Fiódor Dostoiévski
13.
1 de junho
II
De fato, no outro dia o pobre homem foi visitar o filho; demorou-se com ele cerca de uma hora, como de costume e, em seguida, veio visitar-nos, apresentando o seu rosto um ar verdadeiramente cómico e misterioso. Sorrindo e esfregando as mãos, intimamente orgulhoso de possuir um segredo, comunicou-me, muito em particular, que os livros já se encontravam em minha casa, escondidos na cozinha, onde, com a proteção de Matriona, se poderiam conservar até ao aniversário de Petinka.
A seguir, a conversa, como é natural, recaiu sobre a solene festa que se aproximava. Falou dela com grande entusiasmo, e expôs como, segundo ele, se devia fazer a entrega da prenda. À medida que a conversa se ia prolongando, sempre sobre o mesmo assunto e cada vez mais ambígua, mais me convencia de que o velho tinha para me dizer qualquer coisa que não queria ou não sabia exprimir, ou que talvez não se atreveria a manifestar-me sequer. Eu esperava, calada. Pouco a pouco iam-se apagando do seu rosto a misteriosa alegria e a cômica satisfação que os seus gestos, as suas maneiras, os seus sorrisos e até o piscar do seu olho esquerdo denunciavam a princípio. Era evidente que no íntimo não reinava a tranquilidade e que se encontrava preocupado e triste. Por fim, não pôde conter-se mais e começou, com voz tímida:
— Olhe, Bárbara Alexeievna... Sabe, Bárbara Alexeievna? — O pobre velho estava embaraçado. — Sim, vai ver: no dia do aniversário, a menina pega em dez livros e oferece-lhes, sabe? Depois, ofereço-lhe o restante, eu só, isto é, apenas em meu nome. Está a ver: a Bárbara tem de lhe oferecer alguma coisa, e eu também; assim, ambos teremos que lhe dar...
Era tal a sua perturbação, que não pôde prosseguir. Eu levantei os olhos do meu lavor; muito sentadito, esperava decerto, a tremer, a minha resposta...
— Porque não quer que façamos a oferta em comum, Zakar Petrovitch? — perguntei.
— Está muito bem, Bárbara Alexeievna, está muito bem; eu apenas queria dizer...
Em suma: o velhote, embaraçado, não atinava com o que dizer; por isso calou-se por momentos.
— Olhe — continuou por fim. — Eu queria dizer-lhe que tenho os meus defeitozitos, isto é, às vezes não me porto lá muito bem; confesso-lhe que faço tolices, Bárbara Alexeievna... que não estão bem. É verdade: não estão bem... Mas é que... vai ver... Quando na rua está muito frio, ou a gente quer esquecer certos desgostos, ou lhe sucedeu alguma coisa desagradável e não quer pensar nisso... empurra a porta da taberna, entra e bebe um copito a mais... Quem não gosta muito disto é Petruchka. Zanga-se comigo, ralha-me e dá-me conselhos. Quero, por isso, oferecer-lhe qualquer coisa, para lhe provar que as suas lições de moral me têm aproveitado e que já me porto melhor e até economizo uns patacos para lhe comprar um livro. As minhas economias são do dinheiro que ele me dá, pois não disponho de outro, como ele bem sabe; assim, verá com gosto que faço dele bom uso e o gasto exclusivamente em proveito dele!
Fiquei profundamente comovida com as palavras do pobre velho.
— Olhe, Zakar Petrovitch — disse-lhe —, ofereça-lhe você todos!
— Que me diz? Os onze volumes?
— Sim, os onze.
— Os onze, eu só?
— Você só.
— Mas… como sendo eu só a oferecer-lhe? Sem lhe falar em si?
— Sim, isso mesmo.
Julgo ter sido bastante clara; contudo, só ao fim de muito tempo o homenzinho conseguiu compreender-me.
— Pois bem — exclamou depois de refletir. — Isso seria esplêndido, magnífico. Mas, e você, Bárbara Alexeievna?
