Simone de Beauvoir
38. Fatos e Mitos
Terceira Parte
Os Mitos
CAPITULO I
V
"Mulher! És a porta do diabo."
E num texto significativo de Jean Richard Bloch (La Nuit kurde) que vamos encontrar uma síntese de quase todos esses mitos. Trata-se do texto em que descreve os amores do jovem Saad com uma mulher muito mais idosa, mas ainda bela, durante o saque de uma cidade: "A noite abolia os contornos das coisas e das sensações. Não apertou mais uma mulher contra o corpo. Chegava afinal ao cabo de uma viagem interminável, que prosseguia desde as origens do mundo. Aniquilou-se pouco a pouco numa imensidade que balançava em derredor, sem fim, nem figura. Todas as mulheres se confundiram em um país gigante, encolhido sobre si mesmo, sombrio como o desejo, ardente como o verão... Ele entretanto reconhecia com uma admiração temerosa a força encerrada na mulher, as coxas alongadas de cetim, os joelhos semelhantes a duas colinas de marfim. Quando subia pelo eixo polido do dorso, dos rins até os ombros, parecia-lhe percorrer a própria abóboda que sustenta o mundo. Mas o ventre chamava-o sem cessar, oceano elástico e tenro em que nasce toda a vida e a que volta, asilo entre os asilos, com suas marés, seus horizontes, suas superfícies ilimitadas.
"Então viu-se tomado de um desejo raivoso de rasgar o invólucro delicioso e alcançar a própria fonte de suas belezas. Uma comoção simultânea enrolou-se um no outro. A mulher não mais existiu senão para fender-se como o solo, abrir-lhe as vísceras, ingurgitar-se com os humores do amado. O êxtase fez-se assassínio. Uniram-se como se apunhala.
"... Ele, o homem isolado, o dividido, o separado, o cerceado, ia jorrar de sua própria substância, evadir-se de sua prisão de carne e rolar enfim, matéria e alma, na matéria universal. Estava-lhe reservada a felicidade suprema, nunca experimentada até então, de ultrapassar as fronteiras da criatura, de fundir na mesma exaltação o sujeito e o objeto, a pergunta e a resposta, de anexar ao ser tudo o que não é o ser, e atingir numa última convulsão o império do inatingível.
"... Cada vaivém do arco despertava no instrumento precioso que tinha à sua mercê vibrações sempre mais agudas. Subitamente um último espasmo arrancou Saad do zênite e lançou-o na terra e na lama."
Insatisfeita em seu desejo, a mulher prende com as pernas o amante que sem querer sente renascer o próprio desejo: ela se apresenta então a ele como uma força inimiga que lhe arranca a virilidade e, ao possuí-la novamente, ele morde-lhe tão profundamente a garganta que a mata. Assim fecha-se o ciclo que vai da mãe à amante, à morte, através de complicados meandros.
Muitas atitudes são possíveis ao homem segundo o aspecto do drama carnal que ele acentua. Se um homem não tem a ideia de que a vida é única, se não tem a preocupação de seu destino singular, se não teme a morte, aceitará alegremente sua animalidade. Entre os muçulmanos, a mulher é reduzida a um estado de abjeção por causa da estrutura feudal da sociedade que não autoriza o recurso ao Estado contra a família, por causa da religião que, exprimindo o ideal guerreiro dessa civilização, destinou diretamente o homem à morte e despojou a mulher da sua magia. Que temeria nesta terra quem está preparado para mergulhar de um segundo a outro nas voluptuosas orgias do paraíso maometano? O homem pode, pois, fruir tranquilamente da mulher sem precisar defender-se contra si mesmo, nem contra ela. Os contos das Mil e Uma Noites encaram-na como uma fonte de untuosas delícias, tal qual os frutos, as geleias, os bolos opulentos, os óleos perfumados. Encontra-se hoje essa benevolência sensual em muitos povos do Mediterrâneo; satisfeito com o instante, não pretendendo a imortalidade, o homem do sul que, através do brilho do céu e do mar, apreende a Natureza em seu aspecto fasto, amará gulosamente