domingo, 17 de fevereiro de 2019

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (2)

O Festival de Besteira

Festival de Besteira que Assola o País





Em Recife, quem tocasse buzina na zona considerada de silêncio, pagava uma multa de duzentos cruzeiros. O deputado estadual Alcides Teixeira sabia disso mas distraiu-se e tocou. Imediatamente apareceu um guarda e multou-o. Alcides deu uma nota de mil cruzeiros para pagar os duzentos e o guarda informou-o de que não tinha troco. O deputado quebrou o galho: deu mais quatro buzinadas na Zona de Silêncio, ficou quite com a Justiça e foi embora. 

Era lançada a peça Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, que teve uma publicidade impagável (nos dois sentidos) organizada pela linha-dura. Agentes de uma sociedade terrorista tentaram tumultuar o espetáculo e o promoveram de tal maneira que Liberdade, liberdade está em cartaz há quase dois anos; um recorde nacional, graças ao Festival. 

Até o Dasp, (4) repartição criada para cuidar dos quadros de servidores da nação, consumindo para isso bilhões de cruzeiros anualmente, nomeava para a coletoria de São Bento do Sul dois funcionários que já tinham morrido havia anos. Em compensação, para chefiar seus próprios serviços em Santa Catarina, o Dasp nomeava um coitado que estava aposentado há três anos, internado num hospício de Florianópolis. 

Foi então que estreou no Theatro Municipal de São Paulo a peça clássica Electra, tendo comparecido ao local alguns agentes do Dops para prender Sófocles, autor da peça e acusado de subversão, mas já falecido em 406 a.C. Era junho e o pensador católico Tristão de Ataíde, o mesmo Alceu de Amoroso Lima, uma das personalidades mais festejadas da cultura brasileira, chegava à mesma conclusão da flor dos Ponte Preta em relação à burrice reinante, ao declarar, numa conferência: “A maior inflação nacional é de estupidez”. 

A coisa atingia — como já disse — todas as camadas sociais, inclusive a intocável turma dos grã-finos. Por exemplo: num dos clubes mais elegantes de Belo Horizonte, realizou-se a festa para a escolha da Glamour Girl de 1965. A eleita, sob aplausos gerais, foi devidamente cercada e enfaixada. Na faixa, lia-se: “Glamour Gir de 65”. Levando-se em conta que gir é uma raça de gado vacum, foi chato. 

Nas prefeituras municipais é que o Festival se espraiava com maior desembaraço: o prefeito Tassara Moreira, de Friburgo (RJ), inaugurava um bordel na cidade “para incentivar o turismo”, enquanto o prefeito de Fortaleza, Murilo Borges, atendia ao apelo do Instituto Histórico cearense e suspendia a construção de um mictório público em frente à estátua de José de Alencar na praça do mesmo nome. O instituto tinha classificado de “incontinência histórica” a instalação de um sanitário ali, justamente quando se comemora o centenário de Iracema. Agora o mictório está sendo construído atrás da estátua e o instituto agradeceu à prefeitura, ressaltando que “as pétreas narinas alencarianas não serão mais molestadas”. Foi uma solução honrosa, sem dúvida, e agora, se alguém ficar aperreado, como se diz no Ceará, que vá atrás da estátua. 

Na Assembleia Legislativa fluminense um deputado chamado José Miguel Simões, sem o menor remorso, pedia moção de solidariedade à novela O Direito de Nascer, por ver naquela cocorocada toda uma “mensagem útil à família brasileira”. Noutra assembleia, mais importante pouquinha coisa, pois é federal, o deputado Eurico de Oliveira apresentava um projeto de anexação das Guianas ao território nacional. E, felizmente, com essas duas bombas, terminava o mês de junho, que é mês de foguetório. 

Julho começava com a adesão do Banco Central à burrice vigente, baixando uma circular, relativa ao registro de pessoas físicas, na qual explicava:


Os parentes consanguíneos de um dos cônjuges são parentes por afinidade do outro; os parentes por afinidade de um dos cônjuges não são parentes do outro cônjuge; são também parentes por afinidade da pessoa, além dos parentes consanguíneos de seu cônjuge, os cônjuges de seus próprios parentes consanguíneos.


Dois acontecimentos absolutamente espantosos, cuja justificação só pode ser aceita se arrolados como inerentes ao Festival de Besteira: o costureiro Denner casou e Ibrahim Sued publicou um livro. 

O secretário de Saúde da Guanabara, dr. Ozir Cunha, proibia os hospitais do estado de atenderem doentes vítimas de alcoolismo. Como é que um médico dá uma ordem dessas ninguém soube. Provavelmente ele estava influenciado pela chatíssima novela do dr. Valcourt. Aliás, essa novela influenciou muita gente. Tempos depois, quando um grupo de médicos do interior procurou o então candidato exclusivo à presidência da República — marechal Costa e Silva — para expor problemas de assistência médica, o candidato disse que sabia do que se passava pois acompanhara a novela. Os médicos se entreolharam, perceberam que não adiantava ir em frente, fizeram um pouquinho de hora e se mandaram. 

Eram instituídos mais dois dias: o Dia do Pobre e o Dia da Vovó. O primeiro por projeto do deputado Geraldo Ferraz e até hoje o pobre ainda não viu o dia dele; o segundo inventado por uma radialista “porque existem tantos dias e ninguém ainda se lembrou da avozinha”. A distinta não reparou que existe o Dia das Mães e que — jamais em tempo algum — mulher nenhuma conseguiu ser avó sem ser mãe antes. 