— Eu? Ora, não lhe ofereço nada, aí está.
— Como! — exclamou, espantado. — Não oferece nada a Petinka? Não quer dar-lhe uma prenda?
Tenho a certeza de que naquele momento o velho estava resolvido a recusar a minha oferta, simplesmente para que eu pudesse oferecer qualquer coisa ao seu filho. Que bom coração o daquele homem!
Apressei-me a afirmar-lhe que, naturalmente, também tinha vontade de lhe oferecer qualquer coisa, mas que me custava privá-lo da sua satisfação.
— Se o seu filho gostar da prenda e se alegrar e você também ficar contente — acrescentei —, eu, intimamente, compartilharei da mesma alegria, como se fosse eu a dar-lhe o presente.
Consegui assim tranquilizar o bom velho. Demorou-se na nossa companhia ainda duas horas, mas não pôde conservar-se quieto no assento, nem por um instante; levantava-se, passeava de um lado para o outro, falava mais alto do que de costume, taramelava com Sacha, atirava-me beijos dissimuladamente, e fazia caretas por trás da cadeira de Ana Fedorovna. Entreteve-se deste modo por muito tempo, até que, por fim, se foi embora. Em suma: não cabia em si de contente e nunca na sua vida havia experimentado tamanha alegria.
No dia do aniversário do filho, chegou às onze horas em ponto, depois de ter ido à missa. Envergava um fraque muito decente, embora já passado; botas novas, conforme tinha anunciado, e um chapéu novo. Levava um pacote de livros em cada mão, embrulhados em dois guardanapos que Matriona lhe emprestara. Era um domingo. Encontrávamo-nos a tomar café com Ana Fedorovna. Se bem me recordo, o pobre homem começou por dizer que Pouchkine era um grande poeta. A seguir, não sem grande dificuldade e com as hesitações e confusão habituais, e fazendo mais pausas do que nunca, mas, apesar disso, com invulgar fluência, derivou para outras questões. «O homem — dizia — deve portar-se bem; se assim não fizer, praticará ações condenáveis. As más inclinações levam o homem à ruína e à degradação». Chegou mesmo a apresentar-nos alguns exemplos pavorosos de intemperança, para concluir que havia algum tempo que se emendara e que o seu atual comportamento era quase exemplar. Reconhecera há muito quanto eram justas as observações de seu filho; no entanto, só ultimamente começara a desviar-se do mal e a levar uma vida de acordo com o que o seu coração considerava bom. Como prova da sua regeneração, oferecia ao filho aqueles livros, para comprar os quais economizara durante muito tempo a quantia necessária.
Dificilmente consegui conter as lágrimas e o riso enquanto o pobre velho falava. Não há dúvida de que sabia bem mentir quando era necessário! Em seguida levamos os livros para os aposentos do filho e colocamo-los na estante, tendo logo Pokrovski adivinhado tudo.
Convidamos o velho para jantar conosco e o dia constituiu uma verdadeira festa íntima. Depois de comermos, entretivemo-nos a jogar as prendas e, a seguir, as cartas. Sacha estava sempre a pregar partidas e mostrava-se mais traquinas que nunca; mas eu não a imitava nas suas infantilidades. Pokrovski cumulou-me de atenções e procurava todos os meios de me falar a sós; eu, porém, esquivava-me. Esse dia foi para mim o mais feliz daqueles quatro anos da minha vida.
A partir de então, a vida só me deixou tristes e graves recordações; começa ali a história dos meus dias cinzentos. Talvez por isso, a minha pena como que principia a deslizar mais dificilmente; dir-se-ia sentir-se fatigada e não querer levar mais por diante o relato. E pela mesma razão foi que contei tão pormenorizadamente os sucessos daqueles dias felizes da minha juventude. Passaram tão rápidos! Seguiram-se a dor, a tristeza, os sofrimentos, que só
Deus sabe quando terminarão.
Os meus infortúnios principiaram com a doença e a morte de Pokrovski.