as mulheres; por tradição, despreza-as suficientemente para não as tomar como pessoas, não estabelecendo grande diferença entre o encanto do corpo delas e o da areia ou da água; nem nelas nem em si mesmo sente o horror à carne. E com tranquilo deslumbramento que, nas Conversações na Sicília, Vittorini diz ter descoberto com a idade de sete anos o corpo nu da mulher. O pensamento racionalista da Grécia e de Roma confirma essa atitude espontânea. A filosofia otimista dos gregos ultrapassou o maniqueísmo pitagórico; o inferior subordina-se ao superior e como tal é útil: essas ideologias harmônicas não manifestam nenhuma hostilidade à carne. Voltado para o céu das Ideias, ou para a Cidade ou o Estado, o indivíduo, pensando-se como Nous ou como cidadão, crê ter superado sua condição animal: que se entregue à volúpia ou pratique o ascetismo, a mulher solidamente integrada na sociedade masculina só tem uma importância secundária. Por certo, o racionalismo nunca triunfou inteiramente e a experiência erótica conserva, nessas civilizações, seu caráter ambivalente: ritos, mitologias, literatura o comprovam. Mas as seduções e os perigos da feminilidade nisso tudo só se manifestam sob uma forma atenuada. É o cristianismo que dá novamente à mulher um prestígio assustador: o medo do outro sexo é uma das formas que assume para o homem o desespero da consciência infeliz. O cristão está separado de si mesmo; consuma-se a divisão do corpo e da alma, da vida e do espírito: o pecado original faz do corpo o inimigo da alma; todas as ligações carnais se consideram más (1). Foi só enquanto resgatado por Cristo e voltado para o reino celeste que o homem pode ser salvo, mas originalmente ele é apenas podridão; seu nascimento impõe-lhe não somente a morte mas ainda a danação; é em virtude de uma graça divina que o céu lhe pode ser aberto, mas em todos os avatares de sua existência natural há uma maldição. O Mal é uma realidade absoluta e a carne, um pecado. E, naturalmente, como nunca a mulher deixa de ser o Outro, não se considera que homem e mulher sejam reciprocamente carne: a carne, que é para o cristão o Outro inimigo, não se distingue da mulher. Nela é que se encarnam as tentações da terra, do sexo, do demônio. Todos os Padres da Igreja insistem no fato de que ela conduziu Adão ao pecado. Cumpre citar de novo as palavras de Tertuliano: "Mulher! És a porta do diabo. Persuadiste aquele que o diabo não ousava atacar de frente. Foi por tua causa que o filho de Deus teve de morrer. Deverias andar sempre vestida de luto e de andrajos". Toda a literatura cristã se esforça por exacerbar a repugnância que o homem pode sentir pela mulher. Tertuliano assim a define: Templum aedificatum super cloacam. Santo Agostinho sublinha com horror a promiscuidade dos órgãos sexuais e excretórios: Inter foeces et urinam nascmur. A repugnância do cristianismo pelo corpo feminino é tal que ele consente em destinar seu Deus a uma morte ignominiosa, mas poupa-lhe a mácula do nascimento: o concilio de Éfeso no Oriente, o de Latrão no Ocidente afirmam a concepção virginal de Cristo. Os primeiros Padres da Igreja — Orígenes, Tertuliano, Jerônimo — pensavam que Maria parira no sangue e na imundície como as outras mulheres, mas é a opinião de Santo Agostinho e Santo Ambrósio que prevalece. O seio da Virgem permaneceu fechado. A partir da Idade Média, o fato de ter a mulher um corpo foi considerado uma ignomínia. A própria ciência andou muito tempo paralisada por essa repugnância. Lineu, em seu tratado da Natureza, deixa de lado, como "abominável", o estudo dos órgãos genitais da mulher. O médico francês Des Laurens pergunta escandalizado como "esse animal divino cheio de razão e juízo que chamam homem pôde ser atraído por essas partes obscenas da mulher, maculadas de humores e situadas vergonhosamente na parte