A Delegacia de Costumes de Porto Alegre mandava retirar das livrarias, sem dar a menor satisfação aos livreiros, todos os livros que fossem considerados pornográficos. Um dos livros apreendidos era O amante de Lady Chatterley e, quando o delegado soube que o autor era súdito de sua majestade britânica, mandou devolver todos os exemplares, explicando aos seus homens: “Nós não temo nada que ver, tchê, com a pornografia inglesa. Só com a nacional, tchê!”. 

O ministro da Saúde — dr. Raimundo de Britto — pronunciava uma frase lapidar: “Para aliviar a despesa do Tesouro Nacional devem morrer de fome dez por cento dos funcionários públicos, nem que para isso se inclua meu filho”. Somente uma outra frase conseguiu rivalizar com esta para gáudio do Febeapá, foi aquela que pronunciou o ministro Juraci Magalhães: (5)  “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. 

Em João Pessoa, no dia 17 de agosto de 65, era presa quando almoçava num restaurante local d. Eunice Lemos Jekiel, paraibana, mas que vivera vinte e dois anos nos Estados Unidos e esquecera o português. Para soltá-la houve o empenho do próprio governador Pedro Gondim. Motivo da prisão: ela estava falando inglês em público e, portanto, talvez fosse comunista. 

Outra vez o deputado Eurico de Oliveira: apresentava à Câmara um projeto sobre a importação de um milhão de portugueses para espalhar pela selva amazônica. Dias depois lascava outro: para tornar obrigatório, em todas as solenidades onde se tocasse o Hino Nacional, o canto do mesmo pelas autoridades presentes. 

Policiais da Dops (6) e elementos do Exército invadiam a casa da escritora Jurema Finamour e carregavam diversos objetos, inclusive um liquidificador. Vejam que perigosa agente inimiga esta, que tinha um liquidificador escondido dentro de sua própria casa. 

Segundo Tia Zulmira, “o policial é sempre suspeito” e — por isto mesmo — a polícia de Mato Grosso não é nem mais nem menos brilhante do que as outras polícias. Tanto assim que um delegado de lá terminou seu relatório sobre um crime político, com estas palavras: “A vítima foi encontrada às margens do rio Sucuriú, retalhada em quatro pedaços, com os membros separados do tronco, dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pesada pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio”. 

Repetia-se em Porto Alegre episódio semelhante ao ocorrido com Sófocles, em São Paulo. O coronel Bermudes, secretário da insegurança gaúcha, acusava todo o elenco do Teatro Leopoldina de debochado e exigia a presença dos atores e do autor da peça em seu gabinete. Depois ficou muito decepcionado, porque Georges Feydeau — o autor — desobedeceu sua ordem por motivo de força maior, isto é, faleceu em Paris, em 1921

A revista Boletim Cambial, no seu número de novembro, publicava um artigo chamado “What Is Meant by Brazilian Revolution” e explicava aos leitores que era “o nosso esforço para tentar explicar em língua inglesa o que é a revolução brasileira”. 

Em Campos ocorria um fato espantoso: a Associação Comercial da cidade organizou um júri simbólico de Adolf Hitler, sob o patrocínio do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Ao final do julgamento Hitler foi absolvido. 

Em São Paulo, entrevistado num programa de televisão, o deputado Arnaldo Cerdeira explicou por que seus coleguinhas aumentam constantemente os próprios subsídios: “Quando eu entrei para a política, meus charutos custavam trezentos réis, agora estão custando mil e duzentos cruzeiros cada um”. Infelizmente, quem entrevistava o sr. Cerdeira era uma mulher e não ficava bem ela mandar que ele enfiasse o charuto noutro lugar. 

Janeiro de 66! A Pretapress continuava trabalhando ativamente e colecionando novas notícias para o Festival de Besteira que Assola o País. E este ano começou tão bem que na Paraíba o prefeito da cidade de Juarez Távora nomeou para a prefeitura local, como funcionário público, figurando na folha de pagamento, o cavalo “Motor” de sua propriedade. Dizem que o cavalo do prefeito João Mendes é muito cumpridor dos seus deveres. 

E no Maranhão, o prefeito de São Luís, sr. Epitácio Cafeteira, da família dos bules, começa a provar que é um alcaide de excelentes planos administrativos. Logo depois de assumir o cargo, uma de suas primeiras providências foi anunciada: Cafeteira proibiu o uso de máscaras em festas carnavalescas. 

E quando isto aconteceu, todo mundo pensou que era brincadeira: a Procuradoria Geral da Justiça Militar encaminhou ao juiz corregedor um IPM instaurado na Dops para apurar atividades subversivas. Esta nem a linha frouxa esperava: IPM na Dops. 

O sr. Juraci Magalhães tomava posse no Ministério das Relações Exteriores. A tônica de seu discurso era “continuar a obra de Vasco Leitão da Cunha”. Continuar a obra do Vasco Leitão da Cunha era uma boa maneira de dizer que não estava pretendendo fazer nada.


Continua... o festival de besteiras




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Leia também:

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (1)

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (fim?)


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(4) Departamento Administrativo do Serviço Público, extinto em 1986. 
(5) Embaixador do Brasil em Washington no governo Castello Branco. 
(6) Aqui, Delegacia de Ordem Política e Social. Ao longo do livro, o autor também se refere ao Departamento de Ordem Política e Social, de mesma sigla
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SÉRGIO PORTO nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e morreu na mesma cidade em 1968. Foi cronista, radialista, homem de teatro e TV, compositor. Conhecido nacionalmente por meio do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, publicou, além de Febeapá, coletâneas de crônicas, textos sobre futebol, entre outros.



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