terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

O Brasil Nação - v2: § 55 – De Casimiro de Abreu a Varela - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2




SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 6
novo ânimo



§ 55 – De Casimiro de Abreu a Varela





Realidade potente na vida do Brasil, a poesia anunciada em Gonçalves Dias, para efeitos explícitos e imediatos, devia comunicar-se à maioria das almas brasileiras. Foi o grande serviço de Casimiro de Abreu, Varela e os secundários. Casimiro merece bem ser inscrito ao lado dos grandes líricos, apesar de que a sua musa fosse uma limitada surdina. Contentou-se de ser a voz da melancolia e da saudade... Mas não só nestas notas foram os seus cantos. Casimiro de Abreu foi o poeta dos afetos simples, idílios ingenuamente românticos, amores serenamente magoados, ternuras brandamente dolentes, que levam muitas vezes às lágrimas, sem desandar, nunca, para a tragédia. E, assim, em doce mágoa e emoções correntes ele foi um dos que mais se insinuaram nos corações, e mais concorreram para comover e aproximar as almas. Lira de poucos acordes, ele não visava ao pensamento, e cantou como se preferisse ser, apenas, o mais acessível e popular: quer dizer o mais humano e mais brasileiro dos primeiros líricos. Depois dele, durante decênios, não houve adolescente, em orgasmo poético, que não lhe repetisse os motivos e os processos. Pouco importa o valor desses versos, inspirados, ou simplesmente imitados, de Casimiro de Abreu: houve, com eles, que o lirismo brasileiro se difundiu, e os espíritos se enlevaram em coisas ideais:


Na minha terra............
A juriti suspira sobre as folhas secas
      Seu canto de saudade;
Hino de angústia, fervido lamento,
Um poema de amor e sentimento,
      Um grito de orfandade!...


Compreende-se que a mesma meiguice brasileira tivesse cantado:


Doce filha de lânguida tristeza
Ergue a fronte pendida – o sol fulgura!
Quando a terra sorri-te e o mar suspira
Por que te banha o rosto essa amargura?...
................................
Amemos! – tudo vive e tudo canta...
Cantemos! – seja a vida hinos e flores:
De azul se veste o céu... vistamos ambos
O manto perfumado dos amores...
................................
Filha do céu – oh flor das esperanças,
Eu sinto um mundo no bater do peito...


É nada, esta poesia – uma tênue vaporização de influxos sobre as almas; os vapores filtraram-se nas consciências, para anelos de qualquer coisa que não era a pura materialidade; despertaram-se os apetites superiores do espírito, e quando veio Alencar, Machado de Assis e Castro Alves, o Brasil já tinha um público para compreendê-los, e repetir as suas emoções. Quase toda a poesia de Casimiro de Abreu desbotou: Moreninha, Moreninha!... Simpatia é um sentimento... Contudo, houve estâncias que resistiram à popularidade, sem perder efeitos, sem chegar à banalidade. Lembremo-nos de que o estro de Castro Alves, mesmo, foi eco de cantos afetivos de Casimiro de Abreu:



................................
Eis meu lar, minha casa...
A terra onde eu nasci, meu teto amigo,
................................
Foi aqui, ali, foi além... mais longe,
Que eu sentei-me a chorar no fim do dia...
................................
Como eu me lembro dos meus dias puros!
Nada me esquece!... E esquecer quem há-de?
Cada pedra que eu palpo, ou tronco, ou folha,
Fala-me ainda dessa doce idade!...
................................
E a casa?... as salas, estes móveis, tudo...
................................
E ali... naquele canto... o berço amado!...
E minha mana, tão gentil dormindo;
E mamãe a contar-me histórias lindas...


Realmente genial, opulento a deixar inspirações para muitas gerações de líricos, Castro Alves achou, no entanto, que nesse concreto de saudades havia ainda de que fazer comovedora poesia; e a sua Bela Vista, sem ser um plágio, é a insistência bem explícita na sucessão de momentos afetivos como os imaginara Casimiro de Abreu:


Eu – pálido poeta – seguia triste e grave
A estrada que conduz ao campo solitário,
Como um filho que volta ao paternal sacrário...
................................
... Minha velha torre! Oh atalaia antiga,
................................
Onde estão as crianças...
... a doce Mãe, que toda amor, desvelo...
Oh! deixem-me chorar!... Meu lar... meu doce ninho!
................................
Meu lar está deserto............
Como tudo mudou-se!............
................................
Entremos! Quantos ecos na vasta escadaria,
Nos longos corredores, respondem-me a porfia!...
Oh! casa de meus pais!............
................................
... no teu vazio – vejo uma multidão,
Fala-me o teu silêncio – ouço-te a solidão!...
Povoam-se estas salas............
Fantasmas adorados – visões sutis e brandas...
Aqui... além... por onde movo o passo,
Como aves, que espantadas, arrojam-se ao espaço,
Saudades e lembranças s’erguendo – bando alado –
Roçam por mim as asas voando p’ra o passado... [4]


[4] Minguado de inspiração, Luiz Guimarães Junior tomou dos dois poemas, e pensou fazer um extrato, que seria a beleza de ambos, sublimada no soneto Visita à Casa Paterna... Não há uma instância de afetos, nem um contorno de frase, aí, que não tenham sido trasladado, dos versos de Casimiro de Abreu e de Castro Alves. Apesar disto, ou, talvez por isso, é este o soneto mais repetido dos de Luiz Guimarães. A poesia de Casimiro de Abreu é de 1857, a de Castro Alves de 1868, a de Luiz Guimarães, de 1876...

