terça-feira, 16 de maio de 2017

Gente Pobre - 14. Qual será a maior virtude cívica? - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


14.




11 de junho



Quanto lhe agradeço o nosso passeio de ontem pelas ilhas, Makar Alexeievitch! Como tudo aquilo estava belo, que maravilha de verdura e que perfumes pairavam na atmosfera! Havia tanto tempo que não via verdura nem árvores! Durante a minha doença, cheguei a convencer-me de que não sararia mais, que morria com certeza... Imagine as sensações que ontem devo ter experimentado!

Não se incomode por ter parecido triste. Sinto-me muito bem e sou feliz; mas nos mais alegres momentos da minha vida, hei de ter sempre um motivo de tristeza, não posso evitá-lo. E as lágrimas que me viu nos olhos também não querem dizer nada; eu própria ignoro porque não posso passar sem chorar. Bem sei que tenho uma sensibilidade mórbida, de modo que todas as impressões que experimento tornam-se-me morbidamente violentas. A culpa foi do céu claro e sem nuvens, do pôr sol, do silêncio do anoitecer, de tudo isso... e verdadeiramente de nenhuma dessas coisas...

É que ontem estava numa disposição de espírito tal, que todas as impressões eram tristes e torturantes; o meu coração parecia em extremo sobrecarregado e pedir às lágrimas que o aliviassem. Mas para que escrevo eu estas coisas? Se nós próprios nos vemos e desejamos para as compreender, como poderemos explicá-las aos outros? Mas pode ser que o senhor me compreenda. Tristeza e alegria ao mesmo tempo! Como é bom, Makar Alexeievitch!

Ontem o senhor fitava-me como se quisesse ler nos meus olhos o que me ia na alma, e sentia-se feliz por me ver contente. Quer fosse num maciço, ou numa alameda, ou junto de um regato, lá estava sempre o senhor diante de mim, todo orgulhoso, fitando-me nos olhos como se tudo aquilo que me mostrava lhe pertencesse. Isso prova que tem bom coração, e é por isso que lhe quero tanto, Makar Alexeievitch.

Bem, tenho de ficar por aqui. Estou um pouco adoentada; ontem molhei os pés e apanhei uma constipação. Fédora ainda não está boa de todo, de modo que estamos ambas doentes. Não se esqueça de mim e venha ver-me mais amiúde. Sua
B. D.







12 de junho




Querida Bárbara Alexeievna:



Julguei, minha querida, que me ia descrever em verso a nossa excursão, e afinal manda-me uma folha apenas escrita de um lado. Mas não a censuro por isso, pois, no pouco que me escreveu, conseguiu fazer uma descrição de rara beleza e graça. Com reduzido número de palavras, pintou-me, de modo admirável, a Natureza, as sensações que experimentou em contato com a paisagem, tudo, enfim, que lhe feriu os sentidos. Eu, pelo contrário, não tenho esse talento; nem gatafunhando dez folhas de papel, chegaria a dizer qualquer coisa de jeito.


Diz a minha querida que eu sou bom e amável por princípio, incapaz de ofender seja quem for, que compreendo bem a bondade do Criador — sobejamente demonstrada na Natureza —, e muitas coisas mais neste teor. Talvez tenha razão, meu amor, talvez seja exatamente como diz. Na verdade, penso que assim é. Mas, se assim sucede, é porque, depois de recebermos uma carta como a que acaba de me mandar, o coração enternecesse involuntariamente e acorrem-nos pensamentos da índole mais profunda e mais grave. Ouça, minha querida: vou contar-lhe uma coisa.

Principiarei pela época dos meus dezessete anos, altura em que entrei para o lugar que hoje ocupo; completo, em breve trinta anos de atividade como funcionário. Devo dizer-lhe que durante este período gastei muitos fardamentos, transformei-me num homem mais prudente e avisado, conheci e convivi com muita gente, vivi... Sim — porque não dizê-lo? —, também eu vivi e ganhei experiência. Como prémio dos meus serviços, quiseram até agraciar-me com uma condecoração. É possível que não acredite nisto, mas é verdade; não lhe minto, meu amor. Mas a que vem tudo isto? Vai ver. Neste mundo há de tudo: bons e maus.

Confesso-lhe, minha boa amiga, que sou um homem inculto, estúpido mesmo, se assim quer. Mas, em contrapartida, o meu coração é perfeitamente igual ao dos outros homens. Não calcula, querida Bárbara, quanto me fizeram sofrer os maus colegas de trabalho! Até tenho vergonha de o contar. «Porquê?»
— perguntará. Precisamente porque sou uma pessoa pacata, um homem modesto, um bom rapaz. Não gostavam do meu feitio e atribuíam-me sempre as culpas de tudo. Ao princípio, quando alguém fazia qualquer coisa mal feita, diziam logo: «Ah, sim! Devem ser coisas do Makar Alexeievitch!»


