domingo, 26 de agosto de 2018

O Brasil Nação - v2: § 49 – Ranço de pensamento, untando desalentados... - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2




SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 6
novo ânimo



§ 49 – Ranço de pensamento, untando desalentados...




País onde, até 1808, não havia imprensa, e que, mesmo em 1820, só via imprimir-se o que era do gosto de D. João VI; nação em que, até então, não se reconhecia, sequer, a necessidade de estudar e conhecer a própria natureza; num Brasil assim formado, é milagre que a inteligência não tenha de todo desaparecido, uma vez que a proclamada Independência consistiu em entregá-lo à mesma gente dirigente, nas mesmas formais tradições políticas. No entanto, foi bem ao contrário disto: passadas as vicissitudes de que resultou o replantio do Império bragantino, logo em 1845-50, o Brasil ilumina-se de um pensamento próprio, vibrante porque é sentido, profundo, porque humano – a nossa poesia lírica, com valor bastante para abalar a alma da nação, de que esse mesmo lirismo veio a ser a instintiva expressão de vida, na irresistível necessidade de firmar as suas primeiras e puras tradições. Bem representante de si mesmo, o Império, a medrar poderoso, completava-se na plêiade de literatos seus, ajustada parelha dos seus historiadores: os Alves Branco, Tenreiro Aranha, Magalhães, Porto Alegre... Varnhagem, Pereira da Silva, Moreira Azevedo, Pinto de Campos... em quem se continuava Frei Itaparica, Santa Rita Durão... Rocha Pita, Pereira de Sá... cada vez mais serôdios, abundantes, flácidos e vazios. Não é que faltassem vozes de sentida sinceridade dentre os versejadores. Elas se multiplicam, mesmo, por toda parte onde há atividade de pensamento e interesse por esta pátria: o próprio Andrada, Frei Caneca, Odorico Mendes, Natividade Saldanha, Teixeira de Macedo, Januário Barbosa, Lino Coutinho, Amaral... Mas não se pode achar neles outro merecimento além da sinceridade. Político e poeta era necessidade íntima de todos os ativos – políticos ineficientes, poetas de pouco estro e arte ronceira. A própria sinceridade, mal se reconhece, empastada no arcadismo em que se fossilizava a poesia do tempo. E não eram os sinceros que davam o tom das produções aclamadas, senão versejadores exclusivamente literatos, para inteira razão de conceito: L’art ne fait que des vers; le cœur seul est poète


Foi a idade de ouro da musa da adulação. Custou, até que o Brasil tivesse pensamento em expressão própria, consoante os seus estímulos, e tudo provinha de que era tão difícil, para esta pátria, ter uma verdadeira independência literária, como o fora para a independência política. O passado não nos dera, nem a educação social e política precisa para termos democracia de verdade, nem os meios de formação mental, donde pudesse resultar, desde logo, um pensamento próprio e afirmativo. Sem outros veios de ideias se não o Portugal dos séculos XVII e XVIII, a sociedade brasileira dos decênios seguintes à Independência se encontrou sem possibilidades de uma produção intelectual caracterizada em beleza e originalidade. Faltava-lhe orientação renovadora, como lhe faltavam modelos para uma inspiração imediata. Além disto, convém não esquecer que a literatura deriva sempre da vida urbana, com os influxos que aí se geram, o gosto que aí se apura e as finanças que aí têm giro. Ora, até os meados do século passado, os influxos, o gosto, as finanças das grandes cidades brasileiras vergavam sob o mercantilismo português, avesso às coisas do pensamento, indiferente às puras solicitações estéticas. E o mal se agravou por uma irresistível atração da política: todo mundo capaz de dar lazeres à literatura atirava-se à política, de tal sorte que a pura expressão de arte ficara para os pobres de entusiasmo, refratários à emoção, sem pulsações para a vida ambiente, sem vibração no conflito das almas. Por isso mesmo, toda a produção poética do Brasil, até 1845, ou é o simples desafogo de patriotas em ondas de ilusão e transes de desespero, ou a sornice de – náiades, e graças, e zéfiros, e frescos regatos...(1) estirões mornos e estiolantes, flatulência que enfara antes de absorvida. Era uma poesia, não abstrata, mas vazia: paisagens de convenção, sem reflexo do ambiente, sentimentos de obsoleto clássico, ou de epopeias esgotadas, arcaicos gongorismos, solenidade em tolices... tudo incompatível com a arte legítima e o fecundo pensamento, apanágio das almas em orgasmo de vida. Longas melopeias insípidas, sem uma ideia que sustente o intelecto, sem uma imagem que incorpore a visão e exalte a sensibilidade. Se por acaso ocorre uma plástica, o eruditismo falho logo a subtrai à realidade:



Um rompante leão! Lança-se ao astro,
E o devora de um trago...
 

Sem raízes de sinceridade, sem linhas para colorido, essa poesia esbofa-se em efeitos nulos, sem, ao menos, a cadência estética:


Ameaçando a terra, foi quem trouxe
A prole que trovões dispara e raios!
Alguma oculta lágrima var-me-eis
Na minha dor vertê-la neste instante.



Arremedos de poemas, que, em longas páginas assim se esfarelam Colombo... A Confederação dos Tamoios... Que título de epopeia, e que epopeia para o título!... No entanto, sem maior esforço, descobre-se-lhe o motivo real: aquele desarticulado sonho de Jogonharo, e que, vindo de Anchieta, acaba na maioridade imperial... São indiferentes a tudo, até ao ridículo. 