Caiu doente dois meses após o seu aniversário natalício. Durante esse período de tempo, o pobre empenhara-se com afinco para conseguir uma colocação que pudesse assegurar-lhe a existência, pois até então não tivera nenhuma. Como todos os tuberculosos, sonhava com muitos anos de vida, ilusão que o acompanhou até à hora da morte. Aparecera-lhe um dia um lugar de professor, não sei onde; mas não quis, porque tinha ferrenha aversão pelo ensino. Devido à sua doença já declarada, não lhe era possível conseguir um lugar público, e mesmo admitindo tal possibilidade, teria de passar muito tempo como suplente sem ganhar um tostão. Quer dizer: fracassava em toda a linha. Tudo isto foi de péssimos efeitos para ele. O seu caráter azedou-se. Dava cabo da saúde, sem o sentir.
Chegou, por fim, o outono. Envolto na sua leve capa, lá ia todos os dias em busca de emprego, o que para ele constituía um tormento. Regressava a casa cansado, cheio de fome, todo molhado da chuva e com os pés úmidos; até que, finalmente, a sua doença fez tais progressos, que caiu de cama, para não mais se levantar... Morreu em meados do outono, por fins de outubro.
Quase não abandonei o seu quarto, enquanto ele esteve doente. Passei muitas noites em claro. Geralmente conservava-se em estado de inconsciência devido à febre e, no seu delírio, falava nas coisas mais diversas: no seu emprego, nos livros, no pai e em mim. Soube, deste modo, muitas coisas da sua vida, que ignorava e de que nunca teria suspeitado. Quando principiei a tratar dele, todos lá em casa me olhavam com um ar estranho, e Ana Fedorovna mexia a cabeça significativamente. Eu, porém, olhava-os bem de frente, e foram deixando de me censurar o interesse que demonstrava pelo doente. Pelo menos minha mãe nunca mais me criticou.
Às vezes Pokrovski reconhecia-me, mas esses intervalos de lucidez eram relativamente raros. A maior parte do tempo, passava-a em delírio. Havia momentos, e até noites inteiras, em que proferia palavras vagas, incompreensíveis, dirigindo-se a um interlocutor imaginário, e a sua voz ressoava naquele diminuto quarto como saída de uma tumba. Então eu tinha medo. Principalmente na última noite, já na agonia, sofria horrivelmente, e os seus queixumes de dor dilaceravam-me a alma. Todos se alarmaram e Ana Fedorovna pedia instantemente a Deus que aliviasse a sua agonia. Chamaram o médico, e este disse que o doente não passaria a manhã seguinte.
O velho Pokrovski passou a noite no corredor, junto à porta do quarto do filho. Arranjámos-lhe ali uma cama com esteiras, mas ele não descansava um instante; volta e meia transpunha a porta, com um aspecto que fazia dó. A dor atingia-o tão profundamente, que parecia alucinado, insensível e estúpido. O corpo tremia-lhe dos pés à cabeça, e ele murmurava, mecanicamente, palavras misteriosas. Temi que perdesse por completo e razão.
Por fim, ao amanhecer, o velho adormeceu, deitado na esteira, no corredor. Cerca das oito horas o filho entrou na última agonia. Acordei o pai. Pokrovski encontrava-se então em pleno uso das suas faculdades e despediu-se de nós todos. Coisa extraordinária! Eu já não podia chorar, mas como que sentia o coração despedaçar-me fibra a fibra.
Mas o que mais me custou foram os últimos momentos do enfermo. Manteve-se por muito tempo a rezar, a pedir qualquer coisa que eu não compreendia, pois já mal movia a língua. O coração estalava-me de dor. Passou uma hora extremamente agitado; esforçava-se por fazer sinais com a sua mão já rígida e com a voz rouca suplicava qualquer coisa... Mas as suas palavras eram apenas sons inarticulados que eu não conseguia compreender. Uma a uma, levei até junto dele todas as pessoas da casa; dava-lhe de beber; mas ele limitava-se a abanar tristemente a cabeça e olhava para mim. Finalmente compreendi o seu desejo; queria que corresse as cortinas da janela e a abrisse, decerto para ver pela última vez a luz do dia, a chama divina do sol.
