quinta-feira, 18 de maio de 2017

O Brasil nação - v1: § 36 – A glória da insinceridade e da mentira - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 4
o definitivo império do brasil







§ 36 – A glória da insinceridade e da mentira




Com os instrumentos que teve em mão, não foi difícil a Pedro II sistematizar a política em que se glorificou o seu reinado – frouxo verniz furta-cor, sobre mistificações e pulhices. Os homens para essa obra foram os marqueses herdados do primeiro Império, todos os futuros marqueses e mais trânsfugas de 1831, e o que ainda vem, para a vasta procissão de conselheiros. Melo Morais, que viveu com eles em três gerações, e bem lhes conhecia a qualidade da obra, testemunha: “... no Brasil não há partidos políticos, por não terem princípios definidos e claros, e sim interesses individuais ou egoísticos...; nem existe o sistema representativo, porque o poder executivo o tem abastardado, ou absorvido. A esse abastardamento chamam os velhacos de política...”

Guardemos a definição, para juntar àquela de Tavares Bastos, completando-a com estes conceitos, do mesmo Melo Morais: “... a falsa política, dirigida pelo governo de mentira, que funda todo o seu prestígio no engano dos homens, anarquizando o país com a corrupção e o esbanjamento da fortuna pública”.149  No forte da sua oposição a Paranhos, Alencar, sem nenhum intuito de desaire, e sem que o contradissessem, afirmou, do destacado conservador-liberal: “... serve ao país com os seus grandes gestos e com o ceticismo a que tem devido a sua grande carreira política; porque neste país as convicções profundas são barras de chumbo que levam ao fundo.” Antes, já Landulfo Medrado, havia notado: “Adultera-se tudo, as revoluções, que são origem incontestável de todo o nosso direito político (1822 e 31), têm um medíocre interesse para tais espíritos...”

A vida do segundo Império se fez nas vicissitudes dos dois célebres partidos políticos, mas, em verdade, tudo não passava


149 Melo Morais, op. cit., págs. 20 e 49.


de embuste, pois que os dois eram da mesma vasa, num pântano comunicante, com a diferença única – de borbulharem em nomes diferentes. Por isso, mais de uma vez, misturaram-se ostensivamente, e, mais de um nome se transfundiu de um para o outro: Paranhos, que começa liberal, e vem a ser chefe conservador, para fazer reformas liberais; Franco de Sá, que é conservador, passa a chefe do partido liberal; Zacharias, que se pronuncia legítimo conservador, e vem a ser, também, chefe dos liberais. A fermentada mistura data dos dias em que o radical Bernardo de Vasconcelos muda a arma de ombro, para criar o partido conservador, e confirma-se na hora sinistra em que Vilela Barbosa encosta-se aos liberais – para ser governo da maioridade. O povo, que não via relação efetiva entre a denominação oficial dos partidos e o resultado da respectiva ação, deu-lhes nomes ao sabor de incidentes mínimos: Saquaremas, Luzias, Cabahus... eram os bandos de Zacharias, ou de Itaboraí... Quando alguns, sinceros, ou despeitados, atingiam a verdade, tinham de manifestar-se contra os dois partidos. Todos esses transcritos são citados, justamente, porque deixaram julgamentos que, sendo para todos, são imparciais. Tudo provinha de que os programas diziam uma coisa, e a realidade lhes dava outra coisa. O despeito levou José de Alencar a dar ao imperador a exclusiva responsabilidade da degradação política, mas, em si mesma, essa degradação existe, é uma realidade: “A segunda era da monarquia brasileira é dominada por um sistema perseverante: o descrédito dos partidos, a solapa das convicções, a eliminação da luta, são dogmas daquela política eversiva. Em princípio, manifestou-se ela com o nome de camarilha (Aureliano)... que se transportava de um a outro partido segundo as suas conveniências... notáveis estadistas tiveram que retirar-se da lide, evitando o estigma de intolerantes. Afinal, vem a política do rateio. Considerando o país falido de opiniões e princípios, organizaram uma administração... para distribuir pingues empregos, posições oficiais, títulos e honras...
150 

Sousa Carvalho, tantas vezes transcrito, por tão nítido em conceito, foi político liberal de grande atividade – deputado presidente de província importante. Pois bem, é o que constata: “Os denominados liberais, nestes últimos 26 anos, têm governado e senhoreado o país, mas a política liberal nunca governou, nunca esteve no poder... Lastimo o papel infeliz que tem cabido ao partido liberal no nosso país...” A explicação corrente, dessa anomalia, era que o imperador não queria que os liberais se afirmassem à nação como efetivos realizadores das liberdades constantes do respectivo programa... Talvez não fosse bem assim; talvez – que não havia neles convicções. E aí está o caso da abolição da escravidão. Ao longo de todo o segundo Império, afora – Dantas, Nabuco, Rui Barbosa, e alguns menores ou hesitantes, todos os chefes liberais foram tão escravocratas como os conservadores. Contemple-se o desenvolver dos fatos, daquele momento em que a questão veio a ter a primeira solução. Zacarias, o grande chefe, porque o imperador o mandou, em vistas da sugestão de franceses, inseriu em duas das falas do trono a insinuação – de tratar-se do caso; mas, foi despedido, e tão despeitado ficou que teve arremedos de dignidade em face do trono; surge a questão no parlamento, com a responsabilidade do conservador Paranhos; os conservadores da junta do coice vêm para a oposição; liberais, como Franco de Sá, apoiam o projeto, ao passo que, no Senado, Zacarias, o liberal que primeiro incluíra o assunto em programa de governo, combate intransigentemente a medida, que, apesar de tudo, era liberal. Na sucessão dos tempos Sinimbu, Ouro Preto, Silveira Martins, Martinho de Campos... reproduzem a política de Zacarias. E como tudo é confusão no embuste, veremos, ainda, Cotegipe, o genuíno


