Simone de Beauvoir
8. Fatos e Mitos
: na grande maioria das espécies
NA GRANDE MAIORIA DAS ESPÉCIES, os organismos masculinos e femininos cooperam em vista da reprodução. São fundamentalmente definidos pelos gametas que produzem. Em algumas algas e em alguns cogumelos, as células que fusionam para produzir o ovo são idênticas; esses casos de isogamia são significativos pelo fato de manifestarem a equivalência basal dos gametas; de maneira geral estes são diferençados, mas sua analogia permanece impressionante. Espermatozoides e óvulos resultam de uma evolução de células primitivamente idênticas. O desenvolvimento das células femininas em oócitos difere do dos espermatozoides por fenômenos protoplásmicos, mas os fenômenos nucleares são sensivelmente os mesmos. A ideia expressa em 1903 pelo biólogo Ancel é considerada válida ainda hoje: "Uma célula progerminadora indiferençada tornar-se-á masculina ou feminina segundo as condições em que encontra na glândula genital, no momento de sua aparição, condições reguladas pela transformação de certo número de células epiteliais em elementos nutridores, elaboradores de um material especial". Esse parentesco originário exprime-se na estrutura dos dois gametas que, no interior de cada espécie, comportam o mesmo número de cromossomos. No momento da fecundação, os dois núcleos confundem sua substância e em cada um deles se opera uma redução dos cromossomos que ficam limitados à metade de seu número primitivo. Essa redução produz-se em ambos de maneira análoga, redundando as duas últimas divisões do óvulo na formação dos glóbulos polares, o que equivale às duas últimas divisões do espermatozoide. Pensa-se hoje que, segundo a espécie, é o gameta masculino ou o feminino que decide da determinação do sexo. Entre os mamíferos é o espermatozoide que possui um cromossomo heterogêneo aos outros e cuja potencialidade é ora masculina, ora feminina. Quanto à transmissão dos caracteres hereditários, ela se efetua segundo as leis estatísticas de Mendel tanto pelo pai como pela mãe. O que cumpre notar é que nenhum dos gametas tem privilégio nesse encontro. Ambos sacrificam sua individualidade, absorvendo o ovo a totalidade de sua substância. Há portanto dois preconceitos muito comuns que — pelo menos nesse nível biológico fundamental — se evidenciam falsos: o primeiro é o da passividade da fêmea; a faísca viva não se acha encerrada em nenhum dos dois gametas: desprende-se do encontro deles. O núcleo do óvulo é um princípio vital exatamente simétrico ao do espermatozoide. O segundo preconceito contradiz o primeiro, o que não impede que muitas vezes coexistam: o de que a permanência da espécie é assegurada pela fêmea, tendo o princípio masculino uma existência explosiva e fugaz. Na realidade, o embrião perpetua o germe do pai tanto quanto o da mãe e os retransmite juntos aos descendentes, ora sob a forma masculina, ora sob a feminina. É, por assim dizer, um germe andrógino que, de geração em geração, sobrevive aos avatares individuais do soma.