Levantei as cortinas e abri as portadas, mas o dia que despontava era sombrio e triste como a pobre vida do agonizante, prestes a extinguir-se. Não havia pinta de sol. Uma espessa cortina de nuvens envolvia o céu e o tempo estava chuvoso, melancólico e escuro. Uma chuva miudinha batia mansamente nos vidros da janela, desfazendo-se contra eles em claras e frias gotas. O dia estava escuro e opaco. Penetrava no quarto uma pálida luz, mal ofuscando a lamparina acesa que ardia no oratório. O moribundo lançou-me um olhar triste, muito triste, e moveu a cabeça, como num estremecimento de cansaço. Um minuto depois expirou.
Foi Ana Fedorovna que se encarregou do funeral. Mandou comprar um caixão barato e alugou um carro fúnebre, e para se indemnizar das despesas, tomou conta de todos os livros e de tudo o mais que pertencera ao defunto. O velho não queria de modo algum privar-se da herança do filho, discutiu com ela, gritou, fez escândalo, pegou nos livros que lhe foi possível meter nos bolsos, no chapéu e onde pôde e, neste preparo, andou três dias, nem mesmo se resolvendo a abandoná-los para nos acompanhar à igreja. Parecia um perfeito alienado. Desenvolvia extraordinária atividade à volta do féretro, ora pondo em ordem as coroas, ora acendendo as velas, para logo as apagar e tornar a acendê-las de novo. Era evidente que o pobre homem não podia fixar a atenção por muito tempo na mesma coisa.
Nem minha mãe, nem Ana Fedorovna assistiram aos responsos. A mamã estava doente, e a minha prima, no momento em que saía para a igreja, discutira outra vez com o velho Pokrovski e zangara-se, resolvendo ficar em casa. Na missa encontrávamo-nos apenas eu e o velho. Durante a cerimônia fui acometida de um receio inexplicável, como que um vago pressentimento do que o destino me reservava. Mal me tinha de pé.
Finalmente fecharam o caixão, puseram-no no carro e levaram-no para o cemitério. Acompanhei-o apenas até ao fim da rua. Dai em diante o carro seguiu a trote. O pobre pai foi atrás do veículo, a chorar ruidosamente, num pranto entrecortado devido à corrida. Caiu-lhe o chapéu, mas não se deu ao trabalho de o apanhar, continuando o seu caminho. A chuva caía-lhe na cabeça e um vento frio açoitava-lhe o rosto. O velho, porém, parecia não o sentir, chorando e correndo sempre, ora de um lado do carro, ora de outro. As compridas abas do seu fraque já roto ondulavam ao vento. Viam-se-lhe livros em todos os bolsos, e debaixo do braço levava um grande e pesado volume, que apertava convulsivamente de encontro ao peito. Os transeuntes descobriam-se e benziam-se e alguns ficavam parados a contemplar o pobre homem, com olhos de espanto. De vez em quando caia-lhe um livro, sobre a lama da rua. Então chamavam por ele, obrigavam-no a parar e dar fé do que perdera. O velho apanhava o volume e continuava a caminhar atrás de féretro. Pouco antes de dobrar a esquina, aproximou-se dele uma mendiga bastante idosa e seguiu também o carro, ao seu lado. Finalmente o cortejo sumiu-se na curva do caminho.
Regressei então a casa e, a tremer de dor, atirei-me para os braços de minha mãe. Apertei-a contra o meu peito, beijei-a muito e de súbito irrompi em pranto. Agarrava-me angustiosamente ao único ente amigo que ainda me restava para me consolar, como se quisesse retê-lo para sempre, a fim de que a morte a pudesse preservar.
Mas a morte já esvoaçava sobre a minha pobre mãe.