mais baixa do tronco". Hoje muitas outras influências interferem na do pensamento cristão; e este mesmo tem mais de um aspecto; mas no mundo puritano, entre outros, o ódio à carne perpetua-se; exprime-se, por exemplo, na Light in August de Faulkner; as primeiras iniciações sexuais do herói provocam nele terríveis traumatismos. É frequente em toda a literatura mostrar um jovem transtornar-se até o vômito depois do primeiro coito; e, se em verdade tal reação é muito rara, não é por acaso que tão amiúde seja ela descrita. Nos países anglo-saxões, penetrados de puritanismo, a mulher suscita na maioria dos jovens e em muitos homens feitos um terror mais ou menos confessado. Esse terror existe assaz acentuado na França. Michel Leiris escreve em Age d'homme: "Tenho comumente tendência para encarar o órgão feminino como uma coisa suja ou como uma ferida, nem por isso menos atraente, mas perigosa em si, como tudo o que é sangrento, mucoso, contaminado". A ideia de doença venérea traduz esses pavores; não e por transmitir doenças que a mulher atemoriza, são as doenças que parecem abomináveis porque provêm da mulher; contaram-me de rapazes que pensavam que relações sexuais demasiado frequentes bastavam para provocar a blenorragia. Acredita-se também comumente que, com o coito, o homem perde seu vigor muscular, sua lucidez cerebral, seu fósforo consome-se, sua sensibilidade se embota; é verdade que o onanismo faz com que se incorra nos mesmos riscos, e até por razões morais a sociedade considera-o mais nocivo do que a função sexual normal. O casamento legítimo e a vontade de procriação são defesas contra os malefícios do erotismo. Mas já disse que o Outro está implicado em todo ato sexual; e sua imagem mais habitual é a da mulher. É diante dela que o homem sente com maior evidência a passividade da própria carne. A mulher é vampiro, mutiladora, come e bebe e seu sexo alimenta-se gulosamente do sexo masculino. Certos psicanalistas quiseram encontrar bases científicas para essas imagens; todo prazer que a mulher aufere do coito proviria do fato de que ela castra simbolicamente o macho e apropria-se do sexo dele. Mas parece-me que essas próprias teorias exigiriam uma psicanálise e que os médicos, que as inventaram, projetaram nelas terrores ancestrais (2).
(1) Até o fim do século XII, os teólogos — com exceção de Santo Anselmo -— consideram segundo a doutrina de Santo Agostinho, que o pecado original está implícito na própria lei da geração: "A concupiscência é um vício. . . a carne humana que nasce dela é uma carne de pecado", diz Santo Agostinho. E Sto. Tomás: "A união dos sexos, acompanhando-se, desde o pecado, de concupiscência, transmite o pecado original ao filho".
(2) Mostramos que o mito do louva-a-deus não tem nenhum fundamento biológico.
A causa desses terrores está em que, no Outro, para além de qualquer anexação, permanece a alteridade. Nas sociedades patriarcais, a mulher conserva muitas das inquietantes qualidades que detinha nas sociedades primitivas. Eis por que não a abandonam nunca à Natureza, cercam-na de tabus, purificam-na com ritos, colocam-na sob o controle dos sacerdotes; ensinam ao homem que não deve achegar-se a ela em sua nudez original e sim através de cerimônias, sacramentos que a arrancam da terra, da carne, que a metamorfoseiam em uma criatura humana; então a magia que ela detém é canalizada como o raio após a invenção do pára-raios e das centrais elétricas. Torna-se mesmo possível utilizá-la no interesse da coletividade. Percebe-se aqui outra fase desse movimento oscilatório que define a relação do homem com sua fêmea. Ele a ama enquanto ela lhe pertence, teme-a enquanto outro; mas é enquanto outro temível que ele procura torná-la mais profundamente sua, e é isso o que faz com que ele a eleve à dignidade de pessoa e a reconheça como semelhante.
