Manoel Bomfim
O Brasil Nação volume 2
SEGUNDA PARTE
TRADIÇÕES
À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
capítulo 6
novo ânimo
§ 54 – O lirismo brasileiro
Na necessidade de conhecer, as primeiras projeções da inteligência se fazem como intuições. Aí começa o pensamento, em generalizações que se ensaiam de metáforas – verdades que a sensibilidade impõe à consciência. Por isso, como em toda parte, os primeiros criadores de pensamento original foram poetas. Assim foi bem expressivamente no Brasil, onde, até hoje, ainda não se destacaram outras originalidades de concepção... Evolução mental retardada, turbada, entrecortada, será o que prolonga a hora da poesia, que, se perdeu um tanto de prestígio, ainda é representativa, e não foi substituída por outros estágios conceptuais – o puro pensamento, ao mesmo tempo abstrato e original. Último termo, talvez, da evolução, esse mentalismo idealista e profundo, desinteressada paixão de si mesmo, ainda não foi alcançado por nós. E, assim retardados, sobrevém a dúvida: chegaremos lá?... No entanto, é no pensamento puro, com a criação filosófica, que os povos ultimam a sua caracterização, tornando-se cada tradição como que imortal. A antiguidade clássica, como os modernos, franceses, alemães, ingleses, qualificaram-se tão definitivamente assim, em feição ideológica, que nada mais os eliminará, como valor soberano sobre as consciências. Quanto a nós, podemos esperar, porque devemos confiar, apesar do retardamento. Devemos confiar, porque o valor mental denunciado na nossa poesia significa movimento de energias íntimas, que se não poderiam aniquilar. Se o romantismo brasileiro fosse a insípida imitação pronunciada em Magalhães passaria nulamente, como passou em outros povos, onde Coleridge, Byron e Lamartine só tiveram ecos surdos e indistintos. Em vez disto, ao influxo do romantismo, os líricos brasileiros produziram uma poesia nacional, e que, assim, teve originalidade, com poder de sugestão própria, com interesse universal. Quer dizer: o romantismo deu-nos vozes específicas, inconfundíveis, expressão das nossas energias afetivas, através das nossas tradições, no estímulo da nossa natureza... Repita-se o nosso, tanto é indispensável para definição explícita do caso. De fato, o lirismo brasileiro, instintiva expressão de ternura apaixonada e comunicativa, teve que refletir a realidade do nosso temperamento. Definiu-se potentemente nos primeiros estros inspirados da natureza brasileira e das tradições que nela se afirmam, e completou harmonicamente a sua feição na riqueza diversa dos três legítimos poetas: Gonçalves Dia, Junqueira Freire e Álvares de Azevedo.
Assim caracterizado, o lirismo nacional enriquecer-se-á ainda, em cantos de valor absoluto; mas, de quantos grandes poetas venham depois ao Brasil, nenhum lhe dará traços novos, apesar da originalidade de cada voz, e do gênio próprio em que se pronunciem: nem a sobriedade calma e profunda de Machado de Assis, nem a intensidade transbordante de Luiz Delfino, nem os enlevos de forma de Emílio de Menezes. Em verdade, de Álvares de Azevedo a Raimundo Correia... até os atuais, todos os estros fecundos sê-lo-ão para confirmar as qualidades já definidas na poesia brasileira. Se há um tom de gênio que nos seja peculiar, é na obra dos líricos que ele se pronunciou. Cada um deles, dos realmente poetas, é uma nota patente, reconhecível, na sinfonia de afetos, imagens e ideias, em que se desenvolve o pensamento poético da nacionalidade. As liras destacam-se nas modulações dos cantos, mas englobam-se na comunidade de inspiração, a identidade de motivos essenciais, e a convergência de efeitos. Com muitos anos de distância, e toda a diferença de temperamento ou de situação social, para dizer – desilusão de amor, Castro Alves, apesar da originalidade do seu estro, passa pelas instâncias líricas de Amor! Delírio – Engano, Palinódia, para, finalmente, vociferar a sua Dalila numa veemência que é a dos sentimentos de Vai!...
.................................... a vida inteira
Concentrei num só ponto – amá-la, e sempre.
................................
Eu e ela, ambos nós, na terra ingrata
Oasis, paraíso, éden ou templo
Habitamos uma hora............
................................
Só por vós, senhora, corpo e alma,
Apesar da aversão que tenho ao crime,
Inteiro me embucei nos seus andrajos,
Em tremedal de vícios;
................................
