo respondeu-lhe. "Tira o cigarro da boca enquanto me estás a falar", disse o polícia. Raimundo hesitou, olhou para mim e ficou com o cigarro na boca. Neste momento, o polícia deu-lhe uma bofetada com toda a força, em plena cara. O cigarro foi cair alguns metros mais adiante. Raimundo mudou de expressão, mas não disse nada, até que perguntou com uma voz humilde se podia ir apanhar o cigarro. O agente declarou que sim e acrescentou: "Mas ficas a saber que um polícia, não é nenhum fantoche". Entretanto a rapariga chorava, repetindo: "Ele bateu-me, é um malandro". "Sr. Guarda, perguntou, Raimundo então, é da lei, chamar malandro a um homem?" 

Mas o polícia mandou-lhe que "calasse o bico". 

Raimundo voltou-se para a mulher e disse: "Não perdes pela demora, pequena, está descansada." O polícia disse-lhe que se calasse, que a mulher tinha que se ir embora e que ele ficasse no quarto até receber convocação do comissariado. Acrescentou que Raimundo devia ter vergonha de estar bêbedo ao ponto de todo ele tremer. Raimundo explicou: "Não estou bêbedo, sr. guarda. Mas diante de si, não posso deixar de tremer". Fechou a porta e todos se foram embora. Maria e eu acabamos de preparar o nosso almoço. Como ela não estava com fome, comi quase tudo. Saiu à uma hora e ainda dormi um bocado. 

Pelas três horas bateram à porta e Raimundo entrou. Deixei-me ficar deitado. Sentou-se na borda da cama. Ficou uns instantes sem falar e eu perguntei-lhe como é que o caso se tinha passado. Contou-me que fizera o que fora planeado, mas que ela lhe dera uma bofetada e que então começara a bater-lhe. Quanto ao resto, eu tinha-o visto com os meus próprios olhos. Disse-lhe que me parecia que, agora que ela estava castigada, já podia estar contente.

Era também a opinião dele, e observou ainda que, por mais que a polícia fizesse, já ninguém lhe tirava a pancada que recebera. Acrescentou que conhecia os polícias e sabia perfeitamente como se deve lidar com eles. Perguntou-me então se eu julgara que ele ia responder à bofetada do polícia. Respondi-lhe que não julgara absolutamente nada e que, aliás, não gostava dos polícias. Raimundo pareceu ficar muito contente. Perguntou-me se queria sair com ele. Levantei-me e comecei-me a pentear. Disse que era preciso que eu servisse de testemunha. A mim, tanto se me dava, mas não sabia o que havia de dizer. Na opinião de Raimundo, bastava declarar que a mulher o enganara. Aceitei ser testemunha. 

Saímos e Raimundo ofereceu-me um copo de aguardente. Depois quis jogar uma partida de bilhar e ganhou-me por pouco. A seguir, queria ir a um bordel, mas eu disse que não, porque não tinha vontade. Então voltamos lentamente para casa e ele voltou a dizer até que ponto se sentia contente por ter conseguido castigar a amante. Achei-o muito simpático comigo e pensei que era um momento bem agradável. 

Distingui ao longe, na soleira da porta, o velho Salamano com um ar agitado. Quando nos aproximamos, reparei que não estava com o cão. Olhava para todos os lados, dava voltas sobre si mesmo, tentava penetrar com os olhos na escuridão do corredor, resmungava palavras sem nexo e recomeçava a observar a rua com os seus pequenos olhos avermelhados. Quando Raimundo lhe perguntou o que se passava, não respondeu logo a seguir. Ouvi-o vagamente murmurar: "Bandido, cão nojento", e continuou a agitar-se. Perguntei-lhe onde estava o cão. Respondeu-me bruscamente que se fora embora. E depois, de repente, pôs-se a falar muito: "Levei-o como de costume ao Campo das Manobras. Em volta das barracas da feira, havia muita gente. Parei um bocado para olhar «o Rei da Evasão». E quando me quis ir embora, não o vi. Há muito tempo que lhe queria comprar uma coleira mais pequena. Mas nunca pensei que esse cão nojento fugisse desta maneira". 

Raimundo explicou-lhe então que o cão possivelmente se perdera e que havia de voltar. Citou-lhe vários exemplos de cães que tinham percorrido dezenas de quilômetros para encontrar os donos. Apesar disso, o velho estava cada vez mais agitado.

"Vão apanhá-lo, com certeza. Ainda, se alguém o recolhesse... Mas não! Com aquelas feridas, enoja toda a gente. A carroça leva-o, tenho a certeza". Eu disse-lhe então que se dirigisse à Câmara e que lho devolviam, caso pagasse o imposto. Perguntou-me se este imposto era muito caro: Eu não sabia. Neste momento, encolerizou-se: "Dar dinheiro por aquele cão nojento?! Ele que rebente para aí!" E pôs-se a insultá-lo. Raimundo riu e entrou em casa. Segui-o, e despedimo-nos à porta dos nossos quartos. Pouco depois ouvi os passos do velho e bateram à porta. Fui abrir e ele ficou uns instantes a olhar para mim. Disse: 

- "Desculpe, desculpe". Convidei-o a entrar, mas ele não quis. Olhava para as pontas dos pés e tremiam-lhe as mãos. Olhando para o lado, perguntou: "Não o vão apanhar, pois não, sr. Meursault? Vão-mo dar outra vez, não vão? O que vai ser de mim?! O que vai ser de mim?!" Disse-lhe que os cães ficavam durante três dias na câmara à disposição dos donos e que, depois disso, lhes davam o destino que melhor lhes parecia. Olhou para mim sem dizer uma palavra. Depois, disse: "Boas noites". Fechou a porta e ouvi-o andar de um lado para o outro. A cama dele rangeu. E, pelo estranho barulho que me chegava através da parede, compreendi que estava a chorar. Não sei porquê, pensei na minha mãe. Mas no dia seguinte, precisava de me levantar cedo. Não tinha fome e deitei-me sem jantar.


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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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1.O Estrangeiro: Hoje, minha mãe morreu - Albert Camus


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