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 12. 1 de junho II - Dostoievski
Gente Pobre - 14. Qual será a maior virtude cívica? - Dostoievski
Gente Pobre - 01. Ontem fui feliz, excessivamente feliz - Dostoievski
13.
1 de junho
II
De fato, no outro dia o pobre homem foi visitar o filho; demorou-se com ele cerca de uma hora, como de costume e, em seguida, veio visitar-nos, apresentando o seu rosto um ar verdadeiramente cómico e misterioso. Sorrindo e esfregando as mãos, intimamente orgulhoso de possuir um segredo, comunicou-me, muito em particular, que os livros já se encontravam em minha casa, escondidos na cozinha, onde, com a proteção de Matriona, se poderiam conservar até ao aniversário de Petinka.
A seguir, a conversa, como é natural, recaiu sobre a solene festa que se aproximava. Falou dela com grande entusiasmo, e expôs como, segundo ele, se devia fazer a entrega da prenda. À medida que a conversa se ia prolongando, sempre sobre o mesmo assunto e cada vez mais ambígua, mais me convencia de que o velho tinha para me dizer qualquer coisa que não queria ou não sabia exprimir, ou que talvez não se atreveria a manifestar-me sequer. Eu esperava, calada. Pouco a pouco iam-se apagando do seu rosto a misteriosa alegria e a cômica satisfação que os seus gestos, as suas maneiras, os seus sorrisos e até o piscar do seu olho esquerdo denunciavam a princípio. Era evidente que no íntimo não reinava a tranquilidade e que se encontrava preocupado e triste. Por fim, não pôde conter-se mais e começou, com voz tímida:
— Olhe, Bárbara Alexeievna... Sabe, Bárbara Alexeievna? — O pobre velho estava embaraçado. — Sim, vai ver: no dia do aniversário, a menina pega em dez livros e oferece-lhes, sabe? Depois, ofereço-lhe o restante, eu só, isto é, apenas em meu nome. Está a ver: a Bárbara tem de lhe oferecer alguma coisa, e eu também; assim, ambos teremos que lhe dar...
Era tal a sua perturbação, que não pôde prosseguir. Eu levantei os olhos do meu lavor; muito sentadito, esperava decerto, a tremer, a minha resposta...
— Porque não quer que façamos a oferta em comum, Zakar Petrovitch? — perguntei.
— Está muito bem, Bárbara Alexeievna, está muito bem; eu apenas queria dizer...
Em suma: o velhote, embaraçado, não atinava com o que dizer; por isso calou-se por momentos.
— Olhe — continuou por fim. — Eu queria dizer-lhe que tenho os meus defeitozitos, isto é, às vezes não me porto lá muito bem; confesso-lhe que faço tolices, Bárbara Alexeievna... que não estão bem. É verdade: não estão bem... Mas é que... vai ver... Quando na rua está muito frio, ou a gente quer esquecer certos desgostos, ou lhe sucedeu alguma coisa desagradável e não quer pensar nisso... empurra a porta da taberna, entra e bebe um copito a mais... Quem não gosta muito disto é Petruchka. Zanga-se comigo, ralha-me e dá-me conselhos. Quero, por isso, oferecer-lhe qualquer coisa, para lhe provar que as suas lições de moral me têm aproveitado e que já me porto melhor e até economizo uns patacos para lhe comprar um livro. As minhas economias são do dinheiro que ele me dá, pois não disponho de outro, como ele bem sabe; assim, verá com gosto que faço dele bom uso e o gasto exclusivamente em proveito dele!
Fiquei profundamente comovida com as palavras do pobre velho.
— Olhe, Zakar Petrovitch — disse-lhe —, ofereça-lhe você todos!
— Que me diz? Os onze volumes?
— Sim, os onze.
— Os onze, eu só?
— Você só.
— Mas… como sendo eu só a oferecer-lhe? Sem lhe falar em si?
— Sim, isso mesmo.
Julgo ter sido bastante clara; contudo, só ao fim de muito tempo o homenzinho conseguiu compreender-me.