Dito isso, cabe dizer que se observam diferenças secundárias das mais interessantes entre o óvulo e o espermatozoide; a singularidade essencial do óvulo consiste em estar carregado de materiais destinados a nutrir e proteger o embrião. Ele acumula reservas à custa das quais o feto construirá seus tecidos, reservas que não são uma substância viva e sim uma matéria inerte; disso resulta que apresenta uma forma maciça, esférica ou elipsoidal e é relativamente volumoso. Não se ignoram as dimensões que atinge o ovo do pássaro; na mulher o óvulo mede 13 mm de diâmetro, ao passo que no esperma humano encontram-se 60.000 espermatozoides por milímetro cúbico. A massa do espermatozoide é extremamente reduzida; ele possui uma cauda filiforme, uma cabecinha alongada, nenhuma substância estranha o entorpece, todo ele é vida. Sua estrutura vota-o à mobilidade; ao passo que o óvulo, em que se acha armazenado o futuro do feto, é um elemento fixo. Encerrado no organismo feminino ou suspenso em um meio exterior, aguarda passivamente a fecundação. Ê o gameta masculino que o procura. O espermatozoide é sempre uma célula nua; o óvulo, segundo as espécies, é protegido ou não por uma membrana, mas em todo caso, logo que entra em contato com ele, o espermatozoide empurra-o, fá-lo oscilar e infiltra-se nele. O gameta masculino abandona a cauda, a cabeça incha e num movimento giratório alcança o núcleo. Durante esse tempo, o ovo forma, de imediato, uma membrana, protegendo-se contra os outros espermatozoides. Entre os equinoides, em que a fecundação é externa, é fácil observar, em volta do óvulo que flutua inerte, a corrida dos espermatozoides que o cercam como uma auréola. Essa competição é também um fenômeno importante e encontrado na maioria das espécies. Muito menor do que o óvulo, o espermatozoide é geralmente emitido em quantidades muito mais consideráveis e cada óvulo tem vários pretendentes.
Assim, o óvulo, em seu princípio essencial, a saber, o núcleo, é superficialmente passivo; sua massa fechada sobre si mesma, encerrada em si mesma, evoca a espessura noturna e o repouso do em si; é sob a forma da esfera que os Antigos representavam o mundo fechado, o átomo opaco; imóvel, o óvulo espera. Ao contrário, o espermatozoide aberto, miúdo, ágil, representa a impaciência e a inquietação da existência. Não se deve deixar-se seduzir pelo prazer das alegorias; assimilou-se, por vezes, o óvulo à imanência, o espermatozoide à transcendência. Mas é renunciando à sua transcendência, à sua mobilidade, que este penetra no elemento feminino. É sugado e castrado pela massa inerte que o absorve depois de o ter mutilado, arrancando-lhe a cauda. Eis uma ação mágica, inquietante como todas as ações passivas; ao passo que a atividade do gameta masculino é racional; é um movimento mensurável em termos de tempo e de espaço. Na verdade, não são isso mais do que divagações. Gametas masculinos ou femininos fundem-se no ovo. Juntos, eles se suprimem em sua totalidade. É um erro pretender que o óvulo absorve vorazmente o gameta masculino e igualmente falso dizer que este se anexa vitoriosamente as reservas da célula feminina, porquanto, no ato que os confunde, a individualidade de um e de outro desaparece. E, sem dúvida, o movimento apresenta-se ao pensamento mecanicista como o fenômeno racional por excelência; mas para a física moderna não se trata de uma ideia mais clara do que a de uma ação a distância. Ignora-se, aliás, o pormenor das ações físico-químicas que redundam em encontro fecundante. É possível, entretanto, reter uma indicação válida dessa confrontação. Há, na vida, dois movimentos que se conjugam; ela só se mantém em se superando e só se supera com a condição de se manter. Esses dois momentos realizam-se sempre juntos, pensá-los separados é pensar abstratamente. Entretanto, é ora um, ora outro que domina. Em sua união, os dois gametas superam-se e perpetuam-se ao mesmo tempo, mas o óvulo, em sua estrutura, antecipa as necessidades futuras. É constituído de maneira a nutrir a vida que despertará nele. Ao contrário, o espermatozoide não está absolutamente equipado para assegurar o desenvolvimento do germe que suscita. Em compensação, o óvulo é incapaz de provocar a mudança que suscitará uma nova explosão de vida; ao passo que o espermatozoide se desloca. Sem a previdência ovaria, sua ação seria vã; mas, sem sua iniciativa, o óvulo não cumpriria suas possibilidades ativas. Logo, concluímos que, fundamentalmente, o papel dos dois gametas é idêntico: criam juntos um ser vivo em que ambos se perdem e se superam. Mas, nos fenômenos secundários e superficiais que condicionam, a fecundação, é pelo elemento masculino que se opera a variação de situação necessária ao novo desabrochar da vida; é pelo elemento feminino que esse desabrochar não se fixa em um organismo estável.