Perdendo-se no rançoso classicismo português do século XVIII, a poesia brasileira dos Tenreiro Aranha e Magalhães se faz em espessura malsã, que encobre as almas e desnatura as paisagens. Através de todos eles, não há diferença de escola, nem de inspiração ou processos, que sejam as tragédias de Macedo ou os versos brancos e nulos de Dutra e Melo e Sousa e Silva. A natureza brasileira aí está, e eles não têm alma para senti-la, nem sentidos que nela se embebam. Quando pretendem retratá-la, apenas repetem serôdias e obsoletas convenções:




Além, salvas de bastas laranjeiras
............ favônios feiticeiros...
Distante milhas três sobre as ribeiras
Do manso mar terreno, era um silvedo...
................................
Sobre o gramíneo chão nédia repasta,
Entre o bovino armento, a raça equina...
.............................
...





E, assim, em amaneiramentos, artifícios nulos, e alambicados retorcidos, vêm as musas broncas até Rodrigues Silva e Pereira da Silva:



Audaz Jequitibá, que inda na infância
Co’a cima excelsa devassa os céus!
Eu o vi pelos raios matutinos
Do sol apenas nato auri-tingindo...
................................




Na formação de um povo, a última expressão é a do pensamento, cuja primeira manifestação é a poesia. Toda nacionalidade a afirmar-se procura definir-se em cantos poéticos. No nosso caso, a ordem de desenvolvimento é bem explicitamente: reconquista de Pernambuco, epopeia dos sertões, reivindicações nacionalistas, revolução de dezessete, reação política de 1823-31, lirismo de 1845-8... Tudo parecia perdido como esforço de realidade brasileira em democracia; o segundo Império aceitara a política de 1837-40, e ajustara-se a ela definitivamente, na pulhice da mentira parlamentar em que viveu. Dissiparam-se todas as esperanças, sem referências, sequer, às repetidas desilusões. Parecíamos fora de tempo, sem continuidade com o resto do mundo, onde, à onda revolucionária, sucedera o pensamento romântico, seguido das prodigiosas descobertas da ciência, as formidáveis aplicações práticas, a oferecer novas bases para a política nacional, a vida em novos aspectos, a eterna questão social, para grandiosas esperanças, por entre incertezas angustiosas e explosões formidáveis. E o Brasil continuava intoxicado, no perene bragantismo nutrido de mentiras mortas, numa desistência absoluta de tudo que eleva o pensamento e exalta os corações. E a grandeza da época se reduz, para a política brasileira, às perspectivas materiais – comércio, colonização, força guerreira, indústria, riqueza... Aspirações e ideais são fósseis, profundamente enterrados, sob o paul das rãs que fingiam parlamentarismo, e o exploravam para conservação da escravidão, na forma do financismo baço, que era o maior pensamento deles. Nunca uma época pesou mais sobre a inteligência. A mediocridade domina, dirá, depois, José de Alencar, banido da fortuna política porque não é vulgaridade. (2)

Foi quando a alma nacional, sempre fiel à tradição primeira, porque não podia anular-se, voltou-se para as puras instâncias do pensamento, em surto de beleza, para a realização da justiça. O idealismo de 1830, sublimado nas glosas do romantismo, ainda possuía o mundo, e a alma brasileira, singelamente boa e generosa, manifestou irresistível tendência ao enternecimento coletivo, já por fora da política – amesquinhada, aviltada. Foi a quadra propícia para o acender da poesia. O Brasil teve uma nova forma de expressão. “Muito há que dizer sobre as origens de um poeta como sobre as origens de um povo...” Notando rapidamente esta verdade, Araripe Junior não pensou, talvez, nos longos desenvolvimentos dela, e no que há de comum entre uma e outra dessas origens; então, a esse propósito, vem-nos o truísmo: não há povo, em nacionalidade distinta, sem poetas, como não há poeta sem a alma de um povo onde as suas vozes tenham eco. Daí a necessidade de acentuar o valor ou o papel social, nacional e político, dos grandes poetas brasileiros. Não se trata de história literária, ou de qualquer pretensão de crítica; mas, tão somente, de destacar os efeitos socializantes desse comovido lirismo nacional, sobre as túmidas gerações de 1845 a 89... E bem haja o segundo Império, que foi a causa ocasional da explosão poética em que o pensamento brasileiro se definiu: a paz de abafamento em que se liquidaram as generosas aspirações de 1824-31, dissipando esperanças, fechou as últimas frestas de expansão, na vida de um povo que apenas começava a existir, e as ilusões, mentidas e recalcadas, tiveram de buscar outras vozes de expressão – a pura expressão do sentimento, realçado em ideias e imagens.




(1) Note-se: todos esses espécimes foram tirados a trechos escolhidos como primores de uma Seleta.


(2) Paulino Soares de Sousa fora companheiro de Álvares de Azevedo, e quis deixar um testemunho de pena e de saudade, na hora do seu desaparecimento: “... era um jovem cheio de talento... destinado por suas brilhantes qualidades a ocupar uma posição eminente... faltando-lhe apenas alguns meses para terminar a sua carreira escolástica...” E toda a pulhice do ambiente político, em confronto com a poesia nascente.


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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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