— Pois bem — exclamou depois de refletir. — Isso seria esplêndido, magnífico. Mas, e você, Bárbara Alexeievna?
— Eu? Ora, não lhe ofereço nada, aí está.
— Como! — exclamou, espantado. — Não oferece nada a Petinka? Não quer dar-lhe uma prenda?
Tenho a certeza de que naquele momento o velho estava resolvido a recusar a minha oferta, simplesmente para que eu pudesse oferecer qualquer coisa ao seu filho. Que bom coração o daquele homem!
Apressei-me a afirmar-lhe que, naturalmente, também tinha vontade de lhe oferecer qualquer coisa, mas que me custava privá-lo da sua satisfação.
— Se o seu filho gostar da prenda e se alegrar e você também ficar contente — acrescentei —, eu, intimamente, compartilharei da mesma alegria, como se fosse eu a dar-lhe o presente.
Consegui assim tranquilizar o bom velho. Demorou-se na nossa companhia ainda duas horas, mas não pôde conservar-se quieto no assento, nem por um instante; levantava-se, passeava de um lado para o outro, falava mais alto do que de costume, taramelava com Sacha, atirava-me beijos dissimuladamente, e fazia caretas por trás da cadeira de Ana Fedorovna. Entreteve-se deste modo por muito tempo, até que, por fim, se foi embora. Em suma: não cabia em si de contente e nunca na sua vida havia experimentado tamanha alegria.
No dia do aniversário do filho, chegou às onze horas em ponto, depois de ter ido à missa. Envergava um fraque muito decente, embora já passado; botas novas, conforme tinha anunciado, e um chapéu novo. Levava um pacote de livros em cada mão, embrulhados em dois guardanapos que Matriona lhe emprestara. Era um domingo. Encontrávamo-nos a tomar café com Ana Fedorovna. Se bem me recordo, o pobre homem começou por dizer que Pouchkine era um grande poeta. A seguir, não sem grande dificuldade e com as hesitações e confusão habituais, e fazendo mais pausas do que nunca, mas, apesar disso, com invulgar fluência, derivou para outras questões. «O homem — dizia — deve portar-se bem; se assim não fizer, praticará ações condenáveis. As más inclinações levam o homem à ruína e à degradação». Chegou mesmo a apresentar-nos alguns exemplos pavorosos de intemperança, para concluir que havia algum tempo que se emendara e que o seu atual comportamento era quase exemplar. Reconhecera há muito quanto eram justas as observações de seu filho; no entanto, só ultimamente começara a desviar-se do mal e a levar uma vida de acordo com o que o seu coração considerava bom. Como prova da sua regeneração, oferecia ao filho aqueles livros, para comprar os quais economizara durante muito tempo a quantia necessária.
Dificilmente consegui conter as lágrimas e o riso enquanto o pobre velho falava. Não há dúvida de que sabia bem mentir quando era necessário! Em seguida levamos os livros para os aposentos do filho e colocamo-los na estante, tendo logo Pokrovski adivinhado tudo.
Convidamos o velho para jantar conosco e o dia constituiu uma verdadeira festa íntima. Depois de comermos, entretivemo-nos a jogar as prendas e, a seguir, as cartas. Sacha estava sempre a pregar partidas e mostrava-se mais traquinas que nunca; mas eu não a imitava nas suas infantilidades. Pokrovski cumulou-me de atenções e procurava todos os meios de me falar a sós; eu, porém, esquivava-me. Esse dia foi para mim o mais feliz daqueles quatro anos da minha vida.
A partir de então, a vida só me deixou tristes e graves recordações; começa ali a história dos meus dias cinzentos. Talvez por isso, a minha pena como que principia a deslizar mais dificilmente; dir-se-ia sentir-se fatigada e não querer levar mais por diante o relato. E pela mesma razão foi que contei tão pormenorizadamente os sucessos daqueles dias felizes da minha juventude. Passaram tão rápidos! Seguiram-se a dor, a tristeza, os sofrimentos, que só
Deus sabe quando terminarão.