Seria ousado deduzir de tal verificação que o lugar da mulher é no lar: mas há pessoas ousadas. Em seu livro Le tem pérament et le caractère, Alfred Fouillée pretendia, outrora, definir toda a mulher a partir do óvulo e o homem a partir do espermatozoide; muitas teorias, ditas profundas, assentam nesse jogo de analogias duvidosas. Não se sabe muito bem a que filosofia da Natureza esses pseudopensamentos se referem. Se se consideram as leis da hereditariedade, homens e mulheres saíram igualmente de um espermatozoide e de um óvulo. Suponho, antes, que flutuam nesses espíritos brumosos sobrevivências da velha filosofia medieval, segundo a qual o cosmo era o exato reflexo de um microcosmo: imaginasse que o óvulo é um homúnculo feminino e a mulher um óvulo gigante. Esses devaneios abandonados desde a época da alquimia estabelecem um estranho contraste com a precisão científica das descrições sobre as quais nos alicerçamos no mesmo momento: a biologia moderna acomoda-se mal ao simbolismo medieval; mas nossos sonhadores não olham de tão perto. Se se é um pouco escrupuloso, concordar-se-á, porém, em que do óvulo à mulher há um longo caminho. No óvulo, a própria noção de fêmea ainda não se acha contida. Hegel observa com razão que a relação sexual não se deixa reduzir a uma relação entre os gametas. -nos, portanto, necessário estudar o organismo feminino em sua totalidade.
Já se disse que, em muitos vegetais e certos animais inferiores, entre os quais os moluscos, a especificação dos gametas não acarreta a dos indivíduos, produzindo, cada um deles, óvulos e espermatozoides a um tempo. Mesmo quando os sexos se separam, não existem entre eles barreiras estanques como as que encerram as espécies. Assim como os gametas se definem a partir de um tecido original indiferençado, machos e fêmeas surgem antes como variações sobre uma base comum. Entre certos animais — o caso mais típico é o da bonélia — o embrião é inicialmente assexuado e são os acasos de seu desenvolvimento que decidem ulteriormente de sua sexualidade. Admite-se hoje que na maioria das espécies a determinação do sexo depende da constituição genotípica do ovo. O ovo virgem da abelha, reproduzindo-se por partenogênese, dá exclusivamente machos; o dos pulgões, nas mesmas condições, exclusivamente fêmeas. Quando os ovos são fecundados é interessante notar que — salvo, talvez, em certas aranhas — o número de indivíduos machos e fêmeos procriados é sensivelmente igual; a diferenciação provém da heterogeneidade dos dois tipos de gametas; entre os mamíferos são os espermatozoides que possuem uma potencialidade masculina ou feminina; não se sabe exatamente o que, durante a espermatogênese ou a ovogênese, decide do caráter singular dos gametas heterogêneos; em todo caso, as leis estatísticas de Mendel bastam para explicar-lhes a distribuição regular. Nos dois sexos, o processo de fecundação e o início do desenvolvimento embrionário efetuam-se de maneira idêntica; o tecido epitelial destinado a evoluir em gonadia é, no início, indiferençado; é num certo estágio de maturação que os testículos se afirmam ou que mais tardiamente se esboçam em ovários. Isso explica que entre o hermafroditismo e o gonocorismo existe uma quantidade de intermediários; muitas vezes, um dos sexos possui certos órgãos característicos do sexo complementar. O caso mais impressionante é o do sapo: encontra-se no macho um ovário atrofiado, denominado órgão de Bidder, e que se pode artificialmente forçar a produzir ovos.