Com o andar do tempo, esta frase transformou-se noutra: «Ah, naturalmente foi Makar Alexeievitch! Não pode ter sido outro!»

Até que, por fim, só diziam: «Foi Makar Alexeievitch! É escusado indagar!»

Já vê no que parou a história. Makar Alexeievitch era o culpado de tudo o que sucedesse de mau. Chegaram ao extremo de converter o meu nome não só em sinónimo de «tudo o que havia de mau» na repartição, mas ainda, não satisfeitos em fazer dele uma palavra amaldiçoada, uma censura digna de anátema — quase um termo injurioso —, tinham sempre alguma coisa a dizer das minhas botas, do fato, do cabelo e das orelhas. Numa palavra, tudo o que me dizia respeito lhes merecia reparo, tudo o que era meu lhes parecia mau, nada era do gosto deles. E isto todos os dias, durante inúmeros anos! Acabei por me habituar, porque sou um homem pacato, uma criatura insignificante. É caso para perguntar: Ao fim e ao cabo, que fiz eu para merecer tal trato? Fiz algum dia mal a alguém? Tirei a algum companheiro o seu lugar na escala? Ou fui algum dia ao chefe com intriguices acerca de algum colega, para conseguir qualquer recompensa pela delação? Tramei alguma conjura contra alguém? Seria injusta se assim pensasse, minha querida. Sabe muito bem que eu seria incapaz de praticar tais infâmias. Mas porquê, então, aquela antipatia? Perdoai-lhes, Senhor! Desde que a Bárbara me tenha na conta de homem de bem, a opinião dos outros não me interessa, pois você é incomparavelmente melhor do que todas as outras criaturas!

Qual será a maior virtude cívica? Não vai há muito tempo que Evstafil Ivanovitch, em conversa particular, dizia que a maior virtude cívica é saber ganhar dinheiro. Disse-o a brincar, claro; mas a moralidade da frase — o que ele pretendia dizer exatamente — é que não devemos tomar-nos pesados para ninguém. Mas eu nunca o fui! O bocado de pão que como é amassado com o suor do meu rosto. Tenho, de facto, apenas um bocado de pão, às vezes duro e seco, mas pertence-me, adquiri-o legitimamente com o meu trabalho honrado.

Afinal, que hei de fazer? Bem sei que copiar minutas no escritório não é uma profissão muito elevada. Contudo orgulho-me dela porque trabalho, faço alguma coisa de utilidade, e faço-o com as minhas mãos. E que pode haver de mau no facto de ser um simples copista? Será, porventura, algum crime? «Ora! Não passa de um amanuense!» — dizem. Mas vejamos: que há de desonroso nisso? Tenho uma letra bonita, tão legível que até parece de imprensa e até dá gosto ver uma folha escrita por mim, e sua excelência, o ministro, está muito satisfeito com ela. Quer que seja eu o copista dos documentos que têm de ser assinados por ele. Sim, tudo isto está muito bem; mas não tenho estilo! Sei muito bem que o não tenho. Não possuo talento para construir uma frase com elegância, e isso tem obstado a que suba de categoria na repartição, não o ignoro também. Para si, minha querida, escrevo como Deus quer, sem arrebiques, espalho no papel as ideias tais como me ocorrem, como o coração mas dita... Sei tudo isto perfeitamente; mas se todos fossem escritores, quem havia de ser copista?

Pois é este o problema que lhe apresento e ao qual peço que me responda, minha querida. Cheguei à conclusão de que tem necessidade de mim, melhor dizendo, que sou imprescindível; seria, por isso, insensato incomodar-me com ninharias. Sou como um ratito — se tal semelhança é admissível —, mas este ratito é necessário, sem ele não podem passar, é um elemento apreciável e, finalmente, a este ratito prometeram até uma gratificação. Imagine o rato que eu sou!

Já falei de mais a este respeito. Não era meu desejo dizer-lhe nada disto; mas agora já está; a ocasião proporcionou-me e, além disso, foram as suas palavras que me espevitaram. É-nos sempre agradável verificar que nos fazem alguma justiça!

Adeus, meu amor, minha querida consoladora! Irei visitá-la muito brevemente, irei com certeza, para ver como passam e o que fazem. Entretanto, não se aborreça muito. Levar-lhe-ei um livro. Mais uma vez, adeus!

De todo o coração lhe deseja toda a sorte de venturas

Makar Dievuchkin



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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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