Os meus infortúnios principiaram com a doença e a morte de Pokrovski.
Caiu doente dois meses após o seu aniversário natalício. Durante esse período de tempo, o pobre empenhara-se com afinco para conseguir uma colocação que pudesse assegurar-lhe a existência, pois até então não tivera nenhuma. Como todos os tuberculosos, sonhava com muitos anos de vida, ilusão que o acompanhou até à hora da morte. Aparecera-lhe um dia um lugar de professor, não sei onde; mas não quis, porque tinha ferrenha aversão pelo ensino. Devido à sua doença já declarada, não lhe era possível conseguir um lugar público, e mesmo admitindo tal possibilidade, teria de passar muito tempo como suplente sem ganhar um tostão. Quer dizer: fracassava em toda a linha. Tudo isto foi de péssimos efeitos para ele. O seu caráter azedou-se. Dava cabo da saúde, sem o sentir.
Chegou, por fim, o outono. Envolto na sua leve capa, lá ia todos os dias em busca de emprego, o que para ele constituía um tormento. Regressava a casa cansado, cheio de fome, todo molhado da chuva e com os pés úmidos; até que, finalmente, a sua doença fez tais progressos, que caiu de cama, para não mais se levantar... Morreu em meados do outono, por fins de outubro.
Quase não abandonei o seu quarto, enquanto ele esteve doente. Passei muitas noites em claro. Geralmente conservava-se em estado de inconsciência devido à febre e, no seu delírio, falava nas coisas mais diversas: no seu emprego, nos livros, no pai e em mim. Soube, deste modo, muitas coisas da sua vida, que ignorava e de que nunca teria suspeitado. Quando principiei a tratar dele, todos lá em casa me olhavam com um ar estranho, e Ana Fedorovna mexia a cabeça significativamente. Eu, porém, olhava-os bem de frente, e foram deixando de me censurar o interesse que demonstrava pelo doente. Pelo menos minha mãe nunca mais me criticou.
Às vezes Pokrovski reconhecia-me, mas esses intervalos de lucidez eram relativamente raros. A maior parte do tempo, passava-a em delírio. Havia momentos, e até noites inteiras, em que proferia palavras vagas, incompreensíveis, dirigindo-se a um interlocutor imaginário, e a sua voz ressoava naquele diminuto quarto como saída de uma tumba. Então eu tinha medo. Principalmente na última noite, já na agonia, sofria horrivelmente, e os seus queixumes de dor dilaceravam-me a alma. Todos se alarmaram e Ana Fedorovna pedia instantemente a Deus que aliviasse a sua agonia. Chamaram o médico, e este disse que o doente não passaria a manhã seguinte.
O velho Pokrovski passou a noite no corredor, junto à porta do quarto do filho. Arranjámos-lhe ali uma cama com esteiras, mas ele não descansava um instante; volta e meia transpunha a porta, com um aspecto que fazia dó. A dor atingia-o tão profundamente, que parecia alucinado, insensível e estúpido. O corpo tremia-lhe dos pés à cabeça, e ele murmurava, mecanicamente, palavras misteriosas. Temi que perdesse por completo e razão.
Por fim, ao amanhecer, o velho adormeceu, deitado na esteira, no corredor. Cerca das oito horas o filho entrou na última agonia. Acordei o pai. Pokrovski encontrava-se então em pleno uso das suas faculdades e despediu-se de nós todos. Coisa extraordinária! Eu já não podia chorar, mas como que sentia o coração despedaçar-me fibra a fibra.
Mas o que mais me custou foram os últimos momentos do enfermo. Manteve-se por muito tempo a rezar, a pedir qualquer coisa que eu não compreendia, pois já mal movia a língua. O coração estalava-me de dor. Passou uma hora extremamente agitado; esforçava-se por fazer sinais com a sua mão já rígida e com a voz rouca suplicava qualquer coisa... Mas as suas palavras eram apenas sons inarticulados que eu não conseguia compreender. Uma a uma, levei até junto dele todas as pessoas da casa; dava-lhe de beber; mas ele limitava-se a abanar tristemente a cabeça e olhava para mim. Finalmente compreendi o seu desejo; queria que corresse as cortinas da janela e a abrisse, decerto para ver pela última vez a luz do dia, a chama divina do sol.