A magia feminina foi profundamente domestícada dentro da família patriarcal. A mulher permite que a sociedade integre nela as forças cósmicas. Em sua obra, Mitra-Varuna, Dumézil assinala que, na índia como em Roma, o poder viril afirma-se de duas maneiras: em Varuna e Rômulo, nos Gandarvas e nas Lupercas esse poder é agressão, rapto, desordem, hybris; então a mulher se apresenta como um ser que é preciso raptar, violentar; as sabinas raptadas são estéreis, fustigam-nas com correias de pele de bode, compensando pela violência um excesso de violência. Mas Mitra, Numa, os Brâmanes e os Flâmines asseguram, ao contrário, a ordem e o equilíbrio racional da cidade; então a mulher é ligada ao marido por um casamento de ritos complicados e, colaborando com êle, assegura-lhe o domínio de todas as forças femininas da Natureza; em Roma, se a flamínica morre, o flamen dialis demite-se de suas funções. Assim é que, no Egito, Isis, tendo perdido seu poder supremo de deusa-mãe, permanece entretanto, generosa, benevolente, sábia e sorridente, a magnífica esposa de Osíris. Mas, quando se apresenta assim como a associada ao homem, seu complemento, sua metade, a mulher é necessariamente dotada de uma consciência, de uma alma; êle não poderia depender tão intimamente de um ser que não participasse da essência humana. Já se viu que as leis de Manu prometiam à esposa legítima o mesmo paraíso que ao esposo. Quanto mais o homem se individualiza e reivindica sua individualidade, mais reconhece em sua companheira um indivíduo e uma liberdade. O oriental despreocupado com seu próprio destino contenta-se com uma fêmea que é para ele um objeto de prazer; mas o sonho do ocidental, quando se eleva à consciência da singularidade de seu ser, é ser reconhecido por uma liberdade alheia e dócil. O grego não encontra na prisioneira do gineceu a semelhante que reclama; por isso orienta seu amor para o companheiro masculino cuja carne, tal como a sua, é habitada por uma consciência e uma liberdade; ou então dedica seu amor às hetairas cuja independência, cultura e espírito fazem-nas quase suas iguais. Mas, quando as circunstâncias o permitem, é a esposa que melhor pode satisfazer as exigências do homem. O cidadão romano vê na matrona uma pessoa. Em Cornélia, em Árria, ele possui seu duplo. É paradoxalmente o cristianismo que proclamará em certo plano a igualdade do homem e da mulher. Ele detesta nela a carne; se ela se renega como carne, torna-se, do mesmo modo que o homem, criatura de Deus, resgatada pelo Redentor, e ei-la do lado do homem entre as almas prometidas às alegrias celestes. Homens e mulheres são os servidores de Deus, quase tão assexuados quanto os anjos e que, em conjunto, com a ajuda da graça, rejeitam as tentações da terra. Aceitando renegar sua animalidade, a mulher, exatamente por encarnar o pecado, será também a mais radiosa encarnação do triunfo dos eleitos que venceram o pecado (3). Naturalmente, o Salvador Divino que opera a redenção dos homens é do sexo masculino; mas é preciso que a humanidade coopere para sua própria salvação e é sob sua forma mais humilhada, mais perversa que será chamada a manifestar sua boa vontade submissa. Cristo é Deus, mas é uma mulher, a Virgem Maria, que reina sobre todas as criaturas humanas. Entretanto, só as seitas que se desenvolvem à margem da sociedade ressuscitam, na mulher, os antigos privilégios das grandes deusas. A Igreja exprime e serve uma civilização patriarcal na qual é conveniente que a mulher permaneça anexada ao homem. É fazendo-se escrava dócil que ela se torna também uma santa abençoada. Assim, no coração da Idade Média, ergue-se a imagem mais acabada da mulher propícia aos homens: a figura da Virgem Maria cerca-se de glória. É a imagem invertida de Eva, e pecadora; esmaga a serpente sob o pé; é a mediadora da salvação como Eva o foi da danação.
O Segundo Sexo - 35. Fatos e Mitos: A hesitação do macho entre o medo e o desejo
O Segundo Sexo - 36. Fatos e Mitos: "Está cheio de teia de aranha lá dentro..."
