Manoel Bomfim
O Brasil Nação volume 2
PREFÁCIO
– CECILIA COSTA JUNQUEIRA
Manoel Bomfim, o educador revolucionário
(continuação)
Mas deixemos que o próprio Manoel Bomfim nos exponha seu pensamento. Sintamos um pouco seu pulso de historiador sem papas na língua, deixando que nos revele como via o Brasil através de sua própria escrita:
A infecção bragantina, fazendo inclinar os destinos desta pátria, deixou-a em indefinida servidão política. Colônia, Império ou República, o Brasil tem sido o repetido espojadouro de mandões. Substituem-se as designações, para mais inveterada conservação da miséria, pois que capitães-generais, capitães-mores, governadores e presidentes são, em essência, a mesma coisa. Trinta e sete anos de mentida República tem sido, apenas, acentuação da injustiça e do despotismo, agravados em prevaricações e mais torpezas de dinheiro. Tem-se a impressão de que, já agora, é impossível organizar legítima democracia com tais dirigentes, feitos numa tradição política definitivamente pervertida. Não há realidade de autonomia local, como não há compreensão do que seja liberdade. Sucedem-se os homens, mudam-se as rubricas, e eles não saem do arcaísmo político – governo-domínio- usufruto- privilégio- opressão e espoliação...
Apesar de todo o seu antibragantismo, Manoel Bomfim admitia, porém, que, no tempo de D. João VI e, sobretudo, no de D. Pedro II, houve uma preocupação com a educação, que teria feito florescer no Brasil uma vida intelectual autônoma, capaz de gerar reivindicações de independência e separatismo e mesmo revoluções. Tudo rolaria ladeira abaixo, no entanto, na República, período em que a ignorância seria mantida intata, se é que não crescera ainda mais:
Tudo computado, se se coloca o Brasil de 1840-1888... em face do mundo, verifica-se que a nação involuiu, pois que aumentou a distância entre a frente de progresso dos outros povos e aquela em que nos encontrávamos ao findar o século. Sufocada pela metrópole bragantina do século XVIII, era a colônia-Brasil a parte mais retrógada do mundo americano, mais do que as colônias de Castela, onde já havia a imprensa... Com todo o vírus de podridão em que existia, o governo de D. JoãoVI fez com que o Brasil tivesse uma vida intelectual própria, com desenvolvimentos sociais e políticos de tal monta que, dez anos passados, todos reconheciam ser impossível reduzir a nação brasileira, já exuberante em manifestações suas, à antiga condição subalterna, de colônia.
E Bomfim continua, explicando o inexplicável:
Resultou daí a independência – marca falseada desde logo, renegada depois pelo próprio príncipe que a explorara... Pouco importa; lançado a viver, o Brasil resiste a todos esses males e injúrias; expande-se e floresce, num vigor que, por ser essencialmente político, nem por isso deixa de ter acentuados efeitos intelectuais, jurídicos e sociais. É a portentosa reivindicação de 1826-31, até os lances decisivos de 7 de abril. A persistente crosta bragantina não pôde ser esfoliada, e, refazendo-se, quase anulou os efeitos de 1831. Contudo, tal era o vigor do Brasil de então, que aquela revolução amesquinhada, sonegada, traída, ainda teve poder de realizar as únicas verdadeiras liberdades do regime constitucional...
De onde provinha este inusitado vigor? Da educação, é claro... pois, como informa Bomfim, “foi naquela instância de formação que se criaram as escolas superiores, como se desenvolveu e apurou o estudo das humanidades, por sobre um bem concebido esforço de instrução primária. E havia estímulo para organizarem-se institutos como o Histórico e Geográfico”. Ao longo do segundo Império, porém, a educação continuou discricionária, balbuciante ou só para eleitos:
Desprezava-se ignominiosamente tudo que diz com a verdadeira elevação mental, econômica ou social de uma nação. Não havia instrução popular, nem profissional, nem centros de cultura desinteressada. Tudo se resumia na continuação das célebres escolas régias, trôpegos colégios preparatórios, e as três escolas de intelectualismo técnico – Medicina, Direito e Engenharia. Quando se pensa nas necessidades efetivas daquele Brasil de 1850-1890, cheio de vigor e ansioso de progresso, a condição em que o Império o mantinha era realmente infame e desgraçada. O imperador tomava parte em sessões do Instituto Histórico, assistia aos concursos das escolas superiores, discreteava com os sábios europeus... e isto devia bastar como preparo intelectual e formação industrial dos milhões de brasileiros...
O resultado desta política educacional para privilegiados, segundo Bomfim, foi terrível: “... ao cair o Império, letrado e liberal, apenas 2% dos brasileiros sabiam ler e escrever. Na própria corte, somente 9 mil crianças frequentavam escolas primárias oficiais; havia um ano, apenas, que fora devidamente regulado o funcionamento da primeira escola normal para a formação de professores primários”. Alguns anos antes da Proclamação da República, em 1880, Félix da Cunha chegaria a afirmar que “toda a instrução primária estava reduzida à leitura elementar, às quatro operações e à cartilha da doutrina cristã”. Ou seja, o país continuava a ser “o reino do obscurantismo, cuidadosa e sistematicamente cultivado. Todo o incentivo ao pensamento não passava de uma repetida mentira, para a perpetuação da ignorância, reduzida a massa da população a hordas ignaras...”