Levantei as cortinas e abri as portadas, mas o dia que despontava era sombrio e triste como a pobre vida do agonizante, prestes a extinguir-se. Não havia pinta de sol. Uma espessa cortina de nuvens envolvia o céu e o tempo estava chuvoso, melancólico e escuro. Uma chuva miudinha batia mansamente nos vidros da janela, desfazendo-se contra eles em claras e frias gotas. O dia estava escuro e opaco. Penetrava no quarto uma pálida luz, mal ofuscando a lamparina acesa que ardia no oratório. O moribundo lançou-me um olhar triste, muito triste, e moveu a cabeça, como num estremecimento de cansaço. Um minuto depois expirou.
Foi Ana Fedorovna que se encarregou do funeral. Mandou comprar um caixão barato e alugou um carro fúnebre, e para se indemnizar das despesas, tomou conta de todos os livros e de tudo o mais que pertencera ao defunto. O velho não queria de modo algum privar-se da herança do filho, discutiu com ela, gritou, fez escândalo, pegou nos livros que lhe foi possível meter nos bolsos, no chapéu e onde pôde e, neste preparo, andou três dias, nem mesmo se resolvendo a abandoná-los para nos acompanhar à igreja. Parecia um perfeito alienado. Desenvolvia extraordinária atividade à volta do féretro, ora pondo em ordem as coroas, ora acendendo as velas, para logo as apagar e tornar a acendê-las de novo. Era evidente que o pobre homem não podia fixar a atenção por muito tempo na mesma coisa.
Nem minha mãe, nem Ana Fedorovna assistiram aos responsos. A mamã estava doente, e a minha prima, no momento em que saía para a igreja, discutira outra vez com o velho Pokrovski e zangara-se, resolvendo ficar em casa. Na missa encontrávamo-nos apenas eu e o velho. Durante a cerimônia fui acometida de um receio inexplicável, como que um vago pressentimento do que o destino me reservava. Mal me tinha de pé.
Finalmente fecharam o caixão, puseram-no no carro e levaram-no para o cemitério. Acompanhei-o apenas até ao fim da rua. Dai em diante o carro seguiu a trote. O pobre pai foi atrás do veículo, a chorar ruidosamente, num pranto entrecortado devido à corrida. Caiu-lhe o chapéu, mas não se deu ao trabalho de o apanhar, continuando o seu caminho. A chuva caía-lhe na cabeça e um vento frio açoitava-lhe o rosto. O velho, porém, parecia não o sentir, chorando e correndo sempre, ora de um lado do carro, ora de outro. As compridas abas do seu fraque já roto ondulavam ao vento. Viam-se-lhe livros em todos os bolsos, e debaixo do braço levava um grande e pesado volume, que apertava convulsivamente de encontro ao peito. Os transeuntes descobriam-se e benziam-se e alguns ficavam parados a contemplar o pobre homem, com olhos de espanto. De vez em quando caia-lhe um livro, sobre a lama da rua. Então chamavam por ele, obrigavam-no a parar e dar fé do que perdera. O velho apanhava o volume e continuava a caminhar atrás de féretro. Pouco antes de dobrar a esquina, aproximou-se dele uma mendiga bastante idosa e seguiu também o carro, ao seu lado. Finalmente o cortejo sumiu-se na curva do caminho.
Regressei então a casa e, a tremer de dor, atirei-me para os braços de minha mãe. Apertei-a contra o meu peito, beijei-a muito e de súbito irrompi em pranto. Agarrava-me angustiosamente ao único ente amigo que ainda me restava para me consolar, como se quisesse retê-lo para sempre, a fim de que a morte a pudesse preservar.
Mas a morte já esvoaçava sobre a minha pobre mãe.
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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