sábado, 8 de setembro de 2018

O Brasil Nação - v2: § 50 – O poeta - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2




SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 6
novo ânimo



§ 50 – O poeta




Será afronta à sensatez geral o pretender que a poesia tenha função social. Para as gentes circunspectas quais são os dirigentes em todos os países, e, assim, incorporam as opiniões políticas, poeta quer dizer leviano, fútil, fantasista, insensato, avesso às realidades com que se faz governo; poetas significam mentalidades de descritério, viciadas em sentimentalismos, anuladas por ideias e quimeras, corações tangidos por entusiasmos e paixões, caracteres perigosos, em vista dessas mesmas paixões e entusiasmos, inúteis ou nocivos, nas duras exigências da vida... E, muito logicamente, nenhum dirigente, circunspecto e medido, iria chamar um poeta para diretor de um banco, presidente de conselho, ou chefe de partido. São responsabilidades que a própria frivolidade da poesia rejeita. Tranquilas por aí, essas gentes medidas e circunspectas refugam meditação verdadeira, senão havia de torturar-lhes o intelecto aquilo a que se poderia chamar paradoxo da poesia: práticos e seduzidos pelo êxito, como são os ingleses e norte-americanos, esquecem ou abandonam a memória dos seus presidentes de banco e relatores de orçamento, ao passo que religiosamente conservam a lembrança dos Shakespeare, Milton, Colewidge, Byron... Longfellow, Edgard Poe, Witman... Dir-se-ia que a afirmação da nacionalidade e a continuidade da nação, em cada um desses povos, dependem de influxos que se encontram nas obras dos seus poetas. E, de fato, é assim. 

Na vida moderna, complicada e multíplice, diferenciaram-se nitidamente os dois aspectos – gerência de finanças e sublimação de sentimentos com definição de ideias. Para a primeira, são aptos os muitos orientados para o clássico bezerro. O segundo mister, inconsistente nas mãos duras da finança, impalpável fluir de inspirações, teve de ser deixado às raras sensibilidades de poetas, e é despercebido pela suinez prática, que não pode levantar os olhos para alcançar o céu dos corações. No entanto, as instituições que brotam de cada estro são influxos que aproveitam às próprias gentes circunspectas, na medida em que se lhes apura o sentimento para a emoção moral, para a exaltação em beleza. Estrofes sentidas e inspiradas são estímulos em que se intumesce, orienta e harmoniza o sentir geral na sinfonia de afetos, indispensável estrutura moral para a afetiva solidariedade de vida em cada grupo humano. No mundo antigo, simples e fácil, o poeta realizava imediatamente a sua função, e punha as suas instituições ao serviço direto da nação: era político, guerreiro, sacerdote... Na distância de tempo, não é possível saber se, ao influxo imediato deles, era a vida mais digna e mais feliz. Nem importa ao caso, senão o acentuar-se que a poesia, qualquer que seja o grau de civilização, tem sempre significação definida e consagrada, na distribuição dos fatores sociais. Em que consiste, então, a função do poeta?... Na essência mesma do seu estro encontra-se a indicação do papel que lhe cabe entre os homens. 

Intuição sentida das misteriosas relações do ente humano com o universo, a poesia vale como encontro inteligente do mundo interior com o mundo ambiente.


Si vous avez en vous, vibrantes et pressées,
Un monde interieur d’images et pensées,
De sentiments, d’amour, d’ardente passion,
Pour féconder le monde............
Melez toute votre âme à la creation!


Em verdade, a realização da poesia é o próprio sublime da vida humana, na contingência das necessidades morais, que se definem em aspirações, como a solidariedade se impõe na cordialidade do sentir. E a inspiração vale como revelação, cujo divino é a vida mesma. Contemple-se um poeta legítimo e completo: é um povo todo num só espírito. A sua obra impõe-se qual comovida condensação de experiência humana, e que vai direito às almas; uma humanidade a realizar-se, novas formas que a imaginação criou extraindo a vida da vida mesma. Acordo imediato da forma com o pensamento, fusão da ideia na imagem, a poesia inclui nos seus motivos diáfanos todo o sublime do sentimento de um povo. Na poesia e nos nossos corações, há de haver identidade de afetos, para realidade de efeitos. O mérito do cantor está em condensar num só movimento a multiplicidade de sentimentos, e dar-lhe forma própria, nítida e penetrante, ondas de simpatia, para uma expansão avassaladora. Será espontâneo, sincero, e, com isto bárbaro, muitas vezes, como o exige a própria sinceridade. Tal acontece em todas as fases de renovação. De um viver ordinário, através da sua sensibilidade, emana, então, o irresistível refazer de destinos, mais irresistível pelo encanto mesmo da obra poética, E a miséria que, algumas vezes, almas de poetas têm refletido sobre a vida?... É natural, pois, que o estro não retira ao homem a sua condição humana. Pode, o poeta, fazer, na existência ordinária, uma moralidade escassa, em atos condenáveis: não anula, isto, o poder do seu canto nem a sua função social (Lebrun):


........................... une lyre sublime,
.................. un cœur faible, pusillanime,
Inhabile aux vertus qu’il sait si bien chanter,
Ne les imiter point et les faire imiter.