150 Op. cit., 157.


freio conservador, terminar o projeto Saraiva, meia satisfação das ideias liberais de Dantas, e veremos, finalmente, João Alfredo, o que chamou de pirataria a ação humana dos abolicionistas, completado pela fina flor da escravocracia, fazer-se autor da lei de libertação absoluta.

Apreciada na conduta individual, não é menos sensível a miséria. Nem será preciso ir às matrizes – Ledo, Araújo Lima,151  Paranaguá, Hermeto... Cada fortuna política é um caso de condescendência inconfessável, de servilismo, de abjuração. Um Alves Branco, radical que, em 1831, com Ferreira França, apresentou projeto de liberdade de consciência, de federação, que foi contra o tráfico, com a honra de ter sido liberal ao lado de Feijó, que o amparou enquanto teve prestígio: quase se envergonha dessa glória; não aceita o lugar de ministro – para receber a regência em 1837, e explicava que, antes, só o fora por gratidão; veio a ser, finalmente, o Caravelas conservador – dos conservadores maleáveis de Paranhos. Torres Homem, o temível radical do libelo do povo, inexorável contra toda a bragantada; o indefesso advogado dos liberais revoltados em 1842 e em 48: também acaba conservador, na casca de Inhomirim, o que levou o conservador, D. Manuel Mascarenhas, a lançar ao trono a apóstrofe de Seneca – “Morreram os costumes, o direito, a honra, a piedade, a fé, e aquilo que nunca volta, quando perdido – o pudor.” Em compensação, Mascarenhas veio a ser chefe liberal, o que, se não prova contra o seu caráter, prova contra a consciência e a sinceridade dos partidos. Nestas condições, não há que estranhar um biografista, muito a sério, a modo de elogio, vem dizer de Ângelo Maria do Amaral: “... desenganado, ou convencido da confusão dos partidos, votou, ora, por um, ora, por outro...” Note-se, tão confessadas mutações não chegaram a desacreditar o deputado Amaral.


151 Araújo Lima, que chocou o parlamentarismo. O cons. Franco de Sá renegou-o, no entanto. (Tito 75-77).


Apesar de ser aspecto negativo, a universal insinceridade impõe-se à critica dos que procuram as causas da miséria moral. Como asfixiado, Tavares Bastos exclamava: “De franqueza carece o Brasil. Temos em abundância a mentira oficial, a mentira ministerial, a mentira parlamentar, a mentira pública, a mentira particular. Verdade nua e crua: eis a primeira necessidade do país”.152  O longo episódio da questão religiosa, passado ainda nos dias daquela geração, patenteia bem a generalizada pulhice, mais sensível aí porque o caso inclui um motivo íntimo de absoluta sinceridade – a crença religiosa: politiqueiros que teimam em ser, ao mesmo tempo, e publicamente, pedreiros-livres e católicos praticantes; o governo de uma nação constitucionalmente católica, e que castiga bispos por aplicarem aos maçons-praticantes o direito canônico; um chefe de governo, grão-mestre da Maçonaria, e que, na contenda, põe a sua função de governo ao serviço do seu grão-mestrado; um grão-mestre que pleiteia da Santa Sé ter, no seu lar, uma capela privada. Para completar a farsa, há a nunciatura, que está com o grão-mestre, quando Roma parece estar com os prelados. A pena suavemente inflexível de D. Macedo Costa mostra-nos o núncio apostólico a levar, pressuroso, ao grão-mestre, a capela pedida, enquanto deixava sem conforto moral os bispos presos e condenados a trabalhos forçados... de mentira, como tudo que, no regime, devia ser sério. O Supremo Tribunal, que condenara os prelados, fizera justiça nas mesmas condições da que condenara Ratcliffe e Loureiro (§ 2). D. Macedo Costa, como quem não teme contradita, deixa os vulnerantes conceitos: “Que clarão projeta tudo isto sobre o estado moral deste país! Desgraçadamente, a verdade é esta:... condescendências miseráveis, frouxas transações, pactos ignóbeis...”153


152 Cartas, 321.


153 Cotejado o livro de D. Macedo Costa com o opúsculo do Barão de Penedo, verifica-se que o governo imperial mentiu aqui, e mentiu em Roma.





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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim



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