domingo, 7 de outubro de 2018

O Brasil Nação - v2: § 51 – O influxo da poesia nacional - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2




SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 6
novo ânimo



§ 51 – O influxo da poesia nacional




Para negar a influência política e social dos nossos primeiros grandes poetas, alega-se que eles foram singelas vozes de lirismo, a cantar ternuras e saudades – as suas saudades e ternuras... Ora, é isso justamente que prova o efeito longo e profundo dos seus cantos, pois que eram genuinamente brasileiros. É de toda evidência que os nossos poetas não se criaram a si mesmos; foram legítimos representantes de um gênio nacional já diferenciado, definindo nitidamente as suas tendências, focalizando, para irradiações bem intensas, os seus sentimentos e ideais. Sendo, todos eles, cantores de afetos primitivos, foram sinceros e humanos, seguidamente fecundos sobre o ânimo das populações, que nos seus cantares se reconheciam – ternas, simples e generosas. Apareceram como expressão de um povo que não devia morrer.

Toda a política dera naquela pulhice, nutrida de mentiras, e cujo ambiente mental são os longos poemas oficiais, bafio em que se enlevava o mecenismo imperial. Por fora desse mecenismo, a contrário dele, fazem-se os verdadeiros cantores da alma brasileira – Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire, Alencar, Varela, Castro Alves, Machado de Assis... Falam diretamente aos corações, e incorporam de pronto os sentimentos da nação, em contraste com o regime que a anula. Por isso mesmo, a influência dessa poesia é a dissolução das instituições em que se enfeixara o mesmo regime – escravidão e monarquia. A poesia de até então, glutinosa e flácida, empastava as mentes, para que não vibrassem, e os grandes estros que a ela se opõem, para eficaz oposição, têm de ser pessoais, espontâneos, mordentes, sentidos, vibrantes, em toda a veemência de rebeldes e demolidores. Todos eles inspiraram-se gulosamente do romantismo, que fora, por toda parte, voz de protesto e revolução, e nessa renovação de ânimo eles implicitamente se revoltam contra a sorte de uma pátria rebaixada, condenada por um destino cruel a ser o despojadouro de dirigentes mesquinhos em tudo. E quando os seus versos elevavam as mentes, clamavam por uma redenção nacional. Nos seus cantos se realizou tudo que da poesia se pode esperar, como função socializante: aproximou cordialmente os brasileiros em afetos. E porque em todos eles cantava o próprio gênio do povo, todos se tornaram expressão imediata de amor à terra natal, em alevantado patriotismo. Quem poderá dizer o como se aceleraram os corações, ao simples bater da toada Minha terra tem palmeiras?... Sons esparsos, as ingênuas estrofes de sabor absolutamente popular, logo se resolvem num ambiente vivo, multiplicadas em novos cantos, para estos em que se confundem pátria e amor:


Verdes mares bravios da minha terra...
...... Céu da minha terra,
Tão lindo e tão azul!...
...... a névoa e as flores e o doce ar cheiroso
Do amanhecer na serra,
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu da minha terra...


Quem poderá dar a medida do quanto se sensibilizaram as almas, para mais exaltação e mais beleza de vida? Tais afetos, em que nos comove Gonçalves Dias, passando pela veemência de Álvares de Azevedo, a doçura de Casimiro de Abreu, a tragédia de Junqueira Freire, virão até o estro potente e meigo de Castro Alves, para esses cantos que serão outras tantas glosas d’O Gigante de Pedra e d’O Hino da Cabocla. E, como se exaltam os sentimentos, elevam-se as mentes. Nos seus versos pronunciam-se verdadeiros valores de pensamento e arte: há tons de gênio em verdade de estilo. Os seus poemas são veemências de paixão, destacando as ideias em que se planejará um novo Brasil. Para mais acentuado efeito sobre os ânimos, há que a trágica e fugaz existência, de quase todos eles, lhes cresce o prestígio, para a compaixão que os impõe aos corações. Ao passo que os políticos do segundo Império desconheciam as necessidades nacionais, e esqueciam, e ou desprezavam a índole das populações, a poesia apoderava-se de umas e de outras, a revelar os grandes problemas nacionais em acordo com o gênio da nação, e, com isso, abalou convicções, criou desígnios, abateu preconceitos, forneceu motivos morais, abriu perspectivas de conforto espiritual, como a revolver o ambiente ideal da pátria. E houve essa quadra em que só os poetas tinham voz de originalidade. De fato, no Brasil só a poesia tem sido pensamento original, só a poesia tem sido a legítima voz da nacionalidade. Um Frei Vicente do Salvador, foi verdadeiro poeta, no sentido de que buscou inspiração diretamente na vida e nas coisas, e tudo o disse em tom de pitoresco e de sentimento. Quem quiser a impressão exata de fato, compare o simples pensamento, num Gonçalves Dias, ou Álvares de Azevedo, e o amontoado em que se despejou o lixo que eram as ideias do mundo político circunstante: contempla-se um jardim no cerco dos quintais. 