Prefere-se, certamente, o poeta que chega a realizar as belezas morais da sua inspiração. Piron, José Agostinho de Macedo... aí estão para dar razão a Boileau. De todo modo, a inferioridade da vida particular não é desvalor no influxo de um poeta. Quanto aos nossos líricos de 1845-70, quase todos eles, existências fugazes, juventudes que findaram no túmulo, foram somente inspiração radiante, sem permanência para aviltamentos. E isso não lhes diminui o prestígio, porque, para tais efeitos, a vida não se mede no tempo: pesa-se no conteúdo. Líricos, em toda a pujança da alma, e porque o lirismo é a própria essência da expansão humana, eles foram feitos para derramar as vagas de afetos em que se levam os corações. O mote principal das suas liras foi o amor, e os critérios curtos, abaixo do amor, apontam, justamente, esse tema como a inferioridade daquela poesia. Notemos, em primeiro lugar, que, na intensidade dos seus efeitos, basta o amor para encher um estro, e que se há, num poeta, verdadeiro gênio, ele deixará sempre uma obra de longos reflexos humanos. Nem por ser o mesmo tema, em todos, eles chegaram à vulgaridade. Já foi dito: “L’amour est comme la mer: on peut y prendre toujours, il en reste toujours autant”. E foram, todos, exclusivamente subjetivos, pecado que a crítica pedante não lhes perdoa, não obstante que esta é a condição essencial da poesia – pensamento sentido, realçado em imagens. Ora, sentimento é sempre o interior de uma alma; como imagem, é o mundo através da subjetividade dos temperamentos. Também se deprime o lirismo primeiro do Brasil, por ser lamentoso e dolente... Sim: a dor tresanda na maior parte daqueles cantos; mas a dor é o destaque maior das almas. O gemido desprende a piedade, e os transes fortificam a energia. Já Homero se mostra gozando a própria dor, em grande efeito sobre os corações. Para todo legítimo poeta, a dor é santa e sagrada. Lamartine chama a sua poesia – dechirement sonore de mon cœur... Musset, o impávido boêmio, não é menos nítido:


L’homme... la douleur est son maitre,
Et nul ne se connait tant qu’il na pas souffert...


Otaviano Rosa, estro menor daqueles dias, repetirá o comovido conceito, hoje desbotado, de tanto o repetirem brasileiros que se encontravam com o seu sentir:


Quem passou pela vida em branca nuvem...


Como estesia mesma dos cantos, Feurbach registra:


Les chants désesperés sont les chants les plus beaux,
Et j’en sais d’immortels qui sont de purs sanglots.


Então, ao cabo de longa experiência da vida, outro dirá: “Sofre!... O estro nutre-se de pena, e exalta-se na dor...” De fato, os nossos grandes líricos eram dolentes: foi o caminho seguro para aproximarem os corações, porque simpatizamos mais pelo sofrimento do que pela felicidade. Foram doloridos, e foram eficazes, porque os seus cantos fundiam a pena numa esperança infinita. 

Não há povo onde o influxo da poesia nacional fosse mais precioso do que no brasileiro. Quem quiser a medida do que valeu esse influxo, compare os nossos valores de pensamento e a feição do gosto, neste intervalo – 1850-1880. Em 30 anos, o Brasil fez a carreira literária precisa para, partindo daquele ranço, apreciar, imediatamente, todo o valor mental e artístico da geração de 18801900, e recebê-la, já, em verdadeira consagração. O fato deve ser notado como uma longa síntese de efeitos, a que correspondem outros tantos serviços à nação brasileira. Ao mesmo tempo que abalavam os corações, esses grandes líricos revelavam à nação o sentir que lhe era próprio, e lhe deram, com isto, mais intensidade e profundeza. Difundiram estímulos superiores, criaram um ritmo de vibrantes estados da alma, espalharam a beleza em puros motivos de coração, infundiram cordial generosidade, levando os ânimos a sentir intensamente, e em uníssono, as mesmas emoções; quebraram a sornice da época, e abalaram o regime que nela repousava, trazendo os espíritos para outros interesses morais e mentais, além da politiquice corrente. E, tanto que obtiveram, deriva apenas dos seus recursos líricos, como simples cantores dos próprios afetos... 

Foram, porém, muito além, porque todos eles tiveram outros objetos como alma dos seus versos; todos sentiram, vivamente, a natureza brasileira, e cantaram as suas paisagens, celebraram o gênio do seu povo e a sua história. Só por isso, mereciam a consagração de patriotas. Dá-se, no entanto, que todos eles patentearam patriotismo bem explícito, com vistas a uma pátria idealizada em grandes destinos. E mais: foram todos pela justiça, e, alguns, até à revolução. Nem é exagero dizer que foram todos revolucionários, pois que quebraram moldes consagrados, renovaram o gosto e o pensamento, e tudo isto é ação revolucionária. Cantando em patética sinceridade, os nossos grandes líricos horrorizaram a muitos, comoveram à maior parte dos brasileiros, e impressionaram a todos.


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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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