Uma crítica, presumida de objetivismo, pensa ter eliminado a influência de Casimiro de Abreu com o tratá-lo de choramingas... Poeta de fato, e, com isto, senhor da humana verdade, ele respondeu antecipadamente: “... quando se chora, é porque o coração está vivo...” Muito se serviu da lágrima, o lírico d’As Primaveras; mas a sua poesia nunca foi realmente depressiva, se não um canto de manso e cordial conforto. Quando muito o bem-estar na melancolia; e se ele chora, ninguém lhe sente o escaldar do pranto, nem o convulso dos soluços. Homem, ele guardou aquela visão dos Oito Anos:


O mar – é lago sereno,
O céu – é manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino de amor...


Repetidamente, ele gemerá: Minha alma é triste..., e se lamentará: Meu Deus! eu chorei tanto no exílio..., e ninguém se contaminará de tristeza, nem sentirá o fluir de lágrimas, porque, estuantes de amor, os seus versos mesmo mostrarão que, no lírico, sofrer e chorar é somente a capacidade de sentir e viver. Na sua musa, a lágrima é muito vizinha da alegria:


Chora perdida a ilusão primeira...
       Mas vive e sê feliz!...
Vive e canta e ama............
................................
Canta e que os teus hinos de esperança
Despertem deste mundo de misérias
     A estúpida mudez............
Mimosa flor de lânguida saudade,
Por ti correu meu estro ardente...
................................
Não! – Viver é amar............
Amemos! Seja a vida – hinos e flores...
Doce filha da lânguida tristeza...
– Como a flor indolente da campina
Abre ao sol da paixão tua alma pura!


Tal foi a divina função dos seus cantos: miraculosos em efeitos sobre a alma brasileira, pois que todos o entendiam e com ele se sentiam cordialmente aproximados. Casimiro de Abreu fez toda uma cultura de afetos indispensáveis: o amor – puro amor, a saudade confortante, a melancolia inteligente e doce, as afeições na família, o apego à pátria, a estesia das paisagens. E o poeta de Simpatia nem desejou outra coisa:


Não quero a glória, não! A glória mente...
............ Eu peço ao céu sossego,
Um bocado de amor, flores no campo,
      E um ninho no sertão...


Fátuos, insuficientes da alma, presumem erguer-se em desprezar a singeleza desses cantos, como se fora possível o homem humano sem um tal sentir essencial, como se isto não fosse o coração. 

Esse lirismo era como perfume, na paisagem dos romances de Alencar, cuja prosa foi tão eficaz sobre os corações como os versos dos outros. A ficção, a que ele se dedicou, deu-lhe virtudes especialmente potentes. Em essência, o seu talento é um legítimo estro, e a sua obra literária, antes da contaminação política, uma obra de poeta. Não há negar que, nela, o homem e a natureza são bem do Brasil; mas tanto se insinuou a poesia nas suas novelas, e tanto as sublimou, que as tirou, quase, da realidade. Ou será uma realidade percebida e sentida através da beleza ideal de romantismo. Contudo, é realidade, tanto que comove, e, comovendo, alastrou definitivamente, para ser sentimento na alma brasileira, de um extremo ao outro do país, até os nossos dias:


... a luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa, enrolava-se em ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores. Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas, e delicadas; e o ouricuri abria as palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite... a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia. Um concerto de notas graves saudava o pôr do sol e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza da sua queda, e ceder à doce influência da tarde... Era ave-maria... hora misteriosa do crepúsculo... A alvorada abriu o dia e os olhos do guerreiro branco. A luz da manhã dissipou os sonhos da noite e arrancou de sua alma a lembrança de que sonhara. Ficou apenas um vago sentir, como fica na moita o perfume do cacto que o vento da serra desfolha na madrugada... A flor da mata é formosa quando tem rama que a abrigue, e tronco onde se enlace. Iracema não vive na alma de um guerreiro: nunca sentiu a frescura do seu sorriso... Enterra o meu corpo junto ao coqueiro que tu amaste. Quando o vento do mar soprar, Iracema pensará que é tua voz que fala entre os seus cabelos... 