Para marcar data de renovação, deve-se dizer que a Gonçalves Dias se seguiu o movimento mental que transmutou e enriqueceu o pensamento nacional. Todo o valor é da produção poética. Da plêiade que se destaca, alguns – Pedro Luiz, Alencar, Otaviano Rosa... serão atraídos para a política, em cuja inferioridade se desnivelam, e teremos, em cada um destes, duas mentalidades: o poeta de Terribilis Dea e o banalíssimo ministro de estrangeiros da questão religiosa; o exaltante evocador das puras tradições brasileiras, e o criterioso Erasmo, conservador de convenção, empastado em circunspecção, até descambar no despeito... Alerta do espírito, nas vagas da poesia, o Brasil conheceu um novo patriotismo, estuante, ingênuo, se quiserem, porque é ânimo de juventude, mas inflexível como o próprio destino de todos aqueles poetas. Numa sociedade vivaz, e que ainda não se afirmou; sempre contida, abafada, contrariada nos movimentos de formação; repetidamente desiludida de aventuras políticas; era fatal que chegaria esse momento – em que a tomaria a pura necessidade de sentir idealmente... E o Brasil de 1850 ardeu no lirismo dos seus cantores, que, se não criaram as fórmulas de um tal sentir, pelos menos condensaram intensamente toda a alma da nação, em nitidez de visão e evidência de afetos. Com eles se definiu, então, o Brasil que se negou finalmente ao baço imperialismo bragantino, e contendeu até abolir a escravidão.

Puro lirismo, que ação poderia ter para tais resultados?... 

Fora impossível, aos singelos corações brasileiros, resistir ao influxo desse lirismo, por isso mesmo que era singelo. Quem os captasse, com os cantos de simples paixão, teria aberto o sulco em que os levaria para mais complexos sentimentos de patriotismo, justiça, solidariedade humana... Neste fim, a obra de um Gonçalves Dias, Castro Alves, Bilac, ou Pompeia, tem mais significação, infinitamente mais, do que toda a parolagem dos políticos, do segundo reinado, e da República seguinte. Tem valor absoluto: são vértices de pensamento, num mundo onde ainda não havia possibilidade de fazer-se pura ciência, e, menos ainda, pensamento filosófico, E foi assim que, pelo estro deles, chegamos a definitivos efeitos. Se o sentimento geral, exaltado por eles mesmos, não no pedissem, não haveria as estrofes de Pedro Ivo, Nunes Machado, Monumento Equestre, A Escrava, Vozes D’Africa... E temos de convir que nesses versos se reconheceram, enlevadas, as almas brasileiras, para sentir a necessidade de novamente tentar a democracia, e fazer a redenção da raça oprimida. A crítica miúda insistirá: tudo não passa de devaneio, sem possibilidade de eficiência entre os fatores sociais... É a mesma restrição que podaria o gênio se o pudesse, e que julga insignificante o nosso lirismo por exaltar-se no tema do amor. São os critérios que se irritam, ou se apavoram, ante a inquieta exuberância dessas liras de 1845-70, e porque se sentem incompatíveis com essa exuberância de afeto negam-lhe prestígio sobre as consciências... “Ama, diz a verdade, e terás todo o poder da simpatia...”. Eles foram, todos, intensas ressonâncias de amor, sem que, por isso, fossem banais: “Pour parler des choses de l’amour il faut, toujours, beaucoup d’esprit... (Remy de Gourmont). Foi o que nunca lhes faltou, a eles, que nunca foram enfadonhos, desde o primeiro. Hoje, isolado, o conceito nos parecerá insignificante, ou banal, mas enastrado em todo um desenvolvimento de verdades afetivas, – nascer, lutar, sofrer... vale por uma filosofia, que nem será de desalento, senão de desinteressado conforto moral:


Eu morrerei tranquilo:
Bem como a ave ao pôr do sol...