Entre os mamíferos, subsistem vestígios dessa bipotencialidade sexual, entre outros, a hidratila pediculada e séssil, o uterus masculinus, as glândulas mamárias no macho e, na fêmea, o canal de Gartner, o clitóris. Mesmo nas espécies em que a divisão sexual é mais marcada, há indivíduos que são machos e fêmeos a um tempo. Os casos de intersexualidade são numerosos nos animais e mesmo no homem e encontram-se, nas borboletas, nos crustáceos, exemplos de ginandromorfismo em que os caracteres masculinos e femininos se justapõem numa espécie de mosaico. É que, genotipicamente definido, o fato é, entretanto, profundamente influenciado pelo meio em que haure sua substância. Sabe-se que entre as formigas, as abelhas e as térmitas é o modo de nutrição que faz da larva uma fêmea acabada ou freia sua maturação sexual, transformando-a em operária. A influência nesse caso age sobre o conjunto do organismo. Entre os insetos, o soma é sexualmente definido num período muito precoce e não depende das gonadias. Entre os vertebrados, são essencialmente os hormônios provenientes das gonadias que desempenham um papel regular. Demonstrou-se, mediante várias experiências, que fazendo variar o meio endocrínico podia-se agir sobre a determinação do sexo; outras experiências, de enxertia e de castração, realizadas em animais adultos, conduziram à teoria moderna da sexualidade. Nos machos e fêmeas dos vertebrados o soma é idêntico, podendo-se considerá-lo um elemento neutro; é a ação da gonadia que lhe dá as características sexuais. Certos hormônios secretados operam como estimulantes e outros como inibidores; o próprio tractus genital é de natureza somática e a embriologia mostra que ele se determina sob a influência dos hormônios, partindo de esboços bissexuais. Há intersexualidade quando o equilíbrio hormonal não foi satisfeito e nenhuma das duas potencialidades sexuais se realizou nitidamente.
Igualmente distribuídos na espécie, evoluídos de maneira análoga a partir de raízes idênticas, os organismos masculinos e femininos, uma vez terminada sua formação, parecem profundamente simétricos. Ambos se caracterizam pela presença de glândulas produtoras de gametas, ovários ou testículos, sendo os processos de espermatogênese e ovogênese, já o vimos, análogos; essas glândulas depositam sua secreção num canal mais ou menos complexo segundo a hierarquia das espécies. A fêmea deixa sair o ovo diretamente pelo oviduto ou o retém na cloaca ou em um útero diferençado antes de expulsá-lo; o macho lança o sêmen para fora, ou é munido de um órgão copulador que lhe permite introduzi-lo na fêmea. Estaticamente, macho e fêmea, aparecem, portanto, como dois tipos complementares. É preciso considerá-los de um ponto de vista funcional para apreender-lhes a singularidade.
É muito difícil dar uma descrição geralmente válida da noção de fêmea; defini-la como condutora de óvulos e o macho como condutor de espermatozoides é muito insuficiente, porquanto a relação do organismo com as gonadias é extremamente variável. Inversamente, a diferenciação dos gametas não afeta diretamente o conjunto do organismo. Pretendeu-se, por vezes, que o óvulo, sendo maior, consumia mais força viva do que o espermatozoide, mas este é secretado em quantidade infinitamente mais considerável, de modo que, nos dois sexos, o desgaste se equilibra. Quiseram ver na espermatogênese um exemplo de prodigalidade e na ovulação um modelo de economia, mas há também neste fenômeno uma absurda profusão: a imensa maioria dos óvulos nunca é fecundada. Como quer que seja, as gonadias e os gametas não nos oferecem um microcosmo de todo o organismo. É este que se faz necessário estudar diretamente.
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O SEGUND O SEXO
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
________________________
Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 7. Fatos e Mitos: a mulher?