O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado
O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe
A magia feminina foi profundamente domestícada dentro da família patriarcal. A mulher permite que a sociedade integre nela as forças cósmicas. Em sua obra, Mitra-Varuna, Dumézil assinala que, na índia como em Roma, o poder viril afirma-se de duas maneiras: em Varuna e Rômulo, nos Gandarvas e nas Lupercas esse poder é agressão, rapto, desordem, hybris; então a mulher se apresenta como um ser que é preciso raptar, violentar; as sabinas raptadas são estéreis, fustigam-nas com correias de pele de bode, compensando pela violência um excesso de violência. Mas Mitra, Numa, os Brâmanes e os Flâmines asseguram, ao contrário, a ordem e o equilíbrio racional da cidade; então a mulher é ligada ao marido por um casamento de ritos complicados e, colaborando com êle, assegura-lhe o domínio de todas as forças femininas da Natureza; em Roma, se a flamínica morre, o flamen dialis demite-se de suas funções. Assim é que, no Egito, Isis, tendo perdido seu poder supremo de deusa-mãe, permanece entretanto, generosa, benevolente, sábia e sorridente, a magnífica esposa de Osíris. Mas, quando se apresenta assim como a associada ao homem, seu complemento, sua metade, a mulher é necessariamente dotada de uma consciência, de uma alma; êle não poderia depender tão intimamente de um ser que não participasse da essência humana. Já se viu que as leis de Manu prometiam à esposa legítima o mesmo paraíso que ao esposo. Quanto mais o homem se individualiza e reivindica sua individualidade, mais reconhece em sua companheira um indivíduo e uma liberdade. O oriental despreocupado com seu próprio destino contenta-se com uma fêmea que é para ele um objeto de prazer; mas o sonho do ocidental, quando se eleva à consciência da singularidade de seu ser, é ser reconhecido por uma liberdade alheia e dócil. O grego não encontra na prisioneira do gineceu a semelhante que reclama; por isso orienta seu amor para o companheiro masculino cuja carne, tal como a sua, é habitada por uma consciência e uma liberdade; ou então dedica seu amor às hetairas cuja independência, cultura e espírito fazem-nas quase suas iguais. Mas, quando as circunstâncias o permitem, é a esposa que melhor pode satisfazer as exigências do homem. O cidadão romano vê na matrona uma pessoa. Em Cornélia, em Árria, ele possui seu duplo. É paradoxalmente o cristianismo que proclamará em certo plano a igualdade do homem e da mulher. Ele detesta nela a carne; se ela se renega como carne, torna-se, do mesmo modo que o homem, criatura de Deus, resgatada pelo Redentor, e ei-la do lado do homem entre as almas prometidas às alegrias celestes. Homens e mulheres são os servidores de Deus, quase tão assexuados quanto os anjos e que, em conjunto, com a ajuda da graça, rejeitam as tentações da terra. Aceitando renegar sua animalidade, a mulher, exatamente por encarnar o pecado, será também a mais radiosa encarnação do triunfo dos eleitos que venceram o pecado (3). Naturalmente, o Salvador Divino que opera a redenção dos homens é do sexo masculino; mas é preciso que a humanidade coopere para sua própria salvação e é sob sua forma mais humilhada, mais perversa que será chamada a manifestar sua boa vontade submissa. Cristo é Deus, mas é uma mulher, a Virgem Maria, que reina sobre todas as criaturas humanas. Entretanto, só as seitas que se desenvolvem à margem da sociedade ressuscitam, na mulher, os antigos privilégios das grandes deusas. A Igreja exprime e serve uma civilização patriarcal na qual é conveniente que a mulher permaneça anexada ao homem. É fazendo-se escrava dócil que ela se torna também uma santa abençoada. Assim, no coração da Idade Média, ergue-se a imagem mais acabada da mulher propícia aos homens: a figura da Virgem Maria cerca-se de glória. É a imagem invertida de Eva, e pecadora; esmaga a serpente sob o pé; é a mediadora da salvação como Eva o foi da danação.
(3) Daí o lugar privilegiado que ela ocupa, por exemplo, na obra de Claudel. Ver págs. 267-276.
continua...
214
_________________
O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
______________________
Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
________________________
Leia também:
O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado
O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe
Nenhum comentário:
Postar um comentário