O pensamento está distante, sem objeto em que se defina; no entanto, estimulada nesses afetos, a mente toma do primeiro motivo, eleva-o em lucidez de conceito, vibrante como a consciência do crente na estesia do incenso e do canto que enche o santuário... Que importa a vulgaridade do desejo, quando Álvares de Azevedo solta a sentida evocação?


Amor! Amor! meu sonho de mancebo!
Minha sede! meu canto de saudade!
Amor! meu coração, lábios e vida,
A ti, sol do viver erguem-se ainda...


Esquecemos a trivialidade do motivo, e vamos com o ímpeto até a essência mesma da vida, que se não exaure. E aceitamos a poesia como a sublime necessidade do que é humano, como ele aceita a necessidade viver, não em arrastado destino cego, mas numa consciente e cordial colaboração com o mesmo destino. Sem laivo de filosofismo, o meigo dos meigos, Casimiro de Abreu, refaz o conceito, retemperando-o em puros afetos:



Chora perdida essa ilusão primeira...
                   Mas vive e sê feliz............
................................
Vive e canta e ama............
A pátria, o céu azul, o mar sereno............
Canta: e que os teus hinos de esperança
Despertem deste mundo de misérias
                 A estúpida mudez...



Para que pretender sobrancerias com vistas ao coração? Por que não reconhecer os toques de enternecimento que acompanharam esses cantos?... Para alcançar toda a extensão de efeitos desses líricos, é preciso atender a que, durante decênios, todos os ânimos, em todas as gerações, repetiram esses cantos, imprimindo-os no sentimento. É certo que os inquietos quatorze anos da adolescência não davam para alcançar o valor mental dos versos. Bastava a sonoridade e o vago alevantado dos conceitos:


As almas angustiadas,
Como águias desaninhadas,
Gemendo voam no ar...
................................
A estrofe é a púrpura extrema,
O último trono é o poema,
Último asilo – a canção.


Se não valiam como ideias para maior riqueza de pensamento, projetavam-se nas mentes juvenis como jatos de entusiasmo, pondo-as na porfia do ideal. Quase todos esses grandes líricos foram populares, se não na totalidade da obra, na parte mais característica de cada uma delas. E quando não agissem diretamente, foram os inspiradores de todos os poetas menores do tempo mais familiares, mais acessíveis – Laurindo Rabelo, Bitencourt Sampaio, Otaviano Rosa, Almeida Freitas, Teixeira de Melo, Silva Guimarães, Pedro Luiz, Nascentes Burnier, Franklin Doria, Melo Morais, Bruno Seabra, S. Paio, Aureliano Lessa, Almeida Braga, Calazans...


Viste............
Flor do vale brilhando entre as mais flores?
...... puro era o céu, verde o campo,
E a vida alegremente lhe corria;
................................
A brisa da manhã lhe ouvia os cantos,
E o eco da campina os repetia............
................................
E cantava e sorria............


Não haverá coração brasileiro que se não reconheça na fácil e franca emoção desse lirismo. Os afetos repousam, sem perderem de estímulo. É um encanto que se infiltra nos veios da alma... Nem se acharia melhor caracterização da nacionalidade do que essas comovidas estrofes. Muitas delas entraram para a modinha, tão essencialmente das nossas tradições, e, assim, desbotaram. Outras desbotaram nos ingênuos recitativos. Foram, destarte, influxos constantes: desbotaram, mas as tintas ficaram nas consciências por onde passaram. Minha Maria é bonita; tão bonita assim não há... é um suspiro nas vascas da epopeia. Tiraram-no de lá para o violão, e muitos que cantam as trovas nem sabem quem é essa Maria, pálida, perdida na música banal, tão banal, pelo mesmo desbotar, como a melodia onde se diluiu esse outro:


A languidez dos teus olhos
Inspiram minha canção...
Sou poeta porque és bela,
Tenho em teus olhos, donzela
A musa do coração............


E assim desbotaram: Meu anjo, escuta... Se eu fosse querido de um rosto formoso... São duas flores unidas... Oh! dias da minha infância... As ondas são anjos... Não descoraram, nem descorarão nunca, as paisagens de sentimento tracejadas nos versos: Saudade, Oh! bela flor!... Se tenho de morrer, na flor dos anos... Como é bela a manhã!... Meu pobre coração... Uma noite, eu me lembro... Oh! quero viver... No delírio da ardente mocidade... Musa dos olhos verdes...



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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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