O Segundo Sexo - 9. Fatos e Mitos: um dos traços mais notáveis
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
8. Fatos e Mitos
Primeira Parte
Destino
CAPITULO I
OS DADOS DA BIOLOGIA
OS DADOS DA BIOLOGIA
: na grande maioria das espécies
Dito isso, cabe dizer que se observam diferenças secundárias das mais interessantes entre o óvulo e o espermatozoide; a singularidade essencial do óvulo consiste em estar carregado de materiais destinados a nutrir e proteger o embrião. Ele acumula reservas à custa das quais o feto construirá seus tecidos, reservas que não são uma substância viva e sim uma matéria inerte; disso resulta que apresenta uma forma maciça, esférica ou elipsoidal e é relativamente volumoso. Não se ignoram as dimensões que atinge o ovo do pássaro; na mulher o óvulo mede 13 mm de diâmetro, ao passo que no esperma humano encontram-se 60.000 espermatozoides por milímetro cúbico. A massa do espermatozoide é extremamente reduzida; ele possui uma cauda filiforme, uma cabecinha alongada, nenhuma substância estranha o entorpece, todo ele é vida. Sua estrutura vota-o à mobilidade; ao passo que o óvulo, em que se acha armazenado o futuro do feto, é um elemento fixo. Encerrado no organismo feminino ou suspenso em um meio exterior, aguarda passivamente a fecundação. Ê o gameta masculino que o procura. O espermatozoide é sempre uma célula nua; o óvulo, segundo as espécies, é protegido ou não por uma membrana, mas em todo caso, logo que entra em contato com ele, o espermatozoide empurra-o, fá-lo oscilar e infiltra-se nele. O gameta masculino abandona a cauda, a cabeça incha e num movimento giratório alcança o núcleo. Durante esse tempo, o ovo forma, de imediato, uma membrana, protegendo-se contra os outros espermatozoides. Entre os equinoides, em que a fecundação é externa, é fácil observar, em volta do óvulo que flutua inerte, a corrida dos espermatozoides que o cercam como uma auréola. Essa competição é também um fenômeno importante e encontrado na maioria das espécies. Muito menor do que o óvulo, o espermatozoide é geralmente emitido em quantidades muito mais consideráveis e cada óvulo tem vários pretendentes.
Assim, o óvulo, em seu princípio essencial, a saber, o núcleo, é superficialmente passivo; sua massa fechada sobre si mesma, encerrada em si mesma, evoca a espessura noturna e o repouso do em si; é sob a forma da esfera que os Antigos representavam o mundo fechado, o átomo opaco; imóvel, o óvulo espera. Ao contrário, o espermatozoide aberto, miúdo, ágil, representa a impaciência e a inquietação da existência. Não se deve deixar-se seduzir pelo prazer das alegorias; assimilou-se, por vezes, o óvulo à imanência, o espermatozoide à transcendência. Mas é renunciando à sua transcendência, à sua mobilidade, que este penetra no elemento feminino. É sugado e castrado pela massa inerte que o absorve depois de o ter mutilado, arrancando-lhe a cauda. Eis uma ação mágica, inquietante como todas as ações passivas; ao passo que a atividade do gameta masculino é racional; é um movimento mensurável em termos de tempo e de espaço. Na verdade, não são isso mais do que divagações. Gametas masculinos ou femininos fundem-se no ovo. Juntos, eles se suprimem em sua totalidade. É um erro pretender que o óvulo absorve vorazmente o gameta masculino e igualmente falso dizer que este se anexa vitoriosamente as reservas da célula feminina, porquanto, no ato que os confunde, a individualidade de um e de outro desaparece. E, sem dúvida, o movimento apresenta-se ao pensamento mecanicista como o fenômeno racional por excelência; mas para a física moderna não se trata de uma ideia mais clara do que a de uma ação a distância. Ignora-se, aliás, o pormenor das ações físico-químicas que redundam em encontro fecundante. É possível, entretanto, reter uma indicação válida dessa confrontação. Há, na vida, dois movimentos que se conjugam; ela só se mantém em se superando e só se supera com a condição de se manter. Esses dois momentos realizam-se sempre juntos, pensá-los separados é pensar abstratamente. Entretanto, é ora um, ora outro que domina. Em sua união, os dois gametas superam-se e perpetuam-se ao mesmo tempo, mas o óvulo, em sua estrutura, antecipa as necessidades futuras. É constituído de maneira a nutrir a vida que despertará nele. Ao contrário, o espermatozoide não está absolutamente equipado para assegurar o desenvolvimento do germe que suscita. Em compensação, o óvulo é incapaz de provocar a mudança que suscitará uma nova explosão de vida; ao passo que o espermatozoide se desloca. Sem a previdência ovaria, sua ação seria vã; mas, sem sua iniciativa, o óvulo não cumpriria suas possibilidades ativas. Logo, concluímos que, fundamentalmente, o papel dos dois gametas é idêntico: criam juntos um ser vivo em que ambos se perdem e se superam. Mas, nos fenômenos secundários e superficiais que condicionam, a fecundação, é pelo elemento masculino que se opera a variação de situação necessária ao novo desabrochar da vida; é pelo elemento feminino que esse desabrochar não se fixa em um organismo estável.