Dentro deste quadro, chega a ser um milagre que, em meados do período bragantino, o Brasil ainda tenha conseguido ter vida inteligente. E conceber poetas:
País onde, até 1808, não havia imprensa, e que, mesmo em 1820, só via imprimir-se o que era do gosto de D. João VI; nação em que, até então, não se reconhecia sequer a necessidade de estudar e conhecer a própria natureza; num Brasil assim formado, é milagre que a inteligência não tenha de todo desaparecido, uma vez que a proclamada independência consistiu em entregá-lo à mesma gente dirigente, nas mesmas formais tradições políticas. No entanto, foi bem o contrário disso: passadas as vicissitudes do replantio do Império bragantino, logo em 1840-50, o Brasil ilumina-se de um pensamento próprio, vibrante porque é sentido, profundo, humano – a nossa poesia lírica, com valor bastante para abalar a alma da nação...
Foram os poetas, muito mais do que os políticos – como já afirmei aqui – que, na opinião de Bomfim, ajudaram a criar, com os seus versos, um sentimento de nacionalidade. O mesmo ocorrendo em todos os países do mundo: sem poetas não há nação, ou alma nacional. “Na formação de um povo, a última expressão é a do pensamento, cuja primeira manifestação é a poesia. Toda nacionalidade ao afirmar-se procura definir-se em cantos poéticos”. Daí o amor que Bomfim mantém pelos poetas “romanticamente patriotas”. Cada um deles – Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo, Castro Alves, Casimiro de Abreu, ou Fagundes Varela – dera o melhor de sua alma ao amor da terra mãe e das suas tradições.
Outro milagre, observa ainda o historiador sergipano, é a misteriosa força do povo, que mesmo aviltado produz, mantendo o país em funcionamento, em vez de se suicidar. Mas o obscurantismo teria de acabar. A educação de qualidade, despertadora de consciências, teria de ser para todos, nem que fosse por meio de uma revolução social-comunista. Esse foi o último sonho de Manoel Bomfim:
Concretamente; para evitar o desastre, temos que agir sobre as novas gerações, robustecendo-lhes o corpo, e, sobretudo, apurando-lhes as energias do pensamento, desenvolvendo-lhes o caráter em lucidez e poder de vontade, para a solidariedade da ação. Tanto vale dizer, há que educá-las, como o exigem as condições do mundo moderno, ainda que, para tanto, seja preciso refazer a ordem política. Pois não é verdade que precisamos sair desta vida de moleza, espasmos e insuficiências, por si mesmo incompatível com a renovação de ânimo, e todo esforço útil e vencedor? Higiene, instrução, método, ardor social, preocupações políticas, consciência moral, ideias... tudo isto, de que tanto carece o brasileiro, só a educação lhe pode dar. Será a própria renovação nacional. Quem o contestará?
Ninguém, ninguém pode contestar, nem mesmo passados mais de 80 da morte do historiador e educador. O Brasil já não é mais o de 1930... muita água se passou por debaixo da ponte. Mas a educação, tristemente, continua sendo uma grande ferida aberta. E a classe dirigente ainda é cega e espoliadora, agarrando-se a seus privilégios “bragantinos”.
O utópico e paradoxalmente tão realista Manoel Bomfim nasceu em 8 de agosto de 1868 na cidade de Aracaju. Formou-se em medicina no Rio de Janeiro em 1890, tendo sido nomeado médico da Secretaria de Polícia em 1891. Ao se casar com Natividade Aurora, se mudaria para Mococa, no interior de São Paulo, visando a clinicar. Teve dois filhos, Aníbal e Maria. Como a menina faleceria com apenas um ano e dez meses, o pai, desiludido por não ter conseguido salvá-la, abandonaria a medicina. Voltaria então para o Rio, onde se dedicaria aos estudos sociais e à educação, ministrando aulas particulares de Português, Ciências e História Natural. Além disso, escreveria artigos para jornais e faria revisão de provas tipográficas.
Em maio de 1896, é convidado pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro para ocupar o cargo de subdiretor do Pedagogium, instituição governamental que tinha a função de coordenar e controlar as atividades pedagógicas do país, funcionando como um centro estimulador de reformas e de melhorias para o ensino público. Em março de 1897, Bomfim seria nomeado diretor-geral do órgão.
Em agosto de 1907, tomou posse como deputado federal, pelo Estado de Sergipe, substituindo o então deputado Oliveira Valadão, que havia renunciado ao cargo para ocupar o de senador da República. Bomfim exerceu seu mandato até dezembro de 1908. Tentou a reeleição, mas não teve êxito. Com isso, deixou para sempre a política, voltando-se exclusivamente para a produção intelectual, jornalística e literária. Além da trilogia O Brasil nação – Realidade da Soberania Brasileira, América Latina, males de origem, e O Brasil na História, escreveria livros sobre educação e psicologia, como Cultura e Educação do Povo Brasileiro e Noções de Psicologia.
Também deixou livros didáticos destinados ao curso primário e ao ensino médio, tendo escrito, juntamente com Olavo Bilac, três obras que marcaram a formação inicial de várias gerações de brasileiros: Livro de composição para o curso complementar das escolas primárias; Livro de leitura para o curso complementar das escolas primárias e Através do Brasil, livro da leitura para o curso médio.
Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: “Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada”. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade.
Cecília Costa Junqueira
é Jornalista e Mestre em literatura Brasileira pela UFRJ
– Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
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O Brasil Nação - v2: § 49 – Ranço de pensamento, untando desalentados... - Manoel Bomfim
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