Eduardo Galeano
32. O Livro dos Abraços
Os adeuses
Estávamos há nove anos no litoral da Catalunha e estávamos úmido embora, faltavam três ou quatro dias para o fim do exílio, quando a praia amanheceu toda coberta de neve. O sol acendia a neve e erguia, na beira do mar, um grande fogo branco que fazia os olhos chorarem.
Era muito raro que nevasse na praia. Eu nunca tinha visto, e só os velhos da aldeia recordavam algo parecido, em tempos remotos.
O mar parecia muito contente, lambendo aquele enorme sorvete, e essa alegria do mar e essa brancura radiante foram minhas últimas imagens de Calella da Costa.
Eu quis responder à despedida tão bela, mas não me ocorreu nada. Nada a fazer, nada a dizer. Nunca fui bom para essa questão dos adeuses.
Os sonhos do fim do exílio/1
Helena sonhou que queria fechar a mala e não conseguia, e fazia força com as duas mãos, e apoiava os joelhos sobre a mala, e sentava em cima, e ficava em pé em cima da mala, e não adiantava. A mala, que não se deixava fechar, transbordava coisas e mistérios.
Os sonhos do fim do exílio/2
Helena voltava para Buenos Aires, mas não sabia em que idioma falar nem com que dinheiro pagar. Parada na esquina da avenida Pueyrredón com a avenida Las Heras esperava que o 60 passasse, mas o ônibus não vinha, não viria nunca.
Os sonhos do fim do exílio/3
As lentes dos óculos tinham se quebrado, e as chaves tinham se perdido. Ela buscava as chaves pela cidade inteira, às cegas, de joelhos, e quando finalmente as encontrava, as chaves diziam que não serviriam para abrir suas portas.
Andanças /1
Alberto, o pai de Helena, acordou de repente. Sua barriga partia-se de dor. Era meia-noite, e ele não tinha comido nada pesado. Enquanto isso, longe dali, Helena estava parindo Mariana, a Pulguinha.
Anos depois, Helena ficou subitamente com a boca seca e os lábios em chaga enquanto seu pai sofria uma febre que por pouco não o matou, e ela dizia palavras do delírio dele, embora ela estivesse em Montevidéu e ele em Buenos Aires, e ela nada soubesse; e ao mesmo tempo, do outro lado do mar, em sua casa nos arrabaldes de Barcelona, Pilar, a amiga de Helena, despertava atordoada por uma inexplicável dor de cabeça e dizia, sem saber por que, mas sem nenhuma dúvida:
— Alguma coisa está acontecendo com Helena. Alguma coisa.
Andanças/2
Não foi um vento errante, desses que vagabundeiam de déu em deu, mas uma senhora ventania certamente disparada lá do distante litoral quente até a cidade de Medellín, através das montanhas e dos países. O vento chegou até a casa de Jenny e atravessou-a de ponta a ponta: de repente abriu-se a porta da frente, como se tivesse sido chutada por algum bêbado, e em seguida abriu-se a porta dos fundos, da mesma violenta maneira.
Jenny, então, soube. Restabelecida a calma, até o ar duvidava, o ar machucado; mas ela sabia. E a lavadeira, que morava longe, na cidadezinha de La Pintada, também sabia: estava enxaguando roupa com água da chuva, naquela mesma meia-noite, quando sentiu que havia alguém às suas costas:
— Eu a vi, menina. Posso jurar.
A notícia chegou a Medellín por telegrama, na manhãzinha seguinte, mas já não era necessária: à meia-noite de ontem, morreu Paula López, mãe de Jenny, muito amiga da lavadeira, na distante cidade de Guayaquil.
_______________________
Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
33. O Livro dos Abraços - A última cerveja de Caldwell - Eduardo Galeano
1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano
32. O Livro dos Abraços
Os adeuses
Estávamos há nove anos no litoral da Catalunha e estávamos úmido embora, faltavam três ou quatro dias para o fim do exílio, quando a praia amanheceu toda coberta de neve. O sol acendia a neve e erguia, na beira do mar, um grande fogo branco que fazia os olhos chorarem.
Era muito raro que nevasse na praia. Eu nunca tinha visto, e só os velhos da aldeia recordavam algo parecido, em tempos remotos.
O mar parecia muito contente, lambendo aquele enorme sorvete, e essa alegria do mar e essa brancura radiante foram minhas últimas imagens de Calella da Costa.
Eu quis responder à despedida tão bela, mas não me ocorreu nada. Nada a fazer, nada a dizer. Nunca fui bom para essa questão dos adeuses.
Os sonhos do fim do exílio/1
Helena sonhou que queria fechar a mala e não conseguia, e fazia força com as duas mãos, e apoiava os joelhos sobre a mala, e sentava em cima, e ficava em pé em cima da mala, e não adiantava. A mala, que não se deixava fechar, transbordava coisas e mistérios.
Os sonhos do fim do exílio/2
Helena voltava para Buenos Aires, mas não sabia em que idioma falar nem com que dinheiro pagar. Parada na esquina da avenida Pueyrredón com a avenida Las Heras esperava que o 60 passasse, mas o ônibus não vinha, não viria nunca.
Os sonhos do fim do exílio/3
As lentes dos óculos tinham se quebrado, e as chaves tinham se perdido. Ela buscava as chaves pela cidade inteira, às cegas, de joelhos, e quando finalmente as encontrava, as chaves diziam que não serviriam para abrir suas portas.
Andanças /1
Alberto, o pai de Helena, acordou de repente. Sua barriga partia-se de dor. Era meia-noite, e ele não tinha comido nada pesado. Enquanto isso, longe dali, Helena estava parindo Mariana, a Pulguinha.
Anos depois, Helena ficou subitamente com a boca seca e os lábios em chaga enquanto seu pai sofria uma febre que por pouco não o matou, e ela dizia palavras do delírio dele, embora ela estivesse em Montevidéu e ele em Buenos Aires, e ela nada soubesse; e ao mesmo tempo, do outro lado do mar, em sua casa nos arrabaldes de Barcelona, Pilar, a amiga de Helena, despertava atordoada por uma inexplicável dor de cabeça e dizia, sem saber por que, mas sem nenhuma dúvida:
— Alguma coisa está acontecendo com Helena. Alguma coisa.
Andanças/2
Não foi um vento errante, desses que vagabundeiam de déu em deu, mas uma senhora ventania certamente disparada lá do distante litoral quente até a cidade de Medellín, através das montanhas e dos países. O vento chegou até a casa de Jenny e atravessou-a de ponta a ponta: de repente abriu-se a porta da frente, como se tivesse sido chutada por algum bêbado, e em seguida abriu-se a porta dos fundos, da mesma violenta maneira.
Jenny, então, soube. Restabelecida a calma, até o ar duvidava, o ar machucado; mas ela sabia. E a lavadeira, que morava longe, na cidadezinha de La Pintada, também sabia: estava enxaguando roupa com água da chuva, naquela mesma meia-noite, quando sentiu que havia alguém às suas costas:
— Eu a vi, menina. Posso jurar.
A notícia chegou a Medellín por telegrama, na manhãzinha seguinte, mas já não era necessária: à meia-noite de ontem, morreu Paula López, mãe de Jenny, muito amiga da lavadeira, na distante cidade de Guayaquil.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
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33. O Livro dos Abraços - A última cerveja de Caldwell - Eduardo Galeano
1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano
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