As vestes da virtude imaculada
Rebolquei-as no lodo...
................................
............ hão-de os meus lábios,
Duras verdades trovejando em versos,
................................
Mentistes no olhar, na voz, no gesto...
Fostes bem falsa!
Falsa como a mulher que em bruta orgia
Finge extremos de amor que ela não sente...
... uma alma como a vossa, já manchada,...
Amá-la eu, Senhora!
Deitar-me sob a copa traiçoeira,
Que ao longe espalha a sombra, o engano, a morte...
................................
Roga, sequer, a Deus, que não te rompa
À luz do sol divino da Justiça,
A máscara de enganos!...
Com Junqueira Freire serão instâncias mais pobres, mas com a mesma intensidade:
Vai, maldita! vai, víbora sangrenta,
Mulher impura, e ávida de infâmias!
O mundo é amplo: arroja-te em seu gorgite,
Mereces bem o seu lodo.
Eu, iludido por teus olhos brandos...
Finalmente, tudo não passa de singelas desilusões e ingênuos ciúmes imaginados e pressentidos, como aquele fácil lirismo os podia sentir e conceber. Aos dezessete anos, Castro Alves, comprazer-se-á em dar a sua imaginação aos mesmos transes, e vocifera ingenuamente as suas veemências contra Dalila:
Foi desgraça, meu Deus! Não!... Foi loucura...
................................
... rebolcar-me em leito imundo e frio
A ventura a buscar,
Errado viajor... sentei-me à alfombra
E adormeci da mencenilha à sombra.
................................
Vai, Dalila!... É bem longa a tua estrada...
É suave a descida............
Mais tarde a morte e a lâmpada sombria
Pendente do bordel.
................................
Não te maldigo, não............
.................. Pede a Deus, louca Dalila,
A luz da redenção!...
Seria pueril levantar semelhanças tais para admitir propositadas imitações. Nem o poeta da trompa bronzeada precisava amparar-se de alheias inspirações. Se ele volta aos mesmos motivos, com tanta aproximação de expressão, é porque há uma como necessidade essencial, feita no gênio da raça. Tal necessidade, superior aos temperamentos, dominando as diferenças reveladoras de cada poeta, faz com que, realçados nas qualidades características deles, os temas se repitam intumescidos nos mesmos afetos. Não pode haver maior diferença de gênio que entre Gonçalves Dias e Castro Alves, que se supunha inteiramente estranho às inspirações do poeta d’Os Timbiras, tanto que não lhe tomou nem uma epígrafe. No entanto, não só no caso apontado, mas em muitas estrofes outras do poeta dos escravos, ressoam carmes que passaram pela lira de Canção do Exílio.
............ pendia a seda em fios,
Bem como tranças de mulher formosa
Por sobre o seio nu............
De quem é esta imagem?... Encontrá-la-emos repetidamente na lírica de Castro Alves, cuja sensualidade se exalta com a visão de colos, no roçar de tranças... Na forma transcrita, é de Gonçalves Dias. Dir-se-ia apetite de raça... Por outro lado: não há nada mais característico da poesia condoreira do que o grito de orgulho – Eu, que sou pequeno, mas só fito os Andes... Lembremo-nos, contudo, que o doce poeta da Saudade já havia inflado na mesma ingênua sobranceria:
............ Bardo sem nome,
................................
Sou mais que um rei com o meu docel de nuvens
................................
Com a vista no céu percorro os astros,...
Não há assimilação possível no que é pessoal – nas formas: mas, passa-se do lirismo das Quadras da Minha Vida para o de Mocidade e Morte, sem sentir outras diferenças: o que naquele tremula, neste crepita... Castro Alves tem como que orgulho em acentuar o seu parentesco poético com Álvares de Azevedo: repete epígrafes que lhe pede. De fato, há uns aspectos de arrojo, além das identidades raciais, que são comuns. E um insistente comprazer nos mesmos motivos, com os mesmos desenvolvimentos:
Quando à noite, no leito perfumado
Lânguida a fronte no cismar reclinas,
................................
E quando eu te contemplo adormecida
Solto o cabelo no suave leito...
................................
Virgem do meu amor, o beijo a furto
Que pouso em tua face adormecida...
................................
Um beijo divinal que acende as veias,
Que de encantos os olhos ilumina,
Colhido a medo, como flor da noite,
Do teu lábio na rosa purpurina...