Seria ousado deduzir de tal verificação que o lugar da mulher é no lar: mas há pessoas ousadas. Em seu livro Le tem pérament et le caractère, Alfred Fouillée pretendia, outrora, definir toda a mulher a partir do óvulo e o homem a partir do espermatozoide; muitas teorias, ditas profundas, assentam nesse jogo de analogias duvidosas. Não se sabe muito bem a que filosofia da Natureza esses pseudopensamentos se referem. Se se consideram as leis da hereditariedade, homens e mulheres saíram igualmente de um espermatozoide e de um óvulo. Suponho, antes, que flutuam nesses espíritos brumosos sobrevivências da velha filosofia medieval, segundo a qual o cosmo era o exato reflexo de um microcosmo: imaginasse que o óvulo é um homúnculo feminino e a mulher um óvulo gigante. Esses devaneios abandonados desde a época da alquimia estabelecem um estranho contraste com a precisão científica das descrições sobre as quais nos alicerçamos no mesmo momento: a biologia moderna acomoda-se mal ao simbolismo medieval; mas nossos sonhadores não olham de tão perto. Se se é um pouco escrupuloso, concordar-se-á, porém, em que do óvulo à mulher há um longo caminho. No óvulo, a própria noção de fêmea ainda não se acha contida. Hegel observa com razão que a relação sexual não se deixa reduzir a uma relação entre os gametas. -nos, portanto, necessário estudar o organismo feminino em sua totalidade.
Já se disse que, em muitos vegetais e certos animais inferiores, entre os quais os moluscos, a especificação dos gametas não acarreta a dos indivíduos, produzindo, cada um deles, óvulos e espermatozoides a um tempo. Mesmo quando os sexos se separam, não existem entre eles barreiras estanques como as que encerram as espécies. Assim como os gametas se definem a partir de um tecido original indiferençado, machos e fêmeas surgem antes como variações sobre uma base comum. Entre certos animais — o caso mais típico é o da bonélia — o embrião é inicialmente assexuado e são os acasos de seu desenvolvimento que decidem ulteriormente de sua sexualidade. Admite-se hoje que na maioria das espécies a determinação do sexo depende da constituição genotípica do ovo. O ovo virgem da abelha, reproduzindo-se por partenogênese, dá exclusivamente machos; o dos pulgões, nas mesmas condições, exclusivamente fêmeas. Quando os ovos são fecundados é interessante notar que — salvo, talvez, em certas aranhas — o número de indivíduos machos e fêmeos procriados é sensivelmente igual; a diferenciação provém da heterogeneidade dos dois tipos de gametas; entre os mamíferos são os espermatozoides que possuem uma potencialidade masculina ou feminina; não se sabe exatamente o que, durante a espermatogênese ou a ovogênese, decide do caráter singular dos gametas heterogêneos; em todo caso, as leis estatísticas de Mendel bastam para explicar-lhes a distribuição regular. Nos dois sexos, o processo de fecundação e o início do desenvolvimento embrionário efetuam-se de maneira idêntica; o tecido epitelial destinado a evoluir em gonadia é, no início, indiferençado; é num certo estágio de maturação que os testículos se afirmam ou que mais tardiamente se esboçam em ovários. Isso explica que entre o hermafroditismo e o gonocorismo existe uma quantidade de intermediários; muitas vezes, um dos sexos possui certos órgãos característicos do sexo complementar. O caso mais impressionante é o do sapo: encontra-se no macho um ovário atrofiado, denominado órgão de Bidder, e que se pode artificialmente forçar a produzir ovos.