E o lirismo de Alencar feriu o próprio Castro Alves, que lhe repete a imagem: “Quando eu morrer, só me enterrem junto à palmeira do val; para eu pensar que é Maria, que geme no taquaral...” Abstraiamos o esgotadíssimo prosaísmo do momento; descontemos o quanto estamos fatigados de singelo lirismo: se se evocam as condições do Brasil de então, apenas despertado para o idealismo romântico, sôfrego de emoção desde que saiu da sornice dos Magalhães e Porto Alegre: no frêmito da poesia revelada pelos grandes líricos, a prosa de Alencar derramou-se em afetos sobre a mansa gente do Brasil. E pensemos ainda: que o romancista de Iracema, juntando o seu lirismo à paixão do drama, entrelaçou-o à nossa história, ou a paisagens e tradições características do Brasil. Foram irresistíveis os seus efeitos. Consideremos, agora, que José de Alencar procedia em literatura com intuitos bem explícitos de exaltar a alma nacional. Com Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Castro Alves, ele foi um apóstolo fervoroso do nativismo. Uma crítica zarolha e pretensiosa terá visto no seu indianismo desarrazoada imitação; medite-se, porém, nos conceitos das suas Cartas a respeito do poema de Magalhães, e compreender-se-á o mesmo indianismo como necessidade essencial de afirmação brasileira! “O canto dos índios saudando o nascimento da lua vale uma poesia pela singeleza e ingenuidade da expressão – A lua oculta o rosto sob o véu branco das nuvens; está confusa, enrubesce: é porque saiu do leito do sol. Assim há de corar a jovem esposa no primeiro dia depois das núpcias; e nós lhe diremos – deixa ver os teus olhos...” Mais de uma vez, ele provou que sentia plenamente as belezas majestosas da natureza da nossa terra, numa estesia bem sua. Por isso mesmo, compreendeu Gonçalves Dias “cujos acentos nacionais mostram quanta poesia há nesses costumes índios, que nós ainda não percebíamos bem porque ainda os vemos muito de perto...” Há, mesmo, um momento em que ele se ergue contra os que “procuram lançar o ridículo contra a verdadeira poesia nacional...” E repete, de Gonçalves Dias: “Metrificador perfeito, entusiasta, que soube compreender os tesouros que a nossa pátria guarda no seu seio fecundo para aqueles dos seus filhos que sabem reclinar a cabeça sobre o regaço materno.” Foi nessa conjuntura que, justamente indignado em face da sensaboria épica do Dr. Magalhães, a transudar sobre as nossas tradições, Alencar lhe grita a verdade: “Não se evocam as sombras heroicas do passado para tirar-lhes o prestígio...” Note-se mais: a prosa de Alencar deu existência literária a um idiomatismo brasileiro, pois que ele teve um estilo seu, isto é, ele fez obra de arte, em apuro de fatura, de caráter próprio, absolutamente distinto do idiomatismo lusitano, sem o efeito, desagradável e penoso, da rebusca em prol de alambicamentos. Nem o desleixo sinestésico de Memórias de um Sargento de Milícias, nem as maneirices de A Moreninha...

Sem as primícias de estro dos anteriores, sem poder opor-se ao gênio de Castro Alves, Varela concorreu poderosamente, no entanto, para esse derramar de afetos em que se fez a renovação do pensamento brasileiro. Não há, nele, fulgor de imagens, nem originalidade de desenvolvimentos. São, por todo o seu estro, os mesmos motivos, para as mesmas emoções. Por isso mesmo, fácil, foi explicitamente socializante a sua musa. Acrescente-se que ele tinha intensidade e vibração, e que a sua vida foi somente poesia, incrustada numa tragédia íntima, com o só desafogo do verso. Isto lhe modulou especialmente a voz no sentido da melancolia nacional, ao mesmo tempo que lhe aumentou o prestígio. Então, Cântico do Calvário foi, na sua geração, irresistível melodia de dor, para todos que lhe conhecem a existência recortada de agruras e penas. É verdade que não exaltava, quase, mas comovia sempre, mesmo ao confessar-se prostrado:


Poucos instantes de vida
Me restam, oh! bem o sei!
Fiquei vencido na lida...
................................
Meu Deus! Por que me lançastes,
A mim, levita da dor,
Na terra onde derramastes,
Tanta vida, tanto amor?...


Mais do que Casimiro de Abreu, Varela foi a musa da tristeza doentia, desalentado, mesmo quando pretendia ser jovial:


Lembraste, Iná, dessas noites,
Cheias de doce harmonia,
Quando a floresta gemia...
................................
Que é feito agora de tudo?
De tanta ilusão querida?


E ele voltará à pura tristeza, que já é desespero:


Horas de febre e agonia...
................................
Oh! essas horas tremendas
Tenho-as sentido demais!...
Os traços que me deixaram
Não se apagaram jamais!...


Com toda essa amargura, ele, místico, teve de ser soturno; mas foi um hino de fé, consoladora para aqueles a quem a fé pode aproveitar.




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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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