................................
Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!
................................
– Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!
................................
Negros olhos, as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...
Mais plástico de imaginação, e concreto no desejo, Castro Alves sensualizou o que é simples evocar de uma visão de amor: materializou-a, desenhando formas – quase aberto o roupão... para até falsear o conjunto com o imaginar aquele empenho entre o ramo e a bela... Tudo se diria em assinalar: mais coração em Álvares de Azevedo, mais exigências de sensualidade em Castro Alves. Assim, com a necessária transposição de temperamentos, diferença do sensual para o sentimento, todo o poema – Pensamento de Amor está na poesia À. T..., de Álvares de Azevedo. Penetrando-se das eternas energias do universo, Castro Alves afinou a sua lira para a mesma grandeza: foi a poesia em voo de condor, altissonância que o destacou.
Só a ideia de Deus e do Infinito
No oceano boiava!...
................................
Hora solene das ideias santas
Que embala o sonhador nas fantasias,
Quando a taça de amor embebe os lábios
Do anjo das utopias...
................................
Além serpeia o dorso pardacento
Da longa serrania,
Rubro flameia o véu sanguinolento
Da tarde na agonia...
Ora, aí está: lidos estes versos mais fazem lembrar o poeta de Ao Romper d’Alva, do que Álvares de Azevedo, que os escreveu:
Inteira a natureza me sorria!
A luz brilhante, o sussurrar da brisa,
O bosque verde, o rosicler da aurora,
Estrelas, céus, e mar, e sol, e terra,
D’esperança e d’amor minha alma ardente,
De luz e de calor meu peito enchiam...
Tais são afetos que se repetirão em muitas estâncias de Gonçalves Dias, e que se encontrarão na lira que cantou:
Pálida estrela! e canto de crepúsculo
Acorda-te no céu!...
Ergue-te!... Eu vim por ti e pela tarde
Pelos campos errar,
Sentir o vento, respirando a vida...
E como os motivos não morrem, e as almas se tecem nos mesmos sentimentos, Castro Alves os glosará, num estro que, no entanto, é absolutamente seu:
Amigo! o campo é o ninho do poeta...
Deus fala...
As campinas em flor,
................................
...... Quanta beleza nessas trilhas!...
Que perfume nas doces maravilhas,
Onde o vento gemeu!...
Que flores d’ouro pelas veigas belias!
Vulgarizado, o lirismo de Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo intumescerá os cantos de poetas menores, e teremos Flor do Vale, de Otaviano Rosa, antecipação das mais características estâncias de Aves de Arribação, de Castro Alves:
Flor do vale brincando entre as mais flores...
................................
A brisa da manhã lhe ouvia os cantos,
E o eco da montanha os repetia;
À tarde, sobre a relva perfumada,
Cantando novamente adormecia.
E cantava e sorria............
Quando voltou depois a primavera,
As florinhas e o campo vicejaram:
O vale fez-se verde e o céu sereno,
Mas os cantos do anjo não voltaram...
Sob este céu, nas ondas desta natureza, o mesmo sangue influídos da mesma tradição, vibram os mesmos afetos, e se o ânimo se eleva até a poesia, havemos de encontrar o mesmo lirismo, desdobrado em faces como se multiplicaram os estros. Não há que estranhar, pois, se na mesma emoção passamos do Delírio de Gonçalves Dias ao Supremo Apelo de Emílio de Menezes... No entanto, pode haver mais diferença do que entre a obra de um e a do outro?! Assim, da Vida, Tarde de Verão, Minha Amante, de Álvares de Azevedo; Murmúrios da Tarde, Amemos, Boa-Noite, de Castro Alves; Sonhei que me esperavas, Beijo Eterno, A Canção de Romeu, Noite de Inverno, de Bilac. Com a distância de sessenta anos, quando o estro serenamente augusto de Alberto de Oliveira contempla a vida do seu coração – Solidão, a sua lira, tão pessoal e sobranceira, ressoa em transes que nos trazem a Lágrimas sem Dor e Dor sem Lágrimas de Gonçalves Dias.
_____________
"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Cecília Costa Junqueira
_______________________
Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
_______________________
Download Acesse:
http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-ii-manoel-bonfim/
_______________________
Leia também:
O Brasil Nação - v2: § 53 – Álvares de Azevedo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 55 – De Casimiro de Abreu a Varela - Manoel Bomfim
Nenhum comentário:
Postar um comentário