Entre os mamíferos, subsistem vestígios dessa bipotencialidade sexual, entre outros, a hidratila pediculada e séssil, o uterus masculinus, as glândulas mamárias no macho e, na fêmea, o canal de Gartner, o clitóris. Mesmo nas espécies em que a divisão sexual é mais marcada, há indivíduos que são machos e fêmeos a um tempo. Os casos de intersexualidade são numerosos nos animais e mesmo no homem e encontram-se, nas borboletas, nos crustáceos, exemplos de ginandromorfismo em que os caracteres masculinos e femininos se justapõem numa espécie de mosaico. É que, genotipicamente definido, o fato é, entretanto, profundamente influenciado pelo meio em que haure sua substância. Sabe-se que entre as formigas, as abelhas e as térmitas é o modo de nutrição que faz da larva uma fêmea acabada ou freia sua maturação sexual, transformando-a em operária. A influência nesse caso age sobre o conjunto do organismo. Entre os insetos, o soma é sexualmente definido num período muito precoce e não depende das gonadias. Entre os vertebrados, são essencialmente os hormônios provenientes das gonadias que desempenham um papel regular. Demonstrou-se, mediante várias experiências, que fazendo variar o meio endocrínico podia-se agir sobre a determinação do sexo; outras experiências, de enxertia e de castração, realizadas em animais adultos, conduziram à teoria moderna da sexualidade. Nos machos e fêmeas dos vertebrados o soma é idêntico, podendo-se considerá-lo um elemento neutro; é a ação da gonadia que lhe dá as características sexuais. Certos hormônios secretados operam como estimulantes e outros como inibidores; o próprio tractus genital é de natureza somática e a embriologia mostra que ele se determina sob a influência dos hormônios, partindo de esboços bissexuais. Há intersexualidade quando o equilíbrio hormonal não foi satisfeito e nenhuma das duas potencialidades sexuais se realizou nitidamente.
Igualmente distribuídos na espécie, evoluídos de maneira análoga a partir de raízes idênticas, os organismos masculinos e femininos, uma vez terminada sua formação, parecem profundamente simétricos. Ambos se caracterizam pela presença de glândulas produtoras de gametas, ovários ou testículos, sendo os processos de espermatogênese e ovogênese, já o vimos, análogos; essas glândulas depositam sua secreção num canal mais ou menos complexo segundo a hierarquia das espécies. A fêmea deixa sair o ovo diretamente pelo oviduto ou o retém na cloaca ou em um útero diferençado antes de expulsá-lo; o macho lança o sêmen para fora, ou é munido de um órgão copulador que lhe permite introduzi-lo na fêmea. Estaticamente, macho e fêmea, aparecem, portanto, como dois tipos complementares. É preciso considerá-los de um ponto de vista funcional para apreender-lhes a singularidade.
É muito difícil dar uma descrição geralmente válida da noção de fêmea; defini-la como condutora de óvulos e o macho como condutor de espermatozoides é muito insuficiente, porquanto a relação do organismo com as gonadias é extremamente variável. Inversamente, a diferenciação dos gametas não afeta diretamente o conjunto do organismo. Pretendeu-se, por vezes, que o óvulo, sendo maior, consumia mais força viva do que o espermatozoide, mas este é secretado em quantidade infinitamente mais considerável, de modo que, nos dois sexos, o desgaste se equilibra. Quiseram ver na espermatogênese um exemplo de prodigalidade e na ovulação um modelo de economia, mas há também neste fenômeno uma absurda profusão: a imensa maioria dos óvulos nunca é fecundada. Como quer que seja, as gonadias e os gametas não nos oferecem um microcosmo de todo o organismo. É este que se faz necessário estudar diretamente.
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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 7. Fatos e Mitos: a mulher?
O Segundo Sexo - 9. Fatos e Mitos: um dos traços